peça de Tirso de Molina
tradução e adaptação de Ruth Salles
NOTA
Tirso de Molina é o pseudônimo do frade espanhol Gabriel Tellez, nascido em Madri em 1571. Criador da famosa figura de Dom Juan, é considerado, depois de Lope de Vega, o mais fecundo e variado dramaturgo da Espanha. Em meio às obrigações de sua Ordem e às viagens de convento a convento, criava suas peças. Escreveu também peças de fundo histórico e de fundo religioso, das quais a mais famosa é “El Condenado por Desconfiado”. Tirso de Molina morreu em 1648, quando era prelado do convento de La Merced, em Soria.
Esta comédia “Don Gil de las Calzas Verdes” faz parte de seu teatro de intrigas e costumes, e sua tradução para o português, integral e primorosa, foi feita por Afonso Félix de Souza, poeta brasileiro recém falecido. No entanto, por ter de condensar e adaptar a peça, incluindo nela mais personagens – a pedido da professora, devido ao número de alunos – preferi trabalhar diretamente com o original em castelhano, da coleção “Clásicos Castalia”, onde encontrei preciosas notas explicativas de Alonso Zamora Vicente, diretor dessa coleção. O professor de música Fabio Manzione Ribeiro escolheu canções espanholas que foram cantadas em castelhano. Na primeira, ele adaptou a música à letra da canção que fiz para uma peça chamada Os Dois Moinhos. Da última, Dança do Enfarinhamento, que é uma canção de moinho original da peça, não foi achada a melodia, que tive então de compor. As canções espanholas usadas foram: Las Mentiras (canção popular); Los Quatro Muleros; Sospiró uma Señora (de Luys Milan); Las Três Hojas; Los Reyes de la Baraja; Romance de Don Boyso (de Garcia Lorca).
Ruth Salles
PERSONAGENS
Dona Joana, noiva de dom Martim
Dom Diego (velho), pai de dona Joana
Dom Martim
Dom André, pai de Dom Martim
Dom André de Gusmão (velho) pai de dom Martim
Dona Inês
Dom Pedro (velho), pai de dona Inês
Dona Clara, prima de dona Inês
Dona Alfonsina, outra prima de dona Inês
Lola, amiga de dona Inês
Dom João, apaixonado por dona Inês
Luiza (moça) e Leonor (velha), criadas de dona Inês
Teresa (espalhafatosa) e Lourença (melancólica), criadas de dona Joana
Caramanchel, lacaio de dona Joana quando ela representa dom Gil
Manolo, “sombra” de Caramanchel, que vem sempre atrás dele
Osório, criado de dom Martim
Dom Antônio, pretendente de dona Clara
Célio, primo de dona Clara
Fábio, primo de dona Clara e pretendente de dona Alfonsina
Décio, primo de dona Clara
Ximena (muito velha), aia de dona Joana quando ela representa dona Elvira
Sancha, criada de dom Pedro.
Guarda
Casal de moleiros (personagens mudos, que movem o moinho, cantam e ajudam nas mudanças de cena)
Músicos, grupos que dançam e coro que canta
PRIMEIRO ATO
Introdução
Todos no palco. A peça começa com uma dança de moinho, cantada pelo coro. Mais ou menos no fim da dança, dá-se o primeiro encontro de Joana com dom Martim. Dançam juntos e se apaixonam, mas a dança os afasta, e fica a cargo do destino uni-los de novo. Todos vão saindo, como que “puxados” para fora pela vida, e a música vai silenciando.
CORO (canta):
“- Gira el molino, gira el molino de viento
alli en lo alto, alto de la colina!
Danos un buen alimento
con tu harina fina, mamita, con tu harina fina!
Rueda del agua aqui en valle,
junto al río vas moliendo!
Que tu voz no calle.
Quiero escuchar la piedra batiendo. (bis)
Gira el molino, gira el molino de viento
alli en lo alto, alto de la colina.
Danos un buen alimento
con tu harina fina, mamita, con tu harina fina.”
Cena 1
Entrada da ponte de Segóvia.
Dona Joana (de casaco e calças verdes) e suas criadas Teresa e Lourença; depois, Caramanchel com Manolo.
TERESA (à frente da patroa e da outra criada, exclama animada): – Dona Joana! Chegamos à ponte de Segóvia! (fica na ponta dos pés e põe as mãos em pala na testa) Daqui já se avista Madri!
LOURENÇA: – Ai… Nossa querida cidade de Valadoli ficou lááá para trás, com todas as suas belezas…
TERESA (para Lourença): – Ora, Lourença, deixa-te de melancolias. (a dona Joana): – E agora, dona Joana, conta, conta para nós o que te deu na veneta para viajares assim, disfarçada de homem?
DONA JOANA-GIL: – Teresa, tu não consegues ficar quieta?
TERESA: – Mas já estamos há cinco dias nesta jornada, e não abres sequer a fresta da porta desse esquisitíssimo segredo!
LOURENÇA: – Teresa tem razão, senhora. Deixaste tua casa e teu velho pai! E nós, tuas fiéis criadas, não sabemos o motivo.
DONA JOANA-GIL: – Arre, que é preciso fazer curso de paciência para vos agüentar!
TERESA: – Só sei que eu e Lourença parecemos duas tontas, fazendo conjeturas e mais conjeturas, (ergue os braços para o céu) como astrólogos às escuras.
LOURENÇA: – Não quiseste viajar sozinha, e viemos proteger tua honra, senhora!
Tem pena de nós e nos revela esse mistério!
TERESA: – Então tu achas, pobre Lourença, que ela tem pena de nós?
DONA JOANA-GIL: – Está bem, está bem. O falatório me cansou, e o cansaço me venceu. Pois escutai toda a história!
TERESA:
– Que ninguém jamais ouviu…
DONA JOANA-GIL:
– Foi numa tarde de abril.
Junto à igreja da Vitória,
passava eu quando vi
um rapaz encantador…
TERESA:
– Zás-trás! Prendeu-te o amor!
DONA JOANA-GIL:
– Da cabeça aos pés tremi.
E, no entanto, num cantinho
da memória estou lembrando
que com ele andei dançando…
LOURENÇA:
– Foi na dança do moinho!
(A cena contada é repetida no canto direito.)
DONA JOANA (lembrando):
– É… Tu tens boa memória.
Foi com ele que dancei…
Mas, como já vos contei,
junto à igreja da Vitória,
eu tropecei, fui caindo,
quando ele me segurou
e comigo até falou.
E juro, não estou mentindo:
a minha luva eu deixei
na palma de sua mão.
Com ela, meu coração (junta as mãos no coração)
a dom Martim entreguei.
TERESA e LOURENÇA: – Huuum…
DONA JOANA:
Subindo a uma caleça,
ele acenou seu adeus.
Se já amastes…
LOURENÇA:
– Oh céus!
Perdeste tua cabeça!
DONA JOANA-GIL:
– Nessa noite nem dormi.
De manhã, com os olhos baços,
olhei por um dos terraços
e meu adorado eu vi.
Daquele dia em diante,
de manhã mandou-me cartas
e de noite serenatas
com seu coração amante.
Deu-me palavra de esposo.
Mas foi só palavra enfim,
pois eu fui vítima, sim,
do ardil mais pavoroso.
Seu pai soube da paixão!
TERESA:
– Pronto, virou-se a panela!
DONA JOANA-GIL:
– Cala-te, já, tagarela!
TERESA:
– O caldo entornou no chão.
DONA JOANA-GIL:
– Seu pai soube, além do mais,
que eu, de dinheiro, sou pobre,
embora de berço nobre.
E aborreceu-se demais.
A dom Martim de Gusmão
– é o nome do meu amado –
tudo foi dificultado.
Mas apareceu então
uma tal de dona Inês,
com setenta mil ducados!
Seu pai fez outro tratado.
LOURENÇA:
– Teu amor… era uma vez…
DONA JOANA-GIL (com gestos, para diferenciar os pais):
– Seu pai escreveu ao pai
da dona Inês-da-desgraça,
inventando uma trapaça
que eu vos conto e que aqui vai:
DOM ANDRÉ (aparece no canto direito e representa a cena contada)
– Se Martim tratou noivado
com uma Joana vil,
vou-lhe mandar um dom Gil,
que é dom Martim disfarçado,
como o melhor cavalheiro
nascido em Valadoli.
DONA JOANA-GIL:
– Martim já está em Madri.
TERESA:
– Vais vencer esse embusteiro!
DONA JOANA-GIL:
– E seu pai! Por isso vim
de dom Gil fantasiada.
Vim ver a noiva tratada
e recuperar Martim.
Pronto, Lourença e Teresa!
Já contei minha proeza.
Ide a Vallecas agora,
e esperai o meu chamado.
TERESA:
– Então, adeus, dona Joana!
LOURENÇA:
– Que Deus te guarde, senhora,
e cuidado nessa estrada!
DONA JOANA-GIL:
– Sim, adeus, minhas criadas!
(Dona Joana senta-se numa pedra e descansa de cabeça baixa. As criadas dão a volta para a frente da cena, como se ali fosse outra estrada, e se sentam.)
TERESA: – Ufa, a caminhada me deixou com os pés ardendo. Dona Joana inventa cada coisa… Deve ter-se inspirado no mago Mérlin para tramar esse plano!
LOURENÇA: – Pobre da nossa ama… Ser mulher na Espanha de hoje não é fácil. Apaixonar-se e depois… o apaixonado, para agradar o pai, vai atrás de outra!
TERESA: – Pois eu acho que o apaixonado se desapaixonou, atraído pelos 70.000 ducados da tal dona Inês. E vai trapacear também com essa outra coitada, fingindo ser um dom Gil que, na verdade, é dom Martim.
LOURENÇA: – É… O coração dos homens balança que nem badalo de sino: para lá… para cá.
TERESA: – Para cá… para lá. O pior é que dona Joana quer fingir também que é o tal dom Gil. Vai dar uma confusão como nunca se viu!
LOURENÇA: – É uma lutadora a nossa ama. Ainda há de conseguir ganhar de volta o coração de dom Martim. Mas, também… se o pai deu a ela o nome de uma guerreira lá da França, uma pastora que fazia coisas do arco da velha…
TERESA: – É… Ouvi falar. E ela se chamava mesmo Joana do Arco… Mas, vamos, Lourença. Vallecas nos espera. (as duas saem)
(Ouve-se o tema musical de Caramanchel, Las Mentiras; dona Joana ergue o rosto e se levanta, pois ouve alguém falar.)
CARAMANCHEL (entra reclamando de Manolo, que vem atrás dele):
– Achas que sou sem valor?
Pois eu, Manolo encrenqueiro,
passo na ponte primeiro!
DONA JOANA-GIL:
– Olá! Que é isso?
CARAMANCHEL: – Senhor,
chamaste-me com “olá”, (***Chamava-se antigamente um servo com “olá”, e ele andava atrás ou do lado do senhor.)
mas se queres que eu te siga
tens de me encher a barriga.
Prefiro “galinholá”.
DONA JOANA-GIL:
– Quem é o pobre coitado
com quem zangavas na ponte?
CARAMANCHEL (inclinando-se bem, apresenta Manolo):
– Meu Apêndice… defronte,
atrás de mim ou do lado.
