peça de Tirso de Molina
tradução e adaptação de Ruth Salles
NOTA
Tirso de Molina é o pseudônimo do frade espanhol Gabriel Tellez, nascido em Madri em 1571. Criador da famosa figura de Dom Juan, é considerado, depois de Lope de Vega, o mais fecundo e variado dramaturgo da Espanha. Em meio às obrigações de sua Ordem e às viagens de convento a convento, criava suas peças. Escreveu também peças de fundo histórico e de fundo religioso, das quais a mais famosa é “El Condenado por Desconfiado”. Tirso de Molina morreu em 1648, quando era prelado do convento de La Merced, em Soria.
Esta comédia “Don Gil de las Calzas Verdes” faz parte de seu teatro de intrigas e costumes, e sua tradução para o português, integral e primorosa, foi feita por Afonso Félix de Souza, poeta brasileiro recém falecido. No entanto, por ter de condensar e adaptar a peça, incluindo nela mais personagens – a pedido da professora, devido ao número de alunos – preferi trabalhar diretamente com o original em castelhano, da coleção “Clásicos Castalia”, onde encontrei preciosas notas explicativas de Alonso Zamora Vicente, diretor dessa coleção. O professor de música Fabio Manzione Ribeiro escolheu canções espanholas que foram cantadas em castelhano. Na primeira, ele adaptou a música à letra da canção que fiz para uma peça chamada Os Dois Moinhos. Da última, Dança do Enfarinhamento, que é uma canção de moinho original da peça, não foi achada a melodia, que tive então de compor. As canções espanholas usadas foram: Las Mentiras (canção popular); Los Quatro Muleros; Sospiró uma Señora (de Luys Milan); Las Três Hojas; Los Reyes de la Baraja; Romance de Don Boyso (de Garcia Lorca).
Ruth Salles
PERSONAGENS
Dona Joana, noiva de dom Martim
Dom Diego (velho), pai de dona Joana
Dom Martim
Dom André, pai de Dom Martim
Dom André de Gusmão (velho) pai de dom Martim
Dona Inês
Dom Pedro (velho), pai de dona Inês
Dona Clara, prima de dona Inês
Dona Alfonsina, outra prima de dona Inês
Lola, amiga de dona Inês
Dom João, apaixonado por dona Inês
Luiza (moça) e Leonor (velha), criadas de dona Inês
Teresa (espalhafatosa) e Lourença (melancólica), criadas de dona Joana
Caramanchel, lacaio de dona Joana quando ela representa dom Gil
Manolo, “sombra” de Caramanchel, que vem sempre atrás dele
Osório, criado de dom Martim
Dom Antônio, pretendente de dona Clara
Célio, primo de dona Clara
Fábio, primo de dona Clara e pretendente de dona Alfonsina
Décio, primo de dona Clara
Ximena (muito velha), aia de dona Joana quando ela representa dona Elvira
Sancha, criada de dom Pedro.
Guarda
Casal de moleiros (personagens mudos, que movem o moinho, cantam e ajudam nas mudanças de cena)
Músicos, grupos que dançam e coro que canta
PRIMEIRO ATO
Introdução
Todos no palco. A peça começa com uma dança de moinho, cantada pelo coro. Mais ou menos no fim da dança, dá-se o primeiro encontro de Joana com dom Martim. Dançam juntos e se apaixonam, mas a dança os afasta, e fica a cargo do destino uni-los de novo. Todos vão saindo, como que “puxados” para fora pela vida, e a música vai silenciando.
CORO (canta):
“- Gira el molino, gira el molino de viento
alli en lo alto, alto de la colina!
Danos un buen alimento
con tu harina fina, mamita, con tu harina fina!
Rueda del agua aqui en valle,
junto al río vas moliendo!
Que tu voz no calle.
Quiero escuchar la piedra batiendo. (bis)
Gira el molino, gira el molino de viento
alli en lo alto, alto de la colina.
Danos un buen alimento
con tu harina fina, mamita, con tu harina fina.”
