peça de Ruth Salles
Esta peça, em cinco cenas, trata rapidamente da vinda de Martim Afonso de Souza, depois, da fundação de São Paulo e de Santo Amaro, em seguida, dos bandeirantes e, por fim, de Anchieta e Nóbrega tentando estabelecer a paz com os tamoios, quando Anchieta fica de refém com o cacique Cunhambebe¹. É uma versão um pouco mais simples das duas peças anteriores, mais movimentadas: “A Viagem de Martim Afonso” e “O Começo de São Paulo”. O último diálogo de Anchieta com Cunhambebe está entre aspas porque coletei de uma carta de Anchieta, em que relata o que se passou ao maioral dos jesuítas, Santo Ignácio de Loyola.
PERSONAGENS:
Coro (falado e cantado)
Martim Afonso, o capitão-mor
Gajeiro e Timoneiro
Mestre e Contramestre
Marinheiros
Índios tupiniquins e índios tamoios
Cacique tupiniquim e Cacique tamoio (Cunhambebe)
Padre Nunes, Padre Nóbrega e Irmão Anchieta
João Ramalho, Bartira (sua mulher) e André (seu filho)
Casal de portugueses (com imagem de Santo Amaro)
Habitantes e Mulheres vendendo produtos
Fernão Dias, Anhanguera, Borba Gato, Raposo Tavares
Quando cada cena termina, os que a representaram voltam a integrar o Coro.
CENA 1
Os navegantes e os marinheiros estão no centro da cena, movimentando-se: O capitão-mor (Martim Afonso), o mestre, o contramestre, o gajeiro, o timoneiro e os outros marujos. Depois os índios tupiniquins e seu cacique se destacam do coro. As velas, a âncora, o cabrestante, o timão do timoneiro
e a luneta do gajeiro são imaginários.
MESTRE (falando alto, com a mão em concha ao lado da boca):
– Levantar âncoraaa! (movimento dos marinheiros de puxar a âncora)
– Ao cabrestanteee! (movimento dos marinheiros de girar o cabrestante)
CONTRAMESTRE (falando alto):
– Largar as velas mestraaas! (movimento dos marinheiros de puxar o cordame das velas)
CORO (fala):
– E partiu Martim Afonso
a povoar novas terras.
Lá vai com seu galeão,
com naus e com caravelas
(Agitam-se lenços coloridos, e o coro exclama):
– Adeus a Martim Afonso,
com toda a sua equipagem!
Que cheguem logo a bom porto!
Que façam boa viagem!
MARINHEIROS (balançando no ritmo):
– Vou nas águas, vou no vento,
navegando a barlavento.
MARINHEIRO 1 (grita, olhando à esquerda do barco):
– Tubarões a bombordo!
MARINHEIRO 2 (grita, olhando à direita do barco):
– Vejo a estibordo um peixe que voa!
MARINHEIRO 3 (grita, olhando na frente do barco):
– Golfinhos pela proa!
(O gajeiro subiu numa cadeirinha e faz gesto de quem olha pela luneta; o timoneiro movimenta o timão. O mestre e o contramestre estão à esquerda, o capitão-mor, à direita.)
MARINHEIROS (balançando no ritmo e apontando os que são citados):
– Gajeiro na gávea,
timoneiro no timão,
o mestre, o contramestre
e o senhor capitão.
CONTRAMESTRE (exclama para o gajeiro):
– Gajeiro!
GAJEIRO:
– Sim, senhor contramestre?
CONTRAMESTRE:
– Alerta!
GAJEIRO (faz gesto de quem olha por uma luneta):
– Terra à vista!
CONTRAMESTRE (vai até Martim Afonso):
– Alvíssaras, senhor capitão-mor! Terra à vista!
TODOS (gritam, os marinheiros atirando para o alto os gorros):
– Terra à vistaaa!!!
CORO (canta, enquanto a cena vai-se passando):
“Caravela, caravela, navegando em alto mar,
vem Martim Afonso nela, caravela vai chegar.
Sopra o vento em sua vela,
já entrou numa baía,
pisa o pé na terra firme
toda a gente que trazia.
Olha o índio lá na praia,
de cocar cheio de pena,
de tacape e arco e flecha,
lá na praia tão serena!
Como é bela a mata virgem
na muralha lá da serra!
Lindas aves, lindas flores,
ah, eu gosto desta terra!