MANOLO (inclina-se):
– Sou Manolo, teu criado.
É que meto meu bedelho,
e ele me chama de espelho. (Caramanchel o afasta para trás)
DONA JOANA-GIL (a Caramanchel):
– Pois quero um lacaio, moço.
Se andares comportado,
te darei um bom almoço.
CARAMANCHEL:
– Mas, senhora, e meu suplente,
meu advérbio, adjunto,
que pretende até ser gente?
DONA JOANA-GIL:
– Bem, ele pode vir junto.
Mas é bom tu te acalmares.
Responde bem sossegado:
É um patrão que tens buscado?
MANOLO:
– Ih! Patrões teve aos milhares,
desde que dessem jantares.
CARAMANCHEL:
– Mas ando muito azarado.
O médico era impaciente
e fazia mil receitas
cantando três cançonetas
para enganar o doente.
Era um péssimo doutor.
Muito livro, pouca ciência.
Trabalhava sem consciência.
Fugi a todo vapor.
DONA JOANA-GIL:
– Mas foi por boa razão.
MANOLO:
– E aquele advogado,
cujo bigode engomado
era a sua ocupação?
CARAMANCHEL:
– É… Passava doze horas
o cavanhaque empinando… (faz gestos)
E os clientes esperando…
Dei adeus e fui embora.
MANOLO:
– Depois, foi o padre. Hum…
Devorava um frango inteiro!
E punha seus despenseiros
a pão e água e jejum.
CARAMANCHEL: (empurra Manolo para o lado)
– Não conto o romance inteiro.
O principal da questão
é estar sem casa ou patrão
e vazio de dinheiro.
DONA JOANA-GIL:
– Vem então servir a mim.
CARAMANCHEL (espantado):
– Mas… lacaio para um pajem?
Nunca vi tal personagem!
DONA JOANA-GIL:
– Não sou pajem. Sou assim…
como um jovem rapazinho
que busca umas honrarias
na corte. E tu me servias.
CARAMANCHEL (à parte, para Manolo):
– Com esse falar fininho…
MANOLO (à parte, para Caramanchel):
– Parece homem castrado.
CARAMANCHEL (à parte):
– Mas, mesmo que seja isso…
(a dona Joana):
– Sim! Eu entro a teu serviço.
Serei teu leal criado.
DONA JOANA-GIL:
– Teu nome?
CARAMANCHEL: – Caramanchel, (***Carabanchel Bajo era uma aldeia ao sul de Madri, hoje incorporada à cidade.)
nome da aldeia de baixo,
onde vim do céu abaixo
como lacaio fiel.
DONA JOANA-GIL:
– Tu me pareces bom homem.
Pois eu me chamo dom Gil.
CARAMANCHEL:
– Dom Gil de quê?
DONA JOANA-GIL:
– Só dom Gil.
CARAMANCHEL (à parte, para Manolo):
– É castrado até no nome…
MANOLO (à parte, para Caramanchel):
– Como na barba e na voz.
DONA JOANA-GIL:
– O sobrenome ocultado
depois será revelado.
Mas agora vamos nós
procurar hospedaria.
CARAMANCHEL:
– Conheço uma.
DONA JOANA-GIL: – E tem dona?
MANOLO:
– Tolerante e mocetona.
DONA JOANA-GIL (na entrada da ponte):
– Madri! Recebe este dia
este novo visitante
e me ampara em meu papel.
– Tu não vens, Caramanchel?
CARAMANCHEL:
– Sim, dom Gilzinho! Adiante! (saem pela ponte)
(a Manolo):
– Em frente! Anda, suplente!
(Tema musical de Caramanchel para mudança de cena; os moleiros dançam movendo o moinho)
Cena 2
Sala em casa de dom Pedro, pai de dona Inês.
Dom Pedro, dom Martim-Gil e seu criado Osório; dom João, dona Inês e suas criadas Leonor e Luiza.
DOM PEDRO (lendo a carta entregue por dom Martim-Gil): “No lugar de meu filho dom Martim e por causa de seu impedimento, quem vos leva esta carta é dom Gil de Albornoz, que pretende a mão de vossa filha dona Inês. O moço herdará em breve dez mil ducados. Meu filho dom Martim vos beija as mãos. Dai-me notícias de vossa saúde… etc… Valadoli, julho, etc… Dom André de Gusmão.”
(dirigindo-se a dom Martim-Gil): – Dom Gil, se dom André intercedeu por ti, no lugar de seu filho dom Martim, és muito bem-vindo, e o consentimento está dado. Quanto à minha filha Inês, com certeza vai querer casar-se contigo.
DOM MARTIM-GIL (a dom Pedro, puxa o pigarro): – Senhor dom Pedro, eu agradeço muito. Se quiseres saber mais alguma coisa de mim, procura meu primo, que mora aqui ao lado, onde vou hospedar-me. Ele poderá dizer quem sou.
DOM PEDRO: – Não, não! Dom André merece meu crédito, e o negócio está feito!
DOM MARTIM-GIL (à parte, a seu criado Osório):
– Osório, o plano foi mesmo excelente!
OSÓRIO (à parte, a dom Martim-Gil):
– Sim, dom Martim,
mas trata de casar-te prontamente,
porque dona Joana pode estar
tramando um golpe para atrapalhar.
DOM PEDRO: – Hoje à tarde, no jardim do duque, verás minha Inês. Fala de teu amor com entusiasmo, e ela se encantará! (inclina-se, despedindo-o) Até lá, então, meu amigo. Espero no jardim!
DOM MARTIM-GIL (inclina-se): – Deus me proteja! Que Ele me permita vê-la logo!
(Dom Martim-Gil e Osório saem da casa. Dom Pedro folheia um livro a um canto da sala, meio oculto por uma cortina. Dom João entra na casa por um lado. Dona Inês surge pelo outro com as criadas)
DONA INÊS (avista dom João e fala com as criadas): – Luiza e Leonor, esperai aqui um pouco. Vou falar com meu querido.
LEONOR (à parte, a Luiza): – Esse namorado de dona Inês é muito ciumento. Isso não é nada bom. Tu não achas, Luiza?
LUIZA (à parte, cutucando Leonor com o cotovelo): – Estás profetizando, Leonor? De mim, posso dizer que tenho um mau pressentimento cá dentro do peito.
DOM JOÃO (quando dona Inês se aproxima dele):
– Dona Inês, por minha vida,
não vás à tarde ao jardim!
DONA INÊS:
– Mas foi convite da prima,
dom João! A Alfonsina.
Se tens tanto medo assim,
é que duvidas de mim.
DOM JOÃO:
– Persegue-me realmente
um temor misterioso.
DONA INÊS:
– Sossega. Pois tu somente
hás de ser o meu esposo.
DOM PEDRO (à parte, tendo ouvido a conversa):
– Esposo?!
DONA INÊS (despedindo dom João): – Vai lá também!
E que Deus te guarde!
DOM JOÃO: – Amém! (ele sai)
DOM PEDRO (aparecendo para dona Inês):
– Inês, mas que atrevimento!
Tu dispões de tua sorte
prometendo casamento?
Não temes levar-me à morte?
(Durante esta conversa, as criadas cochicham e se espantam com o andamento do diálogo entre pai e filha.)
DONA INÊS:
– Não te alteres, pai. Pensei
num casamento a teu gosto.
Dom João é rico, e eu sei
que isso não te dá desgosto.
DOM PEDRO:
– Pois hoje chegou aqui
pretendente bem melhor,
nascido em Valadoli,
com boa renda e valor.
DONA INÊS (aborrecida e com desdém):
– Para mim, não há marido
em Madri, pelo que vejo,
pois impedes meu desejo
propondo um desconhecido.
Como se chama esse homem?
DOM PEDRO:
– Dom Gil. Dom Gil de Albornoz.
DONA INÊS (com mais desdém ainda):
– Dom Gil, meu pai? Isso é nome?
DOM PEDRO:
– Dom André mandou-o a nós.
DONA INÊS (com desprezo):
– É nome de herói da roça
cantado num vilancico.
Dom Gil… Com esse eu não fico.
DOM PEDRO:
– Contigo não há quem possa.
Pois hás de te apaixonar.
Anda! O coche nos espera,
e tu não podes faltar!
DONA INÊS:
– Ai! Isto me desespera!
(Ela sai zangada, junto com o pai, e as duas criadas ficam na sala)
LEONOR: – É terrível a vida da mulher de hoje… A pobre apaixonada tem de se casar com um desconhecido só porque o pai recebeu uma carta de apresentação.
LUIZA: – Ora, Leonor, às vezes variar é bom. Quem sabe esse tal dom Gil é mais interessante e alegre que o ciumento dom João.
LEONOR: – Mas dom João sente amor de verdade por dona Inês, e isso agora é raro neste mundo. Pobre da mulher apaixonada…
LUIZA: – Ah, que nada! Quem sabe ela muda de idéia e até gosta do outro.
LEONOR: – Desse dom Gil? Pois eu duvido que ele goste dela. Veio atrás do seu dinheiro, isso sim. (elas vão saindo)
(Entre uma cena e outra, há uma dança espanhola das meninas.)
Cena 3
Jardim do Duque.
Dona Joana-Gil, Caramanchel e Manolo; músicos, dona Alfonsina, dom João, dona Inês, dona Clara; Célio, Fábio e Décio; dom Pedro, dom Martim-Gil.
DONA JOANA-GIL (entra no jardim com calças verdes e fala à parte):
– Ouvi dizer que aqui virá dom Pedro
com sua filha Inês. E, atrás dela,
vem o ingrato Martim querendo vê-la.
Mas a tramóia eu descobri a tempo.
(Tema de Caramanchel)
MANOLO (entra sem ver dona Joana e diz a Caramanchel): – Teu amo hermafrodita disse que ia esperar por ti aqui.
CARAMANCHEL (avista dona Joana): – Senhor! Bene venuto! Buscas alguém neste jardim?
DONA JOANA-GIL:
– Aquela por quem estou apaixonado.
CARAMANCHEL: – Bem, então é melhor usares a calma de um monge, porque…
MANOLO (completando): – Porque em coisas de amor é devagar que se vai ao longe. (soa música fora da cena)
CARAMANCHEL: – Mas, que música é essa?
DONA JOANA-GIL: – É minha bela.
Soa sempre uma música atrás dela. (esconde Caramanchel, com Manolo)
Escondei-vos e olhai discretamente.
Vereis o que é beleza refulgente!
CARAMANCHEL (à parte):
– Há coisa igual? Castrado e tão ardente!
DONA CLARA (entra com dona Alfonsina, dona Inês e dom João):
– Belo jardim, Alfonsina!
DONA INÊS:
– Que parreiras! Que uvas finas!
DONA ALFONSINA:
– Senta-te aqui, prima Clara,
e nesta fonte repara. (olha as mãos de dona Inês)
– Prima Inês, que belas luvas!
Olha, senta-te a meu lado.
DONA INÊS:
– Dom João, não estás encantado
com o tamanho das uvas?
DOM JOÃO (a dona Inês): – Grandes como o meu tormento… Mas, por que quiseste vir a este jardim?
DONA INÊS: – Para mostrar a todos que tu és meu bem amado.