Cena 1
Entrada da ponte de Segóvia.
Dona Joana (de casaco e calças verdes) e suas criadas Teresa e Lourença; depois, Caramanchel com Manolo.
TERESA (à frente da patroa e da outra criada, exclama animada): – Dona Joana! Chegamos à ponte de Segóvia! (fica na ponta dos pés e põe as mãos em pala na testa) Daqui já se avista Madri!
LOURENÇA: – Ai… Nossa querida cidade de Valadoli ficou lááá para trás, com todas as suas belezas…
TERESA (para Lourença): – Ora, Lourença, deixa-te de melancolias. (a dona Joana): – E agora, dona Joana, conta, conta para nós o que te deu na veneta para viajares assim, disfarçada de homem?
DONA JOANA-GIL: – Teresa, tu não consegues ficar quieta?
TERESA: – Mas já estamos há cinco dias nesta jornada, e não abres sequer a fresta da porta desse esquisitíssimo segredo!
LOURENÇA: – Teresa tem razão, senhora. Deixaste tua casa e teu velho pai! E nós, tuas fiéis criadas, não sabemos o motivo.
DONA JOANA-GIL: – Arre, que é preciso fazer curso de paciência para vos agüentar!
TERESA: – Só sei que eu e Lourença parecemos duas tontas, fazendo conjeturas e mais conjeturas, (ergue os braços para o céu) como astrólogos às escuras.
LOURENÇA: – Não quiseste viajar sozinha, e viemos proteger tua honra, senhora!
Tem pena de nós e nos revela esse mistério!
TERESA: – Então tu achas, pobre Lourença, que ela tem pena de nós?
DONA JOANA-GIL: – Está bem, está bem. O falatório me cansou, e o cansaço me venceu. Pois escutai toda a história!
TERESA:
– Que ninguém jamais ouviu…
DONA JOANA-GIL:
– Foi numa tarde de abril.
Junto à igreja da Vitória,
passava eu quando vi
um rapaz encantador…
TERESA:
– Zás-trás! Prendeu-te o amor!
DONA JOANA-GIL:
– Da cabeça aos pés tremi.
E, no entanto, num cantinho
da memória estou lembrando
que com ele andei dançando…
LOURENÇA:
– Foi na dança do moinho!
(A cena contada é repetida no canto direito.)
DONA JOANA (lembrando):
– É… Tu tens boa memória.
Foi com ele que dancei…
Mas, como já vos contei,
junto à igreja da Vitória,
eu tropecei, fui caindo,
quando ele me segurou
e comigo até falou.
E juro, não estou mentindo:
a minha luva eu deixei
na palma de sua mão.
Com ela, meu coração (junta as mãos no coração)
a dom Martim entreguei.
TERESA e LOURENÇA: – Huuum…
DONA JOANA:
Subindo a uma caleça,
ele acenou seu adeus.
Se já amastes…
LOURENÇA:
– Oh céus!
Perdeste tua cabeça!
DONA JOANA-GIL:
– Nessa noite nem dormi.
De manhã, com os olhos baços,
olhei por um dos terraços
e meu adorado eu vi.
Daquele dia em diante,
de manhã mandou-me cartas
e de noite serenatas
com seu coração amante.
Deu-me palavra de esposo.
Mas foi só palavra enfim,
pois eu fui vítima, sim,
do ardil mais pavoroso.
Seu pai soube da paixão!
TERESA:
– Pronto, virou-se a panela!
DONA JOANA-GIL:
– Cala-te, já, tagarela!
TERESA:
– O caldo entornou no chão.
DONA JOANA-GIL:
– Seu pai soube, além do mais,
que eu, de dinheiro, sou pobre,
embora de berço nobre.
E aborreceu-se demais.
A dom Martim de Gusmão
– é o nome do meu amado –
tudo foi dificultado.
Mas apareceu então
uma tal de dona Inês,
com setenta mil ducados!
Seu pai fez outro tratado.
LOURENÇA:
– Teu amor… era uma vez…
DONA JOANA-GIL (com gestos, para diferenciar os pais):
– Seu pai escreveu ao pai
da dona Inês-da-desgraça,
inventando uma trapaça
que eu vos conto e que aqui vai:
DOM ANDRÉ (aparece no canto direito e representa a cena contada)
– Se Martim tratou noivado
com uma Joana vil,
vou-lhe mandar um dom Gil,
que é dom Martim disfarçado,
como o melhor cavalheiro
nascido em Valadoli.
DONA JOANA-GIL:
– Martim já está em Madri.
TERESA:
– Vais vencer esse embusteiro!
DONA JOANA-GIL:
– E seu pai! Por isso vim
de dom Gil fantasiada.
Vim ver a noiva tratada
e recuperar Martim.
Pronto, Lourença e Teresa!
Já contei minha proeza.
Ide a Vallecas agora,
e esperai o meu chamado.
TERESA:
– Então, adeus, dona Joana!
LOURENÇA:
– Que Deus te guarde, senhora,
e cuidado nessa estrada!
DONA JOANA-GIL:
– Sim, adeus, minhas criadas!
(Dona Joana senta-se numa pedra e descansa de cabeça baixa. As criadas dão a volta para a frente da cena, como se ali fosse outra estrada, e se sentam.)
TERESA: – Ufa, a caminhada me deixou com os pés ardendo. Dona Joana inventa cada coisa… Deve ter-se inspirado no mago Mérlin para tramar esse plano!
LOURENÇA: – Pobre da nossa ama… Ser mulher na Espanha de hoje não é fácil. Apaixonar-se e depois… o apaixonado, para agradar o pai, vai atrás de outra!
TERESA: – Pois eu acho que o apaixonado se desapaixonou, atraído pelos 70.000 ducados da tal dona Inês. E vai trapacear também com essa outra coitada, fingindo ser um dom Gil que, na verdade, é dom Martim.
LOURENÇA: – É… O coração dos homens balança que nem badalo de sino: para lá… para cá.
TERESA: – Para cá… para lá. O pior é que dona Joana quer fingir também que é o tal dom Gil. Vai dar uma confusão como nunca se viu!
LOURENÇA: – É uma lutadora a nossa ama. Ainda há de conseguir ganhar de volta o coração de dom Martim. Mas, também… se o pai deu a ela o nome de uma guerreira lá da França, uma pastora que fazia coisas do arco da velha…
TERESA: – É… Ouvi falar. E ela se chamava mesmo Joana do Arco… Mas, vamos, Lourença. Vallecas nos espera. (as duas saem)
(Ouve-se o tema musical de Caramanchel, Las Mentiras; dona Joana ergue o rosto e se levanta, pois ouve alguém falar.)
CARAMANCHEL (entra reclamando de Manolo, que vem atrás dele):
– Achas que sou sem valor?
Pois eu, Manolo encrenqueiro,
passo na ponte primeiro!
DONA JOANA-GIL:
– Olá! Que é isso?
CARAMANCHEL: – Senhor,
chamaste-me com “olá”, (***Chamava-se antigamente um servo com “olá”, e ele andava atrás ou do lado do senhor.)
mas se queres que eu te siga
tens de me encher a barriga.
Prefiro “galinholá”.
DONA JOANA-GIL:
– Quem é o pobre coitado
com quem zangavas na ponte?
CARAMANCHEL (inclinando-se bem, apresenta Manolo):
– Meu Apêndice… defronte,
atrás de mim ou do lado.
MANOLO (inclina-se):
– Sou Manolo, teu criado.
É que meto meu bedelho,
e ele me chama de espelho. (Caramanchel o afasta para trás)
DONA JOANA-GIL (a Caramanchel):
– Pois quero um lacaio, moço.
Se andares comportado,
te darei um bom almoço.
CARAMANCHEL:
– Mas, senhora, e meu suplente,
meu advérbio, adjunto,
que pretende até ser gente?
DONA JOANA-GIL:
– Bem, ele pode vir junto.
Mas é bom tu te acalmares.
Responde bem sossegado:
É um patrão que tens buscado?
MANOLO:
– Ih! Patrões teve aos milhares,
desde que dessem jantares.
CARAMANCHEL:
– Mas ando muito azarado.
O médico era impaciente
e fazia mil receitas
cantando três cançonetas
para enganar o doente.
Era um péssimo doutor.
Muito livro, pouca ciência.
Trabalhava sem consciência.
Fugi a todo vapor.
DONA JOANA-GIL:
– Mas foi por boa razão.
MANOLO:
– E aquele advogado,
cujo bigode engomado
era a sua ocupação?
CARAMANCHEL:
– É… Passava doze horas
o cavanhaque empinando… (faz gestos)
E os clientes esperando…
Dei adeus e fui embora.
MANOLO:
– Depois, foi o padre. Hum…
Devorava um frango inteiro!
E punha seus despenseiros
a pão e água e jejum.
CARAMANCHEL: (empurra Manolo para o lado)
– Não conto o romance inteiro.
O principal da questão
é estar sem casa ou patrão
e vazio de dinheiro.
DONA JOANA-GIL:
– Vem então servir a mim.
CARAMANCHEL (espantado):
– Mas… lacaio para um pajem?
Nunca vi tal personagem!
DONA JOANA-GIL:
– Não sou pajem. Sou assim…
como um jovem rapazinho
que busca umas honrarias
na corte. E tu me servias.
CARAMANCHEL (à parte, para Manolo):
– Com esse falar fininho…
MANOLO (à parte, para Caramanchel):
– Parece homem castrado.
CARAMANCHEL (à parte):
– Mas, mesmo que seja isso…
(a dona Joana):
– Sim! Eu entro a teu serviço.
Serei teu leal criado.
DONA JOANA-GIL:
– Teu nome?
CARAMANCHEL: – Caramanchel, (***Carabanchel Bajo era uma aldeia ao sul de Madri, hoje incorporada à cidade.)
nome da aldeia de baixo,
onde vim do céu abaixo
como lacaio fiel.
DONA JOANA-GIL:
– Tu me pareces bom homem.
Pois eu me chamo dom Gil.
CARAMANCHEL:
– Dom Gil de quê?
DONA JOANA-GIL:
– Só dom Gil.
CARAMANCHEL (à parte, para Manolo):
– É castrado até no nome…
MANOLO (à parte, para Caramanchel):
– Como na barba e na voz.
DONA JOANA-GIL:
– O sobrenome ocultado
depois será revelado.
Mas agora vamos nós
procurar hospedaria.
CARAMANCHEL:
– Conheço uma.
DONA JOANA-GIL: – E tem dona?
MANOLO:
– Tolerante e mocetona.
DONA JOANA-GIL (na entrada da ponte):
– Madri! Recebe este dia
este novo visitante
e me ampara em meu papel.
– Tu não vens, Caramanchel?
CARAMANCHEL:
– Sim, dom Gilzinho! Adiante! (saem pela ponte)
(a Manolo):
– Em frente! Anda, suplente!
(Tema musical de Caramanchel para mudança de cena; os moleiros dançam movendo o moinho)
(continua)
Sobre a escolha da peça
Para escolher uma peça com objetivo pedagógico, estude bem que tipo de vivência seria mais importante para fortalecer o amadurecimento de seus alunos. Será um drama ou uma comédia, por exemplo. No caso de um musical, é importante que a classe seja musical, que a maioria dos alunos toquem instrumentos e/ou cantem. Analise também o número de personagens da peça para ver se é adequado ao número de alunos.
Enviamos o texto completo em PDF de até 3 peças gratuitamente, assim como as partituras musicais da peça escolhida. Acima disso, cobramos uma colaboração de R$ 50,00 por peça.
A escola deve solicitar pelo email [email protected], informando o nome da instituição, endereço completo, dados para contato e nome do responsável pelo trabalho.