Conto dos irmãos Grimm, traduzido por Ruth Salles e Renate Kaufmann.
Havia um homem cuja mulher morrera, e uma mulher cujo marido morrera; e o homem tinha uma filha, e a mulher tinha uma filha também. As meninas vieram a se conhecer, foram passear juntas e, mais tarde, chegaram à casa da mulher. Esta disse, então, à filha do homem:
– Escuta, dize a teu pai que eu gostaria de me casar com ele; terás, todas as manhãs, leite para te lavares e vinho para beber; minha filha porém, terá água para se lavar e água para beber.
A menina foi para casa e contou a seu pai o que a mulher havia dito.
– Que devo fazer? – disse o homem. – O casamento é uma alegria e é, também, tormento.
Por fim, como não conseguisse tomar decisão alguma, descalçou sua bota e disse:
– Pega esta bota, que tem um furo na sola, leva-a ao sótão, pendura-a no prego grande e despeja-lhe água dentro. Se ela contiver a água, decido que tomo de novo uma esposa, mas se a água escorrer, decido que não.
A menina fez como lhe fora ordenado, mas a água retraiu o furo, e a bota ficou cheia até a borda. Ela comunicou o resultado ao pai, e ele, então, subiu pessoalmente. Quando viu que a filha tinha razão, foi ter com a viúva, pediu-lhe a mão, e o casamento se realizou.
Na manhã seguinte, quando as duas meninas se levantaram, a filha do homem encontrou leite para se lavar e vinho para beber; para a filha da mulher, porém, havia água para se lavar e água para beber. Na segunda manhã, tanto a filha do homem como a filha da mulher encontraram água para se lavarem e água para beber. E, na terceira manhã, a filha do homem tinha água para se lavar e água para beber, e a filha da mulher tinha leite para se lavar e vinho para beber. E assim continuou dali por diante.
A mulher tomou ódio da enteada e, de dia para dia, não sabia mais o que fazer de pior para ela. Além disso, tinha-lhe inveja, pois a enteada era bela e graciosa, enquanto sua própria filha era feia e repugnante.
Certa vez, no inverno, quando tudo se congelara espessamente e a montanha e o vale jaziam cobertos de neve, a mulher fez um vestido de papel, chamou a menina e disse:
– Toma este vestido, veste-o e vai à floresta colher para mim um cestinho cheio de morangos. Estou ansiosa para comê-los.
– Meu bom Deus, – disse a menina – no inverno não crescem morangos, a terra está congelada, e a neve cobriu tudo! E por que devo ir com este vestido de papel? Lá fora está tão frio que chega a gelar o hálito. O vento passará através do vestido, e os espinhos o arrancarão do meu corpo.
– Ousas contradizer-me? – retrucou a madrasta. – Trata de ir e não me apareças antes de teres o cestinho cheio de morangos.
Deu-lhe ainda um pedacinho de pão duro e disse:
– Com isto, terás o que comer durante o dia.
E pensou: “Lá fora, acabará enregelando-se e morrendo de fome, e nunca mais aparecerá diante dos meus olhos.”
A menina, então, obedeceu, pôs o vestido de papel e saiu com o cestinho. Por toda parte, não havia outra coisa a não ser neve, e não se enxergava um só talinho verde. Chegando à floresta, ela viu uma casinha onde três homenzinhos espiavam pela janela. Ela desejou-lhes bom-dia e bateu discretamente a porta. Eles chamaram-na para dentro, e ela entrou na salinha e sentou-se num banco junto ao fogão; queria aquecer-se e comer sua refeição. Os homenzinhos disseram:
– Dá-nos também um pouquinho!
– Com todo o prazer – respondeu ela, e partiu em dois seu pedacinho de pão, dando-lhes a metade.
Eles perguntaram:
– Que queres aqui na floresta, em pleno inverno, com esse vestidinho tão fino?
– Ah, – respondeu ela – preciso procurar morangos para encher este cestinho, e não posso voltar para casa sem levá-los comigo.
Tendo ela acabado de comer seu pão, eles deram-lhe uma vassoura, dizendo:
– Tira com ela a neve da porta dos fundos.
Enquanto ela estava lá fora, os homenzinhos puseram-se a conversar entre si:
– Que lhe devemos dar de presente por ser tão gentil e bondosa, e por ter repartido seu pão conosco?
Então, o primeiro disse:
– O meu presente é que ela se torne cada dia mais bela.
E disse o segundo:
– O meu presente é que lhe caia da boca uma moeda de ouro, sempre que pronunciar uma palavra.
E o terceiro disse:
– O meu presente é que venha um rei e a tome por esposa.
A menina fez como os homenzinhos lhe haviam mandado, tirou com a vassoura a neve que havia atrás da casa, e o que pensais que ela encontrou? Uma grande quantidade de morangos maduros, bem encarnados, que surgiam por entre a neve. Cheia de alegria, apressou-se em apanhá-los e encher seu cestinho, agradeceu aos homenzinhos, apertando a mão de cada um, e correu para casa, pois queria levar à madrasta o que ela lhe exigira. Quando entrou e disse “Boa-noite!”, imediatamente caiu de sua boca uma moeda de ouro. Contou, então, o que lhe havia sucedido na floresta e, a cada palavra que pronunciava, caíam-lhe da boca moedas de ouro, de modo que logo toda a sala se cobria delas.
– Olha só que leviandade – exclamou a filha da madrasta – jogar dinheiro dessa maneira!
No intimo, porém, estava com inveja e também queria ir até a floresta procurar morangos. Disse a mãe:
– Não, minha querida filhinha, está frio demais e poderias ficar enregelada.
Como, no entanto, ela não lhe desse mais sossego, acabou consentindo. Fez-lhe um magnífico casaco de pele, que ela vestiu, e deu-lhe pão com manteiga e bolo para comer no caminho.
A menina entrou na floresta e foi direto à pequena casinha. Os três homenzinhos lá estavam de novo espiando pela janela; ela, porém, não os cumprimentou e, sem ao menos voltar o olhar para eles, embarafustou pela sala adentro, sentou-se ao fogão e começou a comer seu pão com manteiga e seu bolo.
– Dá-nos também um pouquinho – exclamaram os homenzinhos.
Ela, porém, respondeu:
– Mal chega para mim, como posso dar aos outros?
Quando acabou de comer, disseram eles:
– Aqui tens uma vassoura. Vai lá fora, varre com ela diante da porta dos fundos e deixa tudo limpo.
– Ora, varrei vós mesmos, – respondeu ela – eu não sou vossa criada.
E, vendo que eles não lhe queriam dar nada de presente, saiu pela porta afora.
– Que lhe devemos dar por ser tão descortês, e por ter um coração mal e invejoso, e por não repartir nada com ninguém?
Disse o primeiro:
– O meu presente é que ela se torne cada dia mais feia.
E disse o segundo:
-O meu presente é que lhe salte da boca um sapo, a cada palavra que pronunciar.
E disse o terceiro:
– O meu presente é que morra de morte horrível.
Lá fora, a menina procurou morangos. Como não achou nenhum, foi para casa aborrecida. E, quando abriu a boca, querendo contar à mãe o que lhe sucedera na floresta, a cada palavra que proferia, saltava-lhe da boca um sapo, de modo que todos tomaram aversão por ela.
A madrasta, então, zangou-se mais ainda e só pensava na maneira de causar todo tipo de sofrimento à enteada, cuja beleza aumentava de dia para dia. Por fim, pegou um caldeirão, pôs no fogo e ferveu fios dentro dele. Depois de fervidos, pendurou-os nos ombros da pobre menina e lhe deu um machado, mandando-lhe que fosse até o rio congelado, fizesse um buraco no gelo e enxaguasse os fios.
Obedientemente, ela foi até lá e se pôs a dar machadadas no gelo para abrir um buraco; ainda estava ocupada nisso, quando apareceu uma suntuosa carruagem, dentro da qual estava o rei. A carruagem se deteve, e o rei perguntou:
– Minha pequena, quem és tu e que fazes aí?
– Sou uma pobre menina e enxaguo fios.
Então, o rei teve pena e, vendo que ela era tão bela, disse:
– Queres vir comigo?
– Oh, sim, de todo o coração – respondeu ela, contente de poder ficar longe das vistas da mãe e da irmã.
Assim, subiu na carruagem e foi embora com o rei. Quando chegaram ao castelo, o casamento foi festejado com grande esplendor, conforme os homenzinhos lhe haviam desejado.
Passado um ano, a jovem rainha teve um filho. A madrasta, ouvindo falar de sua grande felicidade, foi com sua filha ao castelo, sob o pretexto de fazer uma visita. Mas como, em dado momento, o rei se ausentou e não havia mais ninguém por perto, a malvada mulher agarrou a rainha pela cabeça, e sua filha agarrou-a pelos pés, tiraram-na da cama e jogaram-na pela janela, na correnteza do rio que por ali passava. Em seguida, a filha feia deitou-se na cama, e a velha cobriu-