DONA JOANA-GIL (à parte, a Caramanchel): – Não é linda?
CARAMANCHEL: – É mais bela que a mais sonante, a mais tilintante moeda de ouro!
MANOLO: – Quanto a mim, prefiro a moeda.
DONA JOANA-GIL: – Estou perdido de amor por ela.
Vou lá!
CARAMANCHEL (empurrando-a de leve): – Pois vai de uma vez!
DONA JOANA-GIL (ao grupo sentado):
– Senhores, um forasteiro
aqui suplica primeiro
licença a Vossas Mercês…
DONA CLARA (gentil e ligeiramente encantada):
– Tens licença, companheiro.
De onde vens?
DONA JOANA-GIL: – Valadoli.
DONA INÊS:
– Dom João, afasta daí.
Dá lugar ao cavalheiro.
DOM JOÃO (à parte):
– Eu dou, mas desconfiado.
Ela olha a criatura.
Já estou enciumado.
DONA INÊS (à parte, olhando dona Joana-Gil):
– Ele tem bela figura.
(a dona Joana-Gil): – Se vens de Valadoli,
conheces algum dom Gil?
DONA JOANA-GIL:
– Dom Gil?
DONA INÊS: – Sim. Um nome vil,
que não se vê por aqui.
MANOLO (à parte, a Caramanchel): – Tu não reages, ouvindo dizerem isso do nome do teu amo? Mexe-te, homem!
CARAMANCHEL (empertigado, mostrando-se): – Eu protesto! Gil é meu amo, e é a prima e o bordão de um instrumento! Seu nome é digno cem por cento.
DONA JOANA-GIL (empurrando Caramanchel para o canto onde estava):
– Cala-te, Caramanchel!
(a dona Inês):
– Sim, eu sou dom Gil também.
DONA INÊS:
– És dom Gil? (à parte): – Fica-lhe bem.
Nome doce como o mel.
(Aqui começa a introdução da música para a dança.)
DONA INÊS (toda alegrinha):
– Vamos dançar!
DOM JOÃO (emburrado): – Eu não danço.
DONA JOANA-GIL (gentilmente, a dom João):
– Contigo também concordo.
DOM JOÃO (ainda emburrado):
– Então, agora discordo.
Dançai! Prefiro um descanso.
DONA CLARA (à parte, olhando dona Joana-Gil):
– É um anjo este rapaz…
DONA INÊS (à parte, olhando dona Joana-Gil):
– Ele é uma jóia… É demais…
FÁBIO (aparece com Célio e Décio e lhe diz à parte): – Quem será essa jóia, esse anjo de que elas falam?
CÉLIO (à parte, a Fábio): – Deve ser aquele rapazola dondoca de calças verdes, todo graciosidade e delicadeza.
FÁBIO (à parte, a Célio): – Hum… Hoje em dia admira-se cada coisa…
CÉLIO (à parte, a Fábio): – Eu só queria saber o que elas viram nele… Garanto que daqui a pouco vão chamá-lo de pérola!
DONA CLARA: – Olha o primo Célio!
DONA ALFONSINA: – E Fábio!
LOLA (entra correndo e grita): – Décio!
(Os três se inclinam e cumprimentam a todos. Começa a dança. Dona Inês dança com dona Joana-Gil. Célio, Fábio e Décio dançam com dona Clara, dona Alfonsina e Lola. Dom João, de má vontade, fica de lado. Manolo e Caramanchel se escondem.)
DONA INÊS (à parte, a dona Joana-Gil, quando termina a dança):
– Meu coração deu mil voltas
a cada volta que deste.
Recusei-te antes de ver-te,
mas já estou enamorada.
DONA CLARA (à parte):
– É uma pérola o dom Gil.
Meu coração já se abriu…
DONA JOANA-GIL (a dona Inês):
– Espera-te o cavalheiro
e nos olha com receio.
DONA INÊS:
– Sabes minha moradia?
DONA JOANA-GIL:
– Sim. Vou lá no fim do dia.
DONA INÊS:
– Vou esperar na janela.
DONA JOANA-GIL:
– Adeus!
DONA CLARA (triste): – E ele gosta dela…
(Dona Joana, Caramanchel e Manolo saem. Dom Pedro chega com dom Martim-Gil.)
DOM JOÃO:
– Tu mudaste. Eu vi os dois.
DONA INÊS:
– Queixa-te de mim depois.
Meu pai está a chegar.
DOM JOÃO:
– Tirana, hás de me pagar! (vai saindo)
DONA INÊS (a dona Clara, que vira o rosto):
– Eu juro (faz o sinal da cruz)! Só o que sei
é que eu prefiro um pé
de dom Gil à mão de um rei.
DOM PEDRO (entra com dom Martim-Gil):
– Inês!
DONA INÊS: – Ah, meu pai, Dom Gil
é a própria graça, é o gosto
que o amor guarda consigo!
Desde que o vi já o adoro!
(vê dom Martim-Gil e diz à parte): – Quem será este senhor?
DOM PEDRO (à parte, a dom Martim-Gil):
– Dom Gil, quando Inês te viu?
DOM MARTIM-GIL (à parte a dom Pedro):
– Não sei quando. Só se foi
quando eu vinha para cá.
DOM PEDRO (à parte, a dom Martim-Gil):
– Bem, dom Gil, tua figura
fez milagres. Vai a ela
e agradece.
DOM MARTIM-GIL: – Senhora,
então na rua me viste?
Esse é o motivo de ouro
do que por mim já sentiste?
Tu me aceitas, meu tesouro?
DONA INÊS (indignada):
– Eu senti o quê por ti?
Nunca te vi. Estás louco?
DOM PEDRO:
– Mas, filha, tu não disseste
que viste dom Gil? Dom Gil
é o rapaz aqui presente.
DOM MARTIM-GIL:
– Eu sou dom Gil, amor meu.
Cheguei de Valadoli.
E em toda a Valadoli
só há um dom Gil. Sou eu.
DONA INÊS (ao pai):
– Dom Gil? Isto é brincadeira!
DOM PEDRO:
– Pois juro que é ele mesmo.
DONA INÊS (ao pai)
– Dom Gil com toda essa barba?
Meu dom Gil é um Gilzinho,
um galante rapazinho.
DOM PEDRO:
– Filha, como é esse outro?
DONA INÊS:
– Ah, seu rosto é puro pêssego,
e tem palavras de mel.
E usa umas calças verdes.
Não são calças. São o céu!
DOM PEDRO:
– Seu nome é dom Gil de quê?
DONA INÊS:
– É dom Gil das Calças Verdes.
Assim o chamo, e me basta.
DOM PEDRO:
– Ela perdeu o juízo.
Que dizes tu, dona Clara?
DONA CLARA:
– Que meu amor é só dele,
e pedirei a meu pai
que me case já com ele.
DONA INÊS (furiosa):
– Primeiro te arranco a alma!
DOM PEDRO:
– Calma, filha, muita calma.
DOM MARTIM-GIL:
– Eu sou dom Gil, meu encanto!
DONA INÊS:
– Só dom Gil das Calças Verdes
eu amo!
DOM PEDRO (pondo as mãos na cabeça): – Amor por calças!
DOM MARTIM-GIL:
– Pois usarei calças verdes
se isso te agrada tanto!
DOM PEDRO:
– Louca!
DONA INÊS: – Dom Gil de minha alma!
(Enquanto muda a cena, os moleiros movem o moinho e dançam Los Quatro Muleros)
SEGUNDO ATO
Cena 1
Rua em Madri. Ao fundo várias casas, com saídas e cercadinho tipo terraço: a de dom Martim-Gil; a de dona Joana-Elvira; a de dom Pedro e dona Inês. Esta última tem janela em cima, que será usada no terceiro ato, e deve ficar num canto da cena, meio de lado do palco. A cena se passa na rua e no terracinho de entrada da casa de dona Joana-Elvira.
Teresa e Lourença, dona Joana-Elvira; dona Inês, dom João; Ximena (aia de dona Joana-Elvira).
(Teresa sai para o terraço com Lourença e dona Joana, que está vestida de mulher.)
TERESA (a dona Joana-Elvira): – Ainda não vejo com quem posso comparar-te! Ah, já sei! É com o Pedro Malazartes! (consigo mesma): – Das artes das mulheres ninguém escapa.
DONA JOANA-ELVIRA:
– Teresa, um amor febril
tem por mim a dona Inês.
Dom Martim, por sua vez,
anda em busca do dom Gil,
que sou eu, o seu rival.
E, desnorteado, entende
que eu sou ou bruxo ou duende,
porque sumi, afinal.
Dom Pedro perdeu a paciência,
pois a filha insiste, sim,
em não querer dom Martim
e em chorar minha ausência.
TERESA (aconselha, zangada): – Olha bem! Se te processam, perdes a questão.
LOURENÇA (aflita): – Que situação, dona Joana! Ai, ai…
DONA JOANA-ELVIRA:
– Aos que me procuram, dai
meu sinal: as calças verdes.
E dom João quer dona Inês.
LOURENÇA:
– Cuidado, minha senhora!
DONA JOANA-ELVIRA:
– Ele me procura agora
para matar-me de vez.
De dona Clara, é sabido
que teima e faz o que quer.
E quer ser minha mulher!
TERESA:
– Darás estranho marido…
DONA JOANA-ELVIRA:
– Também aquele criado,
que tratei na vossa ausência,
me procura com premência
e já está desesperado.
LOURENÇA:
– E ele é bom?
DONA JOANA-ELVIRA: – Sim, é fiel,
alegre, e tudo consegue.
Manolo é a sombra que o segue.
E ele é Caramanchel.
TERESA:
– Mas, responde. Com que fim
viraste mulher?
DONA JOANA-ELVIRA: – Patranhas.
Vou criando as mais estranhas
por causa de dom Martim.
Ontem mesmo eu aluguei
esta casa mobiliada.
LOURENÇA:
– Uma despesa elevada…
Mas por que esta? Eu não sei.
DONA JOANA-ELVIRA:
– Dona Inês é a vizinha!
TERESA:
– E enrolas quem, nesta trança?
DONA JOANA-ELVIRA:
– Por conta da vizinhança
já ficamos amiguinhas!
Ela diz que sou o retrato
de um jovem que ela adora
e que, ao ver-me, se consola
do sumiço desse ingrato.
Agora me chamo Elvira.
TERESA:
– Já sei. Vais mudar de Gil
em Elvira vezes mil,
senhora dona Mentira.
DONA JOANA-ELVIRA: – Agora deveis retornar a Vallecas. Mas, Teresa, antes de partires, finge que estás chegando de Valadoli em busca de meu noivo dom Martim, e leva na mão uma carta…
TERESA: – Mas, senhora, para quê?
DONA JOANA-ELVIRA: – Ele pensa que quem atrapalha seu amor por dona Inês sou eu, que vim atrás dele disfarçada de dom Gil. Tu dirás que me deixaste em Valadoli, enclausurada num convento. Se ele acreditar, verá que não sou esse dom Gil. Assim fico mais sossegada.
TERESA: – Escreverás a carta agora?
DONA JOANA-ELVIRA: – Sim, e já. Está na hora de esperar minha visita.
LOURENÇA: – Que visita?
DONA JOANA-ELVIRA: – Da vizinha: dona Inês. Vamos! (vão para dentro da casa por uma porta do terraço)
DOM JOÃO (a dona Inês, chegando ao terraço de dona Joana-Elvira):
– Por um garoto, me odeias.
Um garoto, dona Inês!
DONA INÊS (com um manto sobre o vestido):
– Oh, cala-te de uma vez!
Estamos em casa alheia.
DOM JOÃO:
– Vou matar esse rapaz,
ingrata, por quem te perdes!
DONA INÊS:
– Meu dom Gil das Calças Verdes
não é quem te tira a paz.
Esse me enganou, sumiu.
Quem meu pai quer ao meu lado
é um dom Gil já barbado.
Se matas esse dom Gil,
me fazes grande favor.
É o dom Gil de Albornoz.
Mora vizinho de nós.
DOM JOÃO:
– Tão perto do meu amor?
E ele te incomoda?
DONA INÊS: – Sim.
DOM JOÃO:
– Então podes esperar,
que os sinos irão dobrar,
pois a ele darei fim. (sai para a rua)
DONA JOANA-ELVIRA (sai pela porta da casa, para o terraço):
– Dona Inês! Vieste ver-me em meu recanto? (chama a aia): – Olá! Não vens tirar o manto da visita? Olá! (a dona Inês): – Dona Inês, mil perdões pela demora, mas a aia, a velha Ximena, mal consegue caminhar…
XIMENA (arrastando-se, fala ao ouvido de dona Joana-Elvira): – Pronto, senhora, aqui estou. Tua dama de honor, ou velha de honor, ou sábia de honor. Porque, quanto mais dias de vida, mais sabedoria aprendida (aproxima-se de dona Inês, tira seu manto, deixa-o nalgum lugar e sai)
DONA INÊS: – Oh, dona Elvira, pareces tanto com quem se esquece de mim agora…
DONA JOANA-ELVIRA: – E eu também sei de alguém que não me quer mais e antes me quis…
DONA INÊS: – Quem é? Se aceitas minha amizade, já que te contei minha tristeza, conta-me agora o que te faz sofrer.
DONA JOANA-ELVIRA: – Pois eu amo o ingrato dom Rafael. Ele me deu palavra de esposo, mas penso que se cansou de mim. Só sei que foi para Valadoli, para a casa de seu primo dom Gil de Albornoz, amigo de um dom Martim, que vem a ser filho de um dom André.
DONA INÊS (à parte, lembrando): – Dom… André? Foi quem escreveu a carta a meu pai…
DONA JOANA-ELVIRA: – Dom André queria pedir tua mão para o filho, dom Martim. Este já estava comprometido com uma dona Joana. Então, dom André pediu tua mão para dom Gil. Dom Rafael, sabendo que tinhas um bom dote e que eras bela, ficou logo interessado. Atropelou amizades e furtou a carta que dom André escreveu para teu pai. Ela foi parar, bem guardada, no bolso do meu Rafael disfarçado de dom Gil. O verdadeiro dom Gil, sabendo disso, veio atrás dele, assim como eu. E nós dois nos encontramos. Somos tão parecidos que ele, olhando-me, se enamorou de mim. Coisas do amor…
DONA INÊS: – Dom Gil de Albornoz?
DONA JOANA-ELVIRA: – Não esse, que é meu falso dom Rafael! Mas sim um que usa calças verdes, o qual, aliás, eu não quero. Mas, vendo que o meu dom Rafael já tem o “sim” de teu pai, aluguei esta casa para ver aonde isso vai parar.
DONA INÊS:
– Que farei? Triste de mim…
Um homem comprometido,
e meu pai lhe deu o “sim”.
Mas, não temas. Direi “não”!
DONA JOANA-ELVIRA:
– E eu também direi “não”
a dom Gil das calças verdes.
DONA INÊS:
– Dona Elvira dos meus olhos,
tua escrava eu hei de ser!
Adeus! (ela sai de lá e entra em sua casa)
DONA JOANA-ELVIRA: – Ela acreditou
que uma dona Elvira eu sou!
Ora homem, ora dama,
o que não fará quem ama?
E inventei dom Rafael.
É de tirar-se o chapéu!
(Dona Joana-Elvira entra em sua casa pela porta do terraço, por onde Teresa e Lourença saem e vão para a rua.)
TERESA: – Viste o que dona Joana inventa? Agora tenho de dizer a dom Martim que a deixei num convento definhando! É demais. Só para dom Martim não desconfiar que ela é o outro dom Gil sem barba.
LOURENÇA: – Quanta coisa só para reconquistar um homem… Cansa só de pensar. E agora dona Joana virou dona Elvira e inventou um dom Rafael, que se passa por dom Gil de Albornoz, mas que na verdade é dom Martim. Cruzes! E ainda diz à dona Inês que se encontrou com ela mesma, quer dizer, com o tal dom Gil sem barba, por quem dona Inês se encantou.
TERESA: – Encantar é bem a palavra. Tudo parece um feitiço. Bem, Lourença, vou indo cumprir minha tenebrosa missão: mentir e dar péssimas notícias a dom Martim.
LOURENÇA: – Quem sabe o coração dele se comove, Teresa… Dona Joana luta tanto por isso…
TERESA: – Lourença, cuida da velha aia Ximena. Ela mal se agüenta nas pernas. E espera que eu volto já! (ela sai e Lourença volta para a casa)
Cena 2
Os meninos cantam Sospiró uma Señora.
Mesmo local da cena anterior.
Dom Martim-Gil, Teresa; Osório; dom João; Sancha.
(Dom Martim-Gil passa pela rua em direção à casa onde se hospeda; vem conversando com Teresa, e zangado):
DOM MARTIM-GIL
– Então ela foi deixada
nesse convento encerrada?
TERESA (dramática):
– Sim, pobre dona Joana.
E as lágrimas que derrama!
Vai aos poucos definhando…
DOM MARTIM-GIL:
– E eu pensei que estava aqui,
vinda de Valadoli,
de homem se disfarçando…
TERESA:
– Coitada! Neste momento,
reza com suas iguais
salmos penitenciais
por ti. Já lhe falta o alento!
DOM MARTIM-GIL:
– Ai, corre risco de vida…
Teresa, nesta semana
já devo estar de partida,
e hoje lhe escrevo uma carta.
TERESA:
– E eu amanhã, de passagem,
pegarei essa mensagem.
DOM MARTIM-GIL:
– É boa idéia! (à parte, consigo mesmo): – Contanto
que ela não vá ao recanto
onde finjo de dom Gil,
tramando tramóias mil!
(a Teresa): – Agora, Teresa, adeus! (dirige-se à entrada de sua casa)
TERESA (à parte):
– Quanta confusão, meu Deus…
(Teresa vai saindo pelo fim da rua. Dom João aparece na rua vindo do outro lado. Vê dom Martim-Gil e se dirige a ele; antes da fala há o duelo do sapateado.)
DOM JOÃO (
– Então, dom Gil de Albornoz!
Corre por aí a voz
de que és um homem valente
vendo um inimigo à frente.
Pelo amor de dona Inês,
desafio-o a um duelo,
no Prado, além do castelo.
E veremos de uma vez
se tu tens, de corajoso,
o quanto tens de amoroso.
DOM MARTIM-GIL (fleumático):
– Tira a cólera da vida!
Não duelo sem razão.
Deixa que a dama decida,
com um “não” ou com um “sim”,
se ela te quer, dom João,
ou se ela prefere a mim.
DOM JOÃO:
– Mas dona Inês me confessa
que, por princípio, obedece
a seu pai.
DOM MARTIM-GIL: – E a ti, então,
acabou de dar o “não”!
Pois espera que casemos.
Mais tarde, então, duelemos!
DOM JOÃO:
– Ou fazes pouco de mim,
ou valente tu não és.
Darei jeito nisso, sim,
e trocamos de papéis. (ele sai)
DOM MARTIM-GIL (consigo mesmo):
– Minha fleuma não foi má
para aquela raiva louca
com que ele me provoca.
Tudo se resolverá.
Minha viagem atraso
e com dona Inês me caso.
Dona Joana, que é tão boa,
com certeza me perdoa.
OSÓRIO (chega correndo e sem fôlego): – Ainda bem… que estás aqui… Passei pelo Correio e havia cartas… Acho que são importantes.
DOM MARTIM-GIL (recebendo o pacote que o criado entrega):
– Bem, no pacote está escrito “Para dom Gil de Albornoz”.
OSÓRIO: – Que é como te chamam por aqui.
DOM MARTIM-GIL (abrindo o pacote e tirando duas cartas): – Só pode ser de meu pai. A primeira carta é: “A meu filho dom Martim”. E esta outra…: “A Agostinho Camargo, mercador”. Meu pai é homem brilhante.
OSÓRIO: – Tomara que esse Agostinho nos libere algum dinheiro.
DOM MARTIM-GIL: – Ah, isso é negócio certo. Ele atende o dia todo na porta leste da muralha da cidade. A porta que dá para Guadalajara.
OSÓRIO: – Ah, que alívio, porque eu já estava duro. (puxa os bolsos vazios)
DOM MARTIM-GIL (lendo a carta do pai): “Filho, para que tudo te corra bem, mando-te uma ordem de pagamento de mil escudos. Digo nela que o dinheiro é para dom Gil de Albornoz, meu parente. Manda Osório cobrá-lo, porque esse Agostinho te conhece como dom Martim. Dona Joana sumiu da casa dela desde que partiste. Todos lá estão intrigados com isso. Deus te guarde. Teu pai.”
OSÓRIO:
– E dona Joana, onde anda?
DOM MARTIM-GIL:
– Teresa trouxe uma carta.
Por ela fiquei sabendo
onde ela está se escondendo:
num convento, e definhando.
Respondo a carta uma vez
e caso com dona Inês.
Mais tarde escrevo a Joana,
e acalmo meu pensamento
arranjando uma maneira
de aconselhá-la a ser freira.
Assim, fico sem cuidado.
OSÓRIO (filosoficamente):
– Estando já num convento,
é meio caminho andado.
SANCHA (sai da casa de dom Pedro para a rua e se dirige a dom Martim-Gil): – És o senhor dom Gil de Albornoz?
DOM MARTIM-GIL: – Sou.
SANCHA (afobada e desajeitada): – Sou Sancha, criada de dom Pedro. Ele me mandou aqui, porque seu pajem não está. Eu não sirvo para dar recado de pajem, mas enfim… Dom Pedro te chama agora mesmo, para que se combine logo o casamento com sua filha, embora ela passe o dia chorando pelos cantos. Ai (bate na boca), isto não era para ser dito. Bem, fica o dito pelo não dito. Com licença.
(Sancha sai correndo e entra em casa de dom Pedro. Dom Martim-Gil põe as cartas no bolso interno do casaco de Osório, mas não percebe que está furado e as cartas caem no chão. Nenhum dos dois se dá conta do fato e saem andando.)
DOM MARTIM-GIL: – Vamos, Osório. Deves ir logo à porta leste cobrar esses escudos; pois, se me caso hoje, preciso comprar jóias para minha esposa, minha bela dona Inês! (saem os dois)
Cena 3
Tema musical de Caramanchel. Mesmo local da cena anterior.
Caramanchel, Manolo, dona Joana-Gil.
Caramanchel aparece na rua com Manolo e vê dona Joana-Gil saindo da casa de dona Joana-Elvira.
CARAMANCHEL (zangado, a dona Joana-Gil):
– Não sirvo nem mais um instante
a um dom Gil invisível,
pois para mim foi terrível
teu sumiço fulminante.
DONA JOANA-GIL:
– Mas ficas desempregado?
MANOLO (como se nem ouvisse):
– Caramanchel é danado.
Contratou um pregoeiro
e o mandou apregoar (imita o pregoeiro):
“Quem achar por estas ruas
um dom Gil das Calças Verdes
sumido de ontem pra cá
será bem recompensado!”
Teu lacaio não é tolo.
CARAMANCHEL:
– Cala essa boca, Manolo! (empurra-o e fala com dona Joana-Gil):
– Senhora, andei pelas ruas
bastante desalentado.
Nem tive notícias tuas.
MANOLO:
– E o pregoeiro, coitado,
ficou morto de cansado.
DONA JOANA-GIL (mostrando-se romântico):
– Caramanchel, eu andei
em certa casa escondido
por quem me chama “querido”.
Vizinho a ela morei.
CARAMANCHEL:
– Por acaso é dona Inês?
DONA JOANA-GIL:
– É. Vou mandar-lhe uma carta,
mas preciso de papel.
Busca algum, Caramanchel.
MANOLO (vendo no chão as cartas que caíram do bolso de Osório):
– Papel é o que aqui não falta. (apanha o pacote aberto)
CARAMANCHEL (arranca-lhe o pacote das mãos):
– É um envelope (vê mais dois envelopes dentro), ou são três?
Vamos, lê o sobrescrito!
DONA JOANA-GIL (espantada):
– “Para Dom Gil de Albornoz”!
CARAMANCHEL (indignado):
– Mas, alguém abre em Madri
as cartas? Eu nunca vi!
É crime que causa dano!
MANOLO (filosoficamente):
– Vai ver, abriu por engano.
DONA JOANA-GIL (lê a carta aberta):
– Ai, meu Deus!
CARAMANCHEL: – Já tens mudada
a voz e a fisionomia.
DONA JOANA-GIL (continuando a ler):
– Bons presságios. Quem diria?
CARAMANCHEL:
– Lê a outra!
DONA JOANA-GIL: – Está fechada.
É para um certo Agostinho
de Camargo, mercador.
CARAMANCHEL:
– Eu conheço este senhor.
Tem um grande capital.
Faz negócios no portal
que dá pra Guadalajara.
Por isso mudaste a cara.
DONA JOANA-GIL (confirmando sua mudança):
– Recebi, neste momento,
uma ordem de pagamento
de mil escudos. Vou ter
dinheiro a mais não poder.
Por pouco que não desmaio.
CARAMANCHEL:
– Sou teu eterno lacaio!
Pois hoje te levantaste
com o pé direito. Que bênção!
Caiu dinheiro do céu!
MANOLO (tira o chapéu):
– Amigo Caramanchel,
vamos viver na abastança!
DONA JOANA-GIL (consigo mesma):
– Vou mandar minha Lourença
para fazer a cobrança! (os três saem pela rua)
(Meninas se sentam na frente e cantam Las Três Hojas.)
Cena 4
Sala da casa de dom Pedro e porta de saída.
Dona Inês, dom Pedro; dona Joana-Gil; Lourença.
DONA INÊS (com seu pai, na sala):
– Meu pai, digo que estás sendo enganado,
e que esse dom Gil que me ofereces
jamais por esse nome foi chamado.
DOM PEDRO (zangado):
– Eu não sei porque mentes e reclamas.
Dom André me escreveu, falou do homem!
Não é dom Gil só porque não o amas?
DONA INÊS:
– Dom Rafael Cisneros é seu nome.
Com uma dona Elvira está casado.
E é Burgos a pátria desse homem.
A própria dona Elvira me contou.
Veio atrás dele e mora aqui ao lado.
Pergunta a ela a farsa que ele armou!
DOM PEDRO (ainda em dúvida):
– E a carta? Dona Elvira é que te engana.
Pois não pode ser falsa a assinatura.
Na letra, a natureza é soberana.
DONA INÊS:
– Repara que dom Gil, o verdadeiro,
a quem eu nomeei das Calças Verdes,
é um galhardo e jovem cavalheiro.
Esse é que foi por dom André mandado.
Dom Rafael, amigo da família,
soube meu dote, e a carta foi roubada.
Veio às pressas, fingiu-se de dom Gil,
deu a carta a meu pai, que logo a abriu.
O dom Gil verdadeiro veio atrás
e não quis desmentir tanta mentira,
vendo o outro apoiado por meu pai.
Até que conheci a dona Elvira
que revelou toda a verdade enfim.
Pensa bem. Se me casas com esse homem
já casado, ah, que será de mim?
DOM PEDRO (agora indignado):
– Pode haver tal tramóia?
DONA INÊS: – E não sabias?
DOM PEDRO:
– E onde está dom Gil das Calças Verdes?
DONA INÊS:
– Dona Elvira, que mora aqui vizinha,
ficou de o enviar no fim do dia. (avista Dona Joana-Gil chegando)
Oh, aí vem toda a esperança minha!
DONA JOANA-GIL (aparecendo):
– Eu venho pedir perdão,
senhora, por minha ausência.
Mas andei muito ocupado
pela terrível premência
de desmentir um traidor.
Meu nome até foi roubado
porque ele quis teu amor.
DONA INÊS:
– Tudo isso é já passado.
Eu te dou o meu perdão.
E meu pai eu te apresento,
a quem dei conhecimento
de toda essa traição.
DONA JOANA-GIL (inclina-se ante dom Pedro):
– Por sorte, hoje eu recebi
mensagem de dom André. (mostra o envelope)
DOM PEDRO (lendo o sobrescrito):
– A verdade se confirma.
É letra de dom André.
O dom Rafael Cisneros
é um gentil embromador.
De minha filha e da casa
tu hás de ser o senhor. (abraça-o)
DONA INÊS:
– Ah, desfiz toda a suspeita!
DONA JOANA-GIL:
– Pago-te com meu amor. (abraça-a)
LOURENÇA (aparece na entrada): – Meu senhor dom Gil está aqui?
DONA JOANA-GIL (acorre à porta e pergunta baixo): – Lourença, fizeste a cobrança?
LOURENÇA: – Em ouro puro, dona… dom Gil.
DONA JOANA-GIL (voltando-se para os outros): – Um negócio importante me obriga a vos deixar agora. Voltarei à noite.
DOM PEDRO: – E é bom que se realize logo o casamento, que sempre corre algum perigo. Minha Inês será tua.
DONA INÊS: – Ah, como sou feliz!…
DONA JOANA-GIL: – Eu volto logo. Adeus! (sai e se encontra com Lourença)
LOURENÇA (chama já na rua): – Vamos, dona Joana, dona Elvira, dom Gil!
DONA JOANA-GIL: – Lá vou eu: Joana, Elvira, Gil!
DOM PEDRO (na sala, a dona Inês):
– É um rapaz discreto esse dom Gil.
Inspira simpatia. Está prometido:
se volta aqui aquele embromador
com suas farsas, sairá corrido.
Cena 5
Rua com as casas ao fundo.
Dom Martim-Gil, Osório; dom Pedro, dona Inês.
DOM MARTIM-GIL (na rua, a Osório): – Onde será que caíram? Tu não sabes?
OSÓRIO: – Como vou saber? Acho que leste a carta de teu pai perto daqui.
DOM MARTIM-GIL: – Olhaste bem?
OSÓRIO: – Sim, mas não vejo nem sinal delas.
DOM MARTIM-GIL: – Ai, desgraçado de mim! Os mil escudos perdidos! Olha, Osório, vai ao mercador, explica tudo a ele e vê se é possível a cobrança.
OSÓRIO: – Então implora a Deus que outro já não tenha cobrado. Mas… (olha para a porta da casa) ali está dona Inês. (Osório sai)
DOM MARTIM-GIL (à parte): – Ela vai olhar-me com desprezo. (avista dona Inês e dom Pedro na entrada da casa): – Oh, senhores! (inclina-se)
DOM PEDRO:
– É digno de um cavalheiro
vires aqui, dom Rafael,
com disfarces de embusteiro?
Não és dom Gil de Albornoz,
mas sim Rafael Cisneros,
enganando a todos nós.
Tu és ladrão de um papel.
Queres, de um modo tão vil,
fingir que és um dom Gil,
sendo tu dom Rafael?
DOM MARTIM-GIL (espantadíssimo):
– Não estou entendendo nada.
Dom Rafael, eu?
DOM PEDRO: – De Burgos.
(diante do espanto do outro, que julga falso): – A mentira é agravada.
DONA INÊS:
– Por dona Elvira se soube
que és um falso dom Gil.
DOM MARTIM-GIL:
– É essa a autora cruel
de uma invenção tão sutil?
DONA INÊS (indignada):
– Foi descoberta a mentira!
DOM MARTIM-GIL (para si mesmo):
– Mas quem será dona Elvira?
DOM PEDRO:
– Pois saibas, dom Rafael,
que o verdadeiro dom Gil
saiu há pouco daqui
já noivo de minha filha!
DOM MARTIM-GIL (implorando):
– Oh, céus! Algum traidor
veio enganar-te, senhor!
DOM PEDRO (escorraça-o):
– Vai embora de uma vez!
Não terás a minha Inês!
DOM MARTIM-GIL (sai pela rua e fala consigo mesmo): – Não entendo tamanha confusão. Eu, de Burgos, eu, dom Rafael, um dom Gil me persegue, e ainda perco as cartas todas!…
OSÓRIO (chega de volta do mercador): – Fizeram conosco uma boa!
DOM MARTIM-GIL: – Falaste com o mercador?
OSÓRIO: – Antes não tivesse falado. Foi lá um dom Gil de Albornoz. Pelo menos assinou esse nome. E cobrou tudo.
DOM MARTIM-GIL (espantado): – Dom Gil?
OSÓRIO: – E anda de calças verdes, foi o que disse o mercador.
DOM MARTIM-GIL: – Esse dom Gil das Calças Verdes está me tirando do sério. Furtou-me as cartas e se deu bem. Que o diabo leve esse dom Gil! (os dois saem)
TERCEIRO ATO
Cena 1
Cenário da rua com as casas atrás.
Dom Martim-Gil e Teresa.
DOM MARTIM-GIL (andando pela rua com Teresa, desesperado):
– Não fales mais, por favor!
Se dona Joana morreu,
meu ânimo se abateu.
Ela foi meu grande amor!
Foi o Céu o vingador
de minha atroz crueldade.
E, por infelicidade,
fui eu o seu matador.
O bem tem os pés de chumbo,
vai devagar, sem alento,
e o mal voa como o vento!
TERESA:
– Deixa contar-te o momento
em que ela deixou o mundo.
Tua carta estava lendo,
quando desmaiou, dizendo:
“Adeus, dom Mar…” Foi assim.
Nem pôde dizer o “tim”.
Suspirando de mansinho,
morreu como um passarinho.
DOM MARTIM-GIL:
– Não fales! Tudo em mim chora…
TERESA (com seu jeitão engraçado, esquecendo o lado trágico):
– Nem que eu queira! A dor é tanta…
Tenho a alma na garganta.
Se eu falo, ela pula fora!
DOM MARTIM-GIL:
– Sei que sofres e suspiras.
E eu… morro de pesar.
TERESA (à parte):
– Não sei que conta vai dar
tanta soma de mentiras.
DOM MARTIM-GIL:
– É bem possível – não vês? –
que seja a alma inocente
de dona Joana que sente
por eu querer dona Inês,
e se passa por dom Gil.
Muita gente já o viu.
TERESA (à parte):
– Ele pensa – essa é boa! –
que a pobre é alma penada,
de dom Gil fantasiada.
Tem sorte a minha patroa.
(a Dom Martim-Gil): – Ah, dom Martim, e eu achei que não passava de ilusão o que andam dizendo lá em Valadoli.
DOM MARTIM-GIL (curioso e espantado): – Mas andam dizendo o quê?!
TERESA: – Que ninguém mais dorme sozinho. Que dona Joana apareceu para o pai vestida de homem, com uma roupa verde, e dizendo que vinha perseguir-te como dom Gil, porque tu andas aqui disfarçado com esse nome. O pai mandou dizer 100 missas por ela, mas não adiantou.
DOM MARTIM-GIL (deprimido): – A culpa é toda minha…
TERESA (como se não soubesse): – E é verdade que aqui te chamas dom Gil?
DOM MARTIM-GIL: – Meu pai me transformou em dom Gil por interesse e cobiça, por causa do dote de dona Inês.
TERESA: – Mas ainda pensas em casar com ela?
DOM MARTIM-GIL (meio sem jeito): – Se dona Joana morreu… Se eu não casar com dona Inês estarei afrontando meu pai. Mandarei rezar mil missas por dona Joana nas igrejas mais importantes, para que ela descanse em paz.
TERESA (à parte): – De tantas missas, dona Joana vai subir ao céu ainda viva.
(Os dois saem por um extremo da rua.)
Cena 2
Mesma cena.
Dona Inês, Caramanchel e Manolo; Sancha.
(Dona Inês aparece na varandinha de sua casa.)
DONA INÊS (vendo passar Caramanchel): – Onde anda o teu senhor?
CARAMANCHEL: – Sabe-se lá, senhora! Por mais que eu procure esse meu amo das calças verdes, mesmo sendo o verde a cor da esperança, já perdi a esperança de encontrá-lo. Ele escorre de meus dedos tal como as moedas, e só sei que anda às voltas com uma tal dona Elvira.
DONA INÊS: – Sei disso. São como irmãos.
MANOLO (à parte): – Hum… Eu só sei que ele está sempre entrando na casa dela.
CARAMANCHEL: – Estou aqui com uma carta de meu amo para essa dona Elvira, mas como agora a casa está fechada e sem criada para atender, vim procurar dom Gil aqui para lhe devolver a carta. (revira o envelope) Está até meio aberta. Dá para ler… “dona Inês… vou lá… não fiques com ciúmes… sou teu”.
DONA INÊS (zangando): – Onde se viu isso, leres carta dos outros! (tira-lhe a carta e fala consigo mesma, enraivecida): – Este dom Gil está me saindo um galanteador mentiroso.
SANCHA (aparece toda desajeitada): – Dona Inês, venho trazer recado de dona Clara porque o pajem não está. Acho que nunca está, porque vivo levando recados para lá, para cá (bate na boca). Cala-te, boca! Mas, como eu ia não dizendo, dona Clara vem fazer-te uma visita. (sai correndo, segurando a touca)
DONA INÊS (zangada): – A prima Clara também está louca por dom Gil. Já vi que só dom João me ama com amor sincero. Vou casar-me com ele e dizer umas verdades a dom Gil.
CARAMANCHEL (à parte):
– Ai, minha boca indiscreta.
MANOLO:
– É coisa de mau lacaio.
CARAMANCHEL:
– Noutra dessas eu não caio.
Revelei coisa secreta. (ele sai disfarçadamente, e dona Inês entra em casa)
Cena 3
Mesma cena.
Dona Joana-Gil, Teresa, Lourença.
(Dona Joana-Gil conversa com Teresa e Lourença junto do moinho.)
TERESA (fala de dom Martim a dona Joana-Gil):
– Pensa que és alma penada!
Vai mandar rezar mil missas!
Mas não deixa, nem por nada,
de lutar por dona Inês.
LOURENÇA (conciliadoramente):
– É de seu pai a cobiça,
e ele obedece de vez.
DONA JOANA-GIL:
– Pois a meu pai escrevi
dizendo que estou à morte
na cidade de Alcorcón,
onde Martim me atacou.
Triste noiva tão sem sorte.
E ele virá a Madri.
LOURENÇA (reprovando):
– Para seu pai esse ardil?
DONA JOANA-GIL:
– É por causa de Martim,
que anda fugindo de mim,
se passando por dom Gil.
Tracei agora este enredo
com toda a minha esperteza.
E já sei que, com certeza,
ele está sentindo medo.
TERESA:
– És mulher muito engenhosa,
mas amiga perigosa.
Deus permita que eu consiga
ser sempre só tua amiga.
(Enquanto dona Joana-Gil se dirige à casa de dona Inês, Teresa e Lourença continuam conversando junto do moinho.)
LOURENÇA: – Ainda mais essa! Coitado de dom Diego, o santo pai de dona Joana! Vem por aí correndo, pensando que a filha está à morte!
TERESA: – Dom Martim, por sua vez, acha que ela já morreu e virou alma do outro mundo assombrando as pessoas! Será que isso vai trazê-lo de volta a ela?
LOURENÇA: – Não sei, não… Dona Joana ora é dom Gil das Calças Verdes, ora é dona Elvira… Já ouvi dizer que seu lacaio, o Caramanchel, e mais a sua sombra, o tal Manolo, andam doidinhos com tanta confusão e até desconfiados. (as duas saem por trás do moinho.)
Cena 4
Mesma cena das casas.
Dona Clara, dona Joana-Gil, dona Inês; dom João, Caramanchel e Manolo.
(Dona Clara vem chegando e avista dona Joana-Gil. Dona Inês ia saindo para o terracinho, mas resolve se esconder para ouvir a conversa.)
DONA CLARA: – Dom Gil! (faz um cumprimento gracioso)
DONA JOANA-GIL (inclina-se): – Dona Clara!
DONA CLARA: – Então! Não achas que poderias ser cortês comigo um dia? Ora, nem mesmo um dia, mas uma hora, um minuto. Também tenho casa e dote como dona Inês e, além disso, te quero bem.
DONA JOANA-GIL: – A mim?
DONA CLARA: – Por que não?
DONA JOANA-GIL: – Sou pessoa sem importância, além disso um pouco tímido. Como poderia ser pirata de tua formosura? Meu coração se transformaria numa salamandra no fogo de minha admiração por ti.
DONA CLARA: – Pois saibas que tenho muitos pretendentes, mas quem merece meu prêmio anda de verde como a esperança que sinto, e se chama dom Gil.
DONA JOANA-GIL: – Ah, deixa-me beijar-te a mão. ( beija-a)
DONA INÊS (escondida, consigo mesma, tendo ouvido a conversa):
– Que será isso? Dom Gil
beija a mão de minha prima!
Foi pegando-a, bem sutil,
e pôs logo a boca em cima!
Homem com barba tão pouca,
mas que sabe usar a boca!
DONA CLARA (a dona Joana-Gil):
– Eu vinha visitar a prima Inês,
mas não posso, de tão emocionada! (sai depressa)
DONA INÊS (consigo mesma):
– Vou falar com dom Gil! E é de uma vez!
Estou quase morrendo sufocada. (ela aparece para Dom Gil)
DONA JOANA-GIL (inclina-se num cumprimento):
– Oh, dona Inês!
DONA INÊS: – Embusteiro!
Enganas o mundo inteiro!
O teu verdadeiro intento
é como uma pluma ao vento.
Não tens vergonha na cara?
Embromaste dona Elvira,
e agora pregas mentira
para mim e dona Clara!
Tu queres casar com as três,
tal como um sultão na Espanha?
Não caio na tua manha!
Não contes com dona Inês!
DONA JOANA-GIL:
– Mas, que dizes tu, meu bem?
DONA INÊS:
– Que um raio te parta! Amém!
DONA JOANA-GIL:
– Fui irmão com dona Elvira.
Com dona Clara, gentil.
DONA INÊS (imita-o com exagero):
– E agora por mim suspira
o apaixonado dom Gil!
DONA JOANA-GIL (consigo mesma):
– Isto vai mal… (a dona Inês): – Perdoa, dona Inês,
mas direi a verdade desta vez.
Eu sou Elvira, de dom Gil vestida.
Pensei que estavas toda derretida
pelo meu Rafael… Naquela carta
e nesta cena aqui com dona Clara,
eu quis testar se ainda tens ciúme
de Dom Gil. Mas não é o meu costume
fazer isto. Perdoa, minha amiga.
DONA INÊS:
– Não estou bem convencida… Quanta intriga!
DONA JOANA-GIL:
– Pois empresta-me um traje teu agora,
e tu me reconhecerás na hora! (as duas entram em casa)
(Caramanchel vem vindo com Manolo por uma ponta da rua, dom João vem pela outra. Os três se encontram.)
DOM JOÃO: – Tu és o lacaio de dom Gil de Albornoz?
MANOLO: – Que nada, senhor. Ele é lacaio de dom Gil das Calças Verdes.
CARAMANCHEL (empurra Manolo): – É verdade, mas raramente vejo meu amo. Preferia que ele me mandasse engraxar suas botas, levar algum recado, saber como vai a gripe de dona Mafalda, mas ele sempre some das minhas vistas.
DOM JOÃO: – Vai ver que está apaixonado.
MANOLO: – E muito! (Caramanchel o empurra)
DOM JOÃO: – Por dona Inês, a dama que mora aqui? (aponta a casa)
CARAMANCHEL: – Não! Por dona Elvira, a dama que mora ali! (aponta a casa)
DOM JOÃO: – E dona Inês ama esse dom Gil…
CARAMANCHEL: – Tanto, que morre de ciúmes!
DOM JOÃO:
– E eu amo dona Inês. Por causa dela,
posso gastar a vida e a fortuna,
mas afasto o dom Gil que me importuna.
Vou em busca do teu!
CARAMANCHEL (exclama entusiasmado): – Que bravo Aquiles!
DOM JOÃO (saindo, arrebatado):
– Darei conta de todos os dom Giles!!
Cena 5
Mesma cena. Penumbra. Os meninos vão para o moinho. As meninas ficam nas janelas, nos degraus, uma delas atravessa a cena suspirando. Os meninos cantam Sospiró uña Señora.
Caramanchel, Manolo; Dona Inês, dona Joana-Elvira; dona Inês; suas criadas Leonor e Luiza; dom João-Gil; dom Martim-Gil, Osório; dona Clara-Gil; dona Joana-Gil, Teresa e Lourença; a aia Ximena.
(Anoitece. Dona Inês e dona Joana, esta já vestida de Elvira, aparecem no terracinho.)
DONA INÊS: – Ah, quem me dera que fosses mesmo dom Gil! És o retrato dele…
DONA JOANA-ELVIRA (conforta-a): – Ele passará por aqui esta noite, tu verás.
DONA INÊS: – Tomara que esta hora chegue logo, dona Elvira.
MANOLO (lá fora, a um canto, cutucando Caramanchel): – Alguém disse o nome de dona Elvira.
CARAMANCHEL: – Será que ela está aí com dona Inês? Vou chegar mais perto para ver.
DONA INÊS (ao vê-lo aproximar-se): – Olá! Que queres aqui?
CARAMANCHEL: – Dona Elvira está aí?
DONA JOANA-ELVIRA: – Estou, sim.
CARAMANCHEL (está escuro; ele chega mais perto, assusta-se e diz à parte):
– Oh, céus, mas que coisa louca!
Meu dom Gil de saia e touca!
São feitos da mesma argila?
MANOLO:
– São. De dia vês dom Gil,
e de noite dona Gila.
DONA JOANA-ELVIRA:
– Que dizeis?
CARAMANCHEL: – Que és dom Gil.
DONA JOANA-ELVIRA:
– Como? Acaso tu deliras?
DONA INÊS:
– Esta dama é dona Elvira.
São parecidos, admito.
CARAMANCHEL (à parte, para Manolo):
– Amo ou ama, eu me demito.
Não quero senhor com saia
ou calça, homem e mulher,
pois assim vou parecer
ora lacaio ou lacaia.
MANOLO (à parte, para Caramanchel):
– Além de tudo, faz mal
comer um doce com sal.
DONA JOANA-ELVIRA (a Caramanchel):
– Somos muito semelhantes.
Dom Gil vem daqui a instantes.
DONA INÊS (a Caramanchel):
– Fica aí e espera, então.
Nós vamos para o balcão.
(As duas entram e aparecem em cima, no balcão.)
DOM JOÃO (aparece na rua de calças verdes): – Ouvi a voz de minha Inês…
DONA INÊS (a dona Joana-Elvira): – Ouço alguém chegar. Será dom Gil?
MANOLO (cutuca Caramanchel): – Um homem de calças verdes!
CARAMANCHEL (a Manolo): – Será dom Gil?
DONA INÊS: – És dom Gil?
DOM JOÃO-GIL (em voz baixa e rouca): – Sou sim, amada minha.
MANOLO (à parte, para Caramanchel): – Tem voz grossa esse dom Gil…
DONA INÊS: – És dom Gil das Calças Verdes?
DOM JOÃO-GIL: – Sou, sim. Não me reconheces?
CARAMANCHEL (à parte, para Manolo): – Eu, não.
DONA INÊS: – É que tenho dois pretendentes com o mesmo nome.
DOM JOÃO-GIL: – Mas qual deles queres?
DONA INÊS: – A ti, mas tua voz me causa dúvidas.
DOM JOÃO-GIL: – Falo baixo porque estou em lugar público.
DOM MARTIM-GIL (aparece de calças verdes e fala com Osório): – Se é um dom Gil das Calças Verdes que ela quer, aqui estou eu. Que achas, Osório?
OSÓRIO: – Que perdeste o juízo.
DOM MARTIM-GIL: – Ora, volta para casa e espera lá. (Osório sai)
DONA INÊS (a dom João-Gil):
– Dom Gil galante e discreto,
és meu dom Gil predileto.
DOM MARTIM-GIL (à parte):
– Se esse é dom Gil, é Joana
com sua alma penada.
A minha está apavorada.
É bom não ir muito a fundo
nessas coisas do outro mundo.
DONA INÊS:
-Parece que vem alguém.
DOM JOÃO-GIL: – Vou ver quem é e direi que passe adiante. (a dom Martim-Gil): – Fidalgo, por favor, passe adiante!
DOM MARTIM-GIL: – Passar para onde se aqui mora aquela com quem devo me casar?
DOM JOÃO-GIL: – Deves casar? Desde quando amor é dever? (à parte): – É dom Gil de Albornoz, que dona Inês detesta. (a dom Martim-Gil): – Chegou a hora que tanto recusaste! Saca da espada, dom Gil!
CARAMANCHEL (à parte, a Manolo): – Esse também é dom Gil das Calças Verdes! Ou são dois ou estou louco!
DONA JOANA-ELVIRA (a dona Inês): – Esse outro que chegou deve ser dom Rafael disfarçado de dom Gil.
DONA INÊS: – Com certeza.
DOM JOÃO-GIL: – Vamos, saca da espada!
DOM MARTIM-GIL:
– Eu jamais dou cutiladas
para ferir os defuntos.
Não luto com almas penadas.
Só com alma e corpo juntos.
DOM JOÃO-GIL:
– Então achas que estou morto
de medo de tua espada?
DOM MARTIM-GIL (comovido, ajoelha e deixa dom João-Gil estarrecido):
– Do céu ou do purgatório,
nesse teu verde envoltório,
tu perturbas minha vida,
ó minha amada querida.
Perdoa o mal que te fiz.
Se o fiz, não foi porque quis.
Eu te amei quando vivias.
Casar comigo querias.
Eu sei que ainda me amas,
minha querida Joana!
DOM JOÃO-GIL (à parte, totalmente abobalhado):
– Eu, Joana? Sou João.
DONA JOANA-ELVIRA (à parte):
– Que tremenda trapalhada!
Fui eu que causei tal cena?
CARAMANCHEL (à parte, apavorado):
– Todos os santos, valei-me!
MANOLO (fazendo o sinal da cruz):
– São Pelágio! Santa Helena!
DONA INÊS:
– Dona Elvira, que acontece?
DONA JOANA-ELVIRA:
– Algum louco. Olha e esquece.
MANOLO (à parte, a Caramanchel):
– Com toda essa escuridão,
só se vê assombração.
CARAMANCHEL (à parte, a Manolo):
– Eu queria ser fumaça.
Por alguma chaminé,
fugia dessa desgraça.
(Dom Martim-Gil se afasta para um canto, triste.)
DONA JOANA-ELVIRA: – Dona Inês, preciso ir tratar de um assunto com minha aia. Continua a conversar com dom Gil que eu vou até em casa. (ela desce, sai e vai até sua casa)
DONA INÊS: – Dom Gil, tu te expuseste ao perigo por mim?
DOM JOÃO-GIL: – Amor que não se atreve não é amor.
DONA CLARA (chega de calças verdes e diz, à parte): – Vejo alguém no balcão. Deve ser a prima Inês esperando por dom Gil. Vou fingir que sou ele e ver se o que ela sente é mesmo amor. (a dona Inês):
– Se mereço falar, bela senhora,
eu sou dom Gil, que teu amor implora.
CARAMANCHEL (à parte, a Manolo):
– Outro dom Gil apareceu agora.
MANOLO (à parte, a Caramanchel):
– Deus faz chover os Giles toda hora.
DONA INÊS (à parte):
– Este é meu Gilzinho de fala delicada. Com certeza o outro era dom João que demonstrava seu amor… Tenho medo que ele mate dom Gil.
DOM JOÃO-GIL (à parte): – Esse é o dom Gil idolatrado. (aproxima-se de dona Clara-Gil e a ameaça): – Foi bom teres passado por aqui para receberes a paga que mereces.
DONA CLARA-GIL: – Quem és tu?
DOM JOÃO-GIL: – Quem vai matar-te. Sou dom Gil e amo dona Inês.
DONA CLARA-GIL (à parte): – Artes do diabo me trouxeram aqui. E agora?
(Dona Joana aparece de calças verdes; atrás dela vêm em seguida chegando Teresa e Lourença.)
DONA JOANA-GIL (à parte): – Vou ver no que dá essa trapalhada e tentar falar com dona Inês.
LOURENÇA (bate no ombro de dona Joana-Gil): – Teu pai acaba de chegar.
DONA JOANA-GIL: – Então decerto virá tomar satisfações de dom Martim, porque acredita que ele me matou em Alcorcón.
LOURENÇA: – Com certeza.
TERESA: – Há mais gente nesta rua.
DONA JOANA-GIL:
– Espera. Vou ver quem é.
(aos outros): – Posso passar, cavalheiros?
DOM JOÃO-GIL:
– Quem pergunta?
DONA JOANA-GIL: – Sou dom Gil.
CARAMANCHEL (à parte, a Manolo):
– Já são quatro!
MANOLO (à parte, a Caramanchel): – E serão mil!
DOM JOÃO-GIL:
– Aqui já temos três Giles.
DONA JOANA-GIL:
– E comigo serão quatro!
(Os quatro Giles se enfileiram voltados para o público.)
DOM JOÃO-GIL:
– Dom Gil o Verde sou eu!
DONA CLARA-GIL:
– Sou dom Gil das Calças Verdes!
DONA JOANA-GIL:
– Sou dom Gil Verde e ciumento!
DONA INÊS (espantada, do balcão):
– Que estranho acontecimento!
DOM JOÃO-GIL (a dona Joana-Gil):
– Estou guardando a passagem,
e por isso vou matar-te!
DONA JOANA-GIL:
– Pois vem, se é que tens coragem! (flash em câmara lenta; Dona Joana-Gil avança e fere dom João-Gil no ombro)
DOM JOÃO-GIL (geme, cai, ergue a cabeça, fala e cai de novo):
– Levei uma cutilada!
DONA CLARA-GIL (à parte, tristonha):
– Dom Gil me desapontou.
Por quem serei adorada?
(Dom Martim-Gil, que já estava a um canto, sai. Dom João-Gil sai ferido, gemendo. Dona Clara-Gil sai também e mais dona Joana-Gil com suas criadas.)
DONA INÊS (pensativa e triste):
– Meu dom Gil feriu dom João
com a sua cutilada.
E por que será, então,
que estou triste e preocupada? (desaparece do balcão)
MANOLO (vai saindo com Caramanchel):
– A noite já se dilui
e afastou a gilzada.
CARAMANCHEL (assustado, para Manolo):
– Mas só de pensar que fui
lacaio de alma penada…
(Vai clareando a frente da cena. Leonor e Luiza saem da casa de dona Inês e caminham para a frente da cena, conversando.)
LUIZA: – Confessa que também ficaste atrás da porta espiando e ouvindo tudo!
LEONOR: – Foi para melhor aconselhar minha ama depois.
LUIZA: – É bom, mesmo. Esses homens são uns tontos. Acham que mulher se apaixona pela cor de suas calças. E todos os quatro lutam por uma dama só: dona Inês. Ela deve sentir-se importante…
LEONOR: – Será que ela não percebe que só um lhe tem amor de verdade?
LUIZA: – Que nada! Coração confuso vê tudo nublado…
LEONOR: – Aquele dom Gil barbudo que saiu primeiro parece que se arrependeu da briga.
LUIZA: – E o que chegou por último estava procurando por ele, eu percebi.
LEONOR – E sabe que naquele dom Gil mais delicado eu reconheci a voz de dona Clara? Essa também tem quem goste dela, mas não sabe…
LUIZA: – Quem é? Quem é?
(Nesse momento, as duas já estão no meio da cena. Nisto, a aia Ximena passa de um lado a outro da rua, mancando e repreendendo as duas.)
XIMENA: – Duas bisbilhoteiras tagarelas! Então não sabeis que toda essa gente está só ajeitando seu caminho, mesmo dando topada nas pedras? (ela sai.)
QUARTO ATO
Cena 1
Jardim do duque.
Dom Martim; Lourença, Teresa e um guarda; dom Diego; Célio e dom Antônio; Décio, Fábio, dona Alfonsina; dona Joana; dom Pedro; dom João, dona Inês, dona Clara; Osório; Sancha.
(Coreografia feminina com xales.)
DOM MARTIM (ainda de calças verdes, anda pelo jardim, desalentado):
– Árvores velhas deste prado lindo,
onde as folhas balançam já dormindo,
por que será que sou tão castigado?
Meu coração está atormentado.
Por que a minha amada foi morrer?
E por que dona Inês não me quer ver?
Se me escrevem, a alma de Joana,
como dom Gil, me rouba a carta e tudo,
usurpando também os mil escudos.
Não importa onde eu vá ou quem eu siga,
pois nunca falta um Gil que me persiga.
(Aparecem Teresa e Lourença com dom Diego e um guarda.)
LOURENÇA (apontando dom Martim a dom Diego): – Este é dom Martim, que se fingiu de dom Gil e matou minha ama dona Joana.
DOM DIEGO: – Guarda! Prende este homem!
GUARDA (a dom Martim): – Cavalheiro, entrega-me tuas armas!
DOM MARTIM (espantado): – Quem? Eu? A quem?
GUARDA: – À Justiça!
DOM MARTIM (entrega espada e punhal): – Que é isso agora? Que foi que eu fiz?
DOM DIEGO: – Então negas ter matado tua noiva, a minha filha?
DOM MARTIM: – Mas… se ela morreu num convento, como pude matá-la? (a Teresa): – Teresa, conta-lhe como foi!
TERESA: – Mataste dona Joana a punhaladas lá em Alcorcón. O céu pede vingança!
DOM MARTIM: – Que estás dizendo, mentirosa?
DOM DIEGO (mostrando a dom Martim uma carta): – Teresa me deu a carta em que minha filha fala de tua traição.
DOM MARTIM (lê): – A letra é dela, sim. Mas, punhaladas em Alcorcón? Eu estive em Alcorcón?
GUARDA: – Basta! Provarás tua inocência no cárcere.
DOM MARTIM (tira uma carta do bolso e a entrega a dom Diego): – Eu tenho aqui a carta de dona Joana escrita no convento onde morreu, bem longe de Alcorcón.
DOM DIEGO (lê): – Falsificaste a letra!
CÉLIO (chega com dom Antônio e fala com este, apontando dom Martim): – Olha, dom Antônio, aquele é dom Gil. Estou vendo pelas calças verdes. Foi ele que beijou a mão da prima Clara, que tu amas. Depois deixou-a e pronto.
DOM ANTÔNIO: – Oh, que abuso! Que ofensa à minha adorada Clara! Esse dom Gil é um descarado sem vergonha!
DOM DIEGO: – Com certeza minha filha foi morta por causa dessa dona Clara.
DOM MARTIM: – Que dona Clara, senhores? Eu nem conheço essa dama.
DOM ANTÔNIO: – Boa desculpa. Então não és dom Gil?
DOM MARTIM: – Assim me chamam aqui, mas não sou o das Calças Verdes.
DOM ANTÔNIO: – E não são verdes essas calças?
DOM DIEGO: – O verdugo ficará com elas, pois vai espetar na praça logo, logo, a cabeça do criminoso.
CÉLIO: – Céus! Tudo isso por ter beijado a mão de uma dama?
GUARDA: – Não. Por ter matado a noiva.
DÉCIO (vem conversando com Fábio e Alfonsina): – A situação é grave. Dizem que esse tal dom Gil matou a noiva. Que história! Parece que se apresentou a dom Pedro, pedindo a mão de dona Inês com uma carta de dom André.
DONA ALFONSINA: – Vai-se confiar nos homens hoje em dia…
DÉCIO: – Nos homens, não, alto lá! Num homem, aquele ali.
FÁBIO: – Guarda, prende esse homem!
GUARDA: – Outra acusação?
FÁBIO: – Deu uma cutilada em dom João sem motivo algum!
DONA ALFONSINA: – E foi à noite, de surpresa, bem na frente da casa de dom Pedro e dona Inês.
DOM MARTIM:
– Eu? Eu feri dom João?
Que dom João, céus? Que noite?
Que casa? Que cutilada?
Só pode ser dona Joana
com sua alma penada.
DOM DIEGO:
– Então mataste-a!
GUARDA: – Ao cárcere!
LOURENÇA:
– Esperai! Chegou um coche,
e com damas apressadas.
(Chega dona Joana e, em seguida, chegam dom Pedro, dom João, dona Inês, dona Clara e Osório.)
DONA JOANA (vendo dom Diego, corre para ele): – Meu pai!
DOM DIEGO: – Minha filha Joana! Mas, como? Viva?
CÉLIO (a Fábio, Décio e Alfonsina): – Mas este… esta…
DONA ALFONSINA (a Célio, Décio e Fábio): – Então o nome dele…
FÁBIO: – Dela!
DONA ALFONSINA: – … é Joana?
DÉCIO: – Vai-se confiar nas mulheres hoje em dia, não é, prima Alfonsina?
DONA JOANA: – Meu pai, meu pai, estou viva sim! Com aquela carta, o que eu queria era que viesses depressa, para pôr fim às desgraças e dar remédio aos males que eu e dom Martim nos causamos.
DOM MARTIM (espantado): – Não acredito no que meus olhos vêem! Minha Joana bem amada! (ajoelha-se) Estás viva, Joana! Perdoa-me!
DONA JOANA: – Sou eu quem te pede perdão. E perdoa minhas criadas que só seguiram minhas ordens. Dá-me essa mão. (o guarda o solta e eles se abraçam)
DOM DIEGO (a dom Martim): – Já te considero meu filho. (abraça os dois)
DOM PEDRO (chegando): – Quer dizer que foi tudo uma confusa trama de dom Gil, Elvira e Joana. Bem, a notícia que trago é que a ferida de dom João não foi grave.
DOM JOÃO (chega todo enfaixado, apoiado em dona Inês e com dona Clara): – O golpe só me deu mais saúde, pois agora dona Inês se desvela por mim.
DOM ANTÔNIO (a dona Clara): – Minha adorada, mal cheguei de viagem e soube que foste ofendida, mas agora aqui estou a teus pés com meu eterno amor.
DONA CLARA: – Eu sonhava com um amor, mas não sabia que era o teu, meu dedicado Antônio… (os dois se dão as mãos)
DOM MARTIM: – Falta só meu pai chegar para celebrarmos as três bodas! (vê Fábio de mãos dadas com dona Alfonsina) Ou serão quatro?
OSÓRIO (aparece): – Dom Martim, teu pai chegou e te espera em tua casa.
SANCHA (passa correndo na frente da cena segurando a touca, e volta correndo, saindo por onde entrou): – Onde está esse pajem que nunca aparece? Já esqueci todos os recados! Será que esse pajem existe? Não! Não existe! Oh, os recados!
Cena 2
Mesmo local.
Os mesmos e Leonor, Luiza, Ximena e Caramanchel com Manolo; dona Joana, Teresa e Lourença, dom Martim, dom Diego; todos os outros, e os pares vão-se juntando.
(Caramanchel aparece tocando um sininho, seguido devagar por Manolo que acompanha sua fala batendo uma vara no chão com força. Atrás vêm as três criadas boquiabertas e assustadas. Caramanchel tem o chapéu cheio de velas; vai aspergindo água benta de um caldeirãozinho pendurado no pescoço.)
CARAMANCHEL (pára na frente da cena e clama devagar e em voz alta):
– Há quem reze por meu amo, (“pan”, faz a vara de Manolo)
que agora é alma penada, (“ “ “ “ “ )
vagando dentro das calças? ( “ “ “ “ )
MANOLO (como um eco, atrás dele, batendo com a vara):
– Oh, rezai pelo seu amo,
que agora é alma penada,
vagando dentro das calças!
DONA JOANA:
– Caramanchel, estás louco?
CARAMANCHEL (toca o sininho, estende o braço para ela e asperge):
– Eu te conjuro, ó espectro,
que de mim guardes distância!
Vade retro! Vade retro!
DONA JOANA:
– Meu tonto, eu sou teu dom Gil.
Estou viva em corpo e alma.
Não vês que falo com todos,
e ninguém aqui se espanta?
CARAMANCHEL:
– Mas… és homem ou mulher?
DONA JOANA:
– Mulher. Não adivinhavas?
MANOLO:
– É mulher… Caso profundo.
CARAMANCHEL:
– És mulher? Isto bastava
para enredar trinta mundos!
(Depois desta cena de espanto estático, todos entram no palco e começa nova dança do moinho, cuja letra, segundo Zamora, é o cume literário das antigas canções rurais de moinho. Termina com a brincadeira do enfarinhamento, recurso cômico do teatro primitivo. Eu a resumi um pouco.)
CORO:
“Até o moinho do amor, ó jovem, alegre vais.
E se vais moer esperanças, queira Deus que voltes em paz.”
Na roda do ciúme, o amor mói o seu grão,
e mói e mói a farinha do trigo do coração.(bis)
São rios os seus pensamentos, uns vêm e os outros vão.
Ela foi até a beirada e ouviu aquela canção: (bis)
“Os bois do ciúme bebem toda a água que passar.
Por falta d’água o moinho agora parado está.” (bis)
“Ciúmes não quero mais que entrem no coração.
Se o moinho não mói o trigo, não teremos o nosso grão.
Moleiro, tu és o amor?” “Sim, eu sou o moedor.
E se não sais depressinha, levas banho de farinha.” (bis) (termina a dança)
(Os pares que se formam primeiro na dança são: dona Joana com dom Martim; dona Inês com dom João; dona Clara com dom Antônio; dona Alfonsina com Fábio. Décio e Célio, cochichando um com o outro, um dança com Lola, outro com Teresa e Lourença, vão dançar com elas; Osório se encanta com Luiza, e grita “Luiza!”. Os dois dançam. Então o atrapalhado Manolo puxa desajeitado a atrapalhada Sancha, ela às vezes segura a touca. Caramanchel, assustado, é cercado pelas velhas Leonor, Lourença e Ximena, afinal dá de ombros e dança com elas.)
F I M
Sobre a escolha da peça
Para escolher uma peça com objetivo pedagógico, estude bem que tipo de vivência seria mais importante para fortalecer o amadurecimento de seus alunos. Será um drama ou uma comédia, por exemplo. No caso de um musical, é importante que a classe seja musical, que a maioria dos alunos toquem instrumentos e/ou cantem. Analise também o número de personagens da peça para ver se é adequado ao número de alunos.
Enviamos o texto completo em PDF de uma peça gratuitamente, para escolas Waldorf e escolas públicas, assim como as respectivas partituras musicais, se houver. Acima disso, cobramos uma colaboração de R$ 50,00 por peça. Para outras instituições condições a combinar.
A escola deve solicitar pelo email [email protected], informando o nome da instituição, endereço completo, dados para contato e nome do responsável pelo trabalho.