por Julia de Mello e Souza
Minha saudosa prima Julia de Mello e Souza foi professora de línguas neolatinas e escreveu várias crônicas. Ia ainda escrever uma chamada “Que fim levou o fim”, mas não sei se teve tempo. É que os dicionários já aceitam a palavra “final” como substantivo, quando ela era adjetivo da palavra “fim”. No entanto, a palavra “inicial” nunca virou substantivo. Ninguém diz “No inicial do ano”. Mas… por enquanto aí está sua outra crônica, que comenta o uso errado do verbo colocar. Pois colocar é pôr num local, aliás, como copiloto – que ajuda o piloto – colocar é ajudar (em geral com as mãos) a pôr num local, como colocar o copo na pia ou o livro na estante.
Onde colocaram o verbo pôr?
Em algum lugar bem escondido. O fato é que ele anda desaparecido. No entanto, este verbinho, de aparência tão humilde – três letras apenas e um chapeuzinho – é de suma importância. Só ele e seus compostos integram a quarta conjugação ou quarto grupo. E ele ocupa no dicionário toda uma coluna, com as diversas acepções.
Na sua evolução etimológica para o português, do latim “ponere”, já foi poer.
Agora, tudo se coloca, muitas vezes mal. Colocar em ordem, em risco, em dúvida, colocar para fora, abaixo, colocar fogo! Até as galinhas colocam ovos.
Como ficam, então, expressões consagradas, tais como: pôr os pingos nos is, pôr as manguinhas de fora, pôr as barbas de molho, pôr água na fervura? E pôr as cartas na mesa? E o rei morto não é mais rei posto? E o pôr do sol? Vira colocar do sol?
Camões, nos Lusíadas, diz sobre uma nuvem:
“… Tão temerosa vinha e carregada
que pôs nos corações um grande medo…”
O colocar, neste caso, comprometeria irreparavelmente o decassílabo camoniano heroico.
Ora, colocar é pôr, mas pôr nem sempre é colocar. Este último supõe certa precisão. Coloca-se uma porca num parafuso, ou um componente numa engrenagem. Também se coloca uma mesa num determinado lugar, mas não se coloca a mesa para o jantar.
Essa mania inadequada talvez reflita certa tendência para o “falar difícil”.
Por que essa birra contra o pobre verbo? Por sua irregularidade incômoda? Ponho, pões, punha, pus, porei, pondo, posto. O que produz, nos compostos, formas como: dispunha, se eu dispusesse de, quando ele transpuser… E termos derivados como: recomposição, pressuposto, supositório, expoente, depósito, imposto…
Já o colocar é bem mais acessível. Apenas um Q em coloquei, por exigência ortográfica.
Por essas e outras, para evitar tropeços com o verbo pôr e o colocar mal colocado, sugiro o verbo “ponhar”, como no samba do Arnesto, de Adoniran Barbosa:
“Mas você devia ter ponhado um recado na porta.”
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