– Índio, seja meu amigo,
nestes rios, nestes morros!
Eu lhe trago umas sementes,
vim plantar para nós todos.
Ao Senhor do céu rezemos,
que abençoe toda a gente
e a cidade que, nascendo,
vai chamar-se São Vicente!”
ÍNDIOS (apontando para os brancos):
– Igaraitá maham, aba maham!
Alguns homens, alguns barcos.
Hê, hê, quem é você?
CACIQUE (a Martim Afonso):
– Se é mesmo em paz que você vem,
a terra toda eu lhe mostrarei,
até a serra além.
MARTIM AFONSO (saudando os índios):
– Deus nos alumia. Bom dia!
ÍNDIOS (a mesma frase em tupi):
– Tupã oreré sape. Qui aracatu!
CENA 2
O coro; padres Nunes e Nóbrega; Depois vão-se destacando do coro André Ramalho, Bartira e os índios tupiniquins.
CORO (fala):
– Passa o vento, passa o tempo,
vai voando, vai zunindo.
Mostra o índio ao padre Nunes
todo o mato que é tão lindo.
Padre Nóbrega também
fez do índio seu amigo.
Padre Nunes, serra acima
vai levá-lo então consigo.
NÓBREGA (anda apoiado num bordão e conversa com o padre Nunes):
– Que serra é essa que nunca se acaba?
NUNES:
– Paranapiacaba.
NÓBREGA:
– E há boas terras lá no alto dela?
NUNES:
– Uma terra tão bela…
Chama-se Campo de Piratininga,
onde sempre respinga
uma garoa de manhã bem cedo.
E, no denso arvoredo,
cantam alegres muitos passarinhos
quando voam dos ninhos.
NÓBREGA:
– Pois eu também quero subir a serra
e chegar a essa terra,
onde um colégio possamos fundar
para nele ensinar.
Toda criança que ali for chegando
iremos educando.
(Os padres Nunes, Nóbrega e o menino André Ramalho andam curvados, como se estivessem subindo a serra. O coro fala, enquanto isso.)
CORO:
– Quem sobe a serra vai devagar,
às vezes tendo de engatinhar;
agarra o mato assim na mão,
firma joelhos e pés no chão.
Os animais podem cair,
demoram mais para subir.
O mato é sempre bastante alto,
e sobe, sobe para o planalto.
ANDRÉ RAMALHO (aponta para um homem):
– Padre Nunes, padre Nóbrega,
o homem que ali se vê
é meu pai à sua espera,
é João Ramalho, o senhor
do Vale do Tietê.
JOÃO RAMALHO (cumprimentando os recém-chegados):
– Eu sou Guarda-mor do Campo,
conheço o chão onde piso.
Vou ajudar os senhores
em tudo que for preciso.
CORO (canta, enquanto os índios chegam e todos trabalham):
“Façamos, amigos,
de caniço e barro,
uma barraquinha
para nós morarmos.
Seja a medida
do seu comprimento
só quatorze pés;
de largura, dez.
Mais do que escola,
nossa barraquinha
seja enfermaria,
despensa e cozinha.
Seja refeitório,
seja dormitório,
tudo do tamanho
de uma barraquinha.”
PADRES NUNES E NÓBREGA:
– E assim ergueu-se este colégio.
JOÃO RAMALHO, BARTIRA E ANDRÉ:
– Mas em que dia é que foi isto?
PADRES NUNES E NÓBREGA:
– No dia em que Paulo de Tarso
tornou-se apóstolo de Cristo.
TODOS:
– E assim ao colégio e à vila tão linda
foi dado este nome:
São Paulo do Campo de Piratininga!
CENA 3
O Coro vai falando, enquanto se destaca dele o casal de portugueses com a imagem de Santo Amaro e, depois os habitantes e mulheres oferecendo mercadorias.
CORO:
– O tempo passou correndo,
passou voando, decerto.
Formaram-se aldeias longe,
formaram-se aldeias perto.
Em tudo a beleza impera:
Embu, Itapecerica,
Pinheiros e Virapuera.
Esta, no Morro da Barra,
na vastidão da campina,
entre o rio Guarapiranga
e o rio Geraibatiba.
Um casal de Portugal
trouxe o santo padroeiro
para ser o seu amparo.
Foi assim que Virapuera
foi chamada Santo Amaro.
CORO (canta, com habitantes e mulheres oferecendo produtos):
“Temos em Virapuera, sinhô,
frutos, legumes da terra,
algodoal plantado, sinhô,
e um engenho de ferro.
Lá fabricamos pregos, sinhô,
foices, cavilhas, enxadas.
Cunhas e machadinhas, sinhô,
são no engenho forjadas.”
CENA 4
Coro. Destacam-se dele algumas mulheres e os bandeirantes Fernão Dias, Anhanguera, Borba Gato e Raposo Tavares.
CORO (enquanto os bandeirantes começam a caminhar):
– Pelo rio Tietê,
o tempo passou voando,
e os valentes bandeirantes
vão na selva se embrenhando.
– Para a frente, Fernão Dias,
Anhanguera, Borba Gato!
Vão abrir caminhos novos,
novas aldeias no mato!
– Raposo Tavares, venha
pisar com seu pé na brenha!
Com seu esforço febril,
venha aumentar o Brasil!
RAPOSO TAVARES:
– No meio da mata espessa
nós vamos abrir passagem.
MULHERES:
– Doamos nossas riquezas
para o custo das viagens.
FERNÃO DIAS:
– Traremos grande tesouro,
pedras raras, muito ouro.
ANHANGUERA:
– Descendo o rio em canoas,
andando a pé pela brenha,
enfrentaremos selvagens
ou qualquer fera que venha.
BORBA GATO:
– O perigo espreita lá,
mas queremos partir já.
Nossa hora é agora!
CORO:
– E o Brasil foi crescendo
sob o pé desses gigantes,
desenhou novas fronteiras
pela mão dos bandeirantes!
CENA 5
Coro, Anchieta, Nóbrega, Cunhambebe (cacique dos tamoios) e depois todos.
CORO (enquanto Anchieta e Nóbrega se destacam do Coro):
– Leva o vento em vendaval
tempo bom e tempo mau.
Desavenças houve, sim,
entre os índios cá da terra:
tamoio e tupiniquim
ficaram em pé de guerra.
ANCHIETA:
– Amigo Nóbrega, vamos tentar apaziguar os tamoios e impedir a guerra.
NÓBREGA:
– Sim, meu caro Anchieta, vamos à aldeia de Ubatuba, falar com os maiorais da tribo.
CORO (enquanto os dois caminham e se encontram com Cunhambebe):
– Lá vão eles desarmados,
tendo Deus por seu escudo.
Um bem velho, outro curvado,
cada um ao outro ajuda.
Vão a pé, vão de canoa.
Enfim, ao morubixaba,
falam da paz, que é tão boa.
Quem sabe a guerra se acaba!
CUNHAMBEBE (aos dois):
– Volte homem velho aos brancos para tratar
com eles nossa questão. Homem moço fica
conosco. Só será livre de novo quando
homem velho voltar.
(O Coro fala enquanto Nóbrega sai de cena. Os índios tamoios cercam Anchieta, empunhando tacapes para cima e resmungando no ritmo desses gestos.)
CORO:
– Volta Nóbrega a São Paulo,
fica Anchieta de refém.
Ele reza e ajuda o povo,
espalhando sempre o bem.
Os tamoios mais bravios
jamais conseguem feri-lo.
Do cacique mais feroz,
ele fez um bom amigo.
TAMOIOS:
– Hum! Hum! Hum!… Hum! Hum! Hum!…
ANCHIETA:
– “Cacique Cunhambebe, se os tamoios me querem matar,
estou pronto para dar minha vida por Nosso Senhor Jesus Cristo.
CUNHAMBEBE:
– Não fale em morrer, pois estou aqui só para defendê-lo.”
NÓBREGA (chega e corre a abraçar Anchieta):
– Oh, amigo irmão,
Deus o protegeu!
Trago enfim a paz.
ANCHIETA:
– A paz? Oh, bom Deus!
CORO de todas as personagens:
– O tempo passou correndo,
segundo, minuto e hora.
Mas, quem disse que a lembrança
desse tempo foi-se embora?
Com profunda gratidão,
lembremos em boa hora
aqueles que, no passado,
em meio a luta e aflição,
ajudaram a formar
a nossa terra de agora!
*1: ANCHIETA, José de. Correspondência com Ignácio de Loyola. São Paulo: Arquivos da Biblioteca Mario de Andrade, data n/d.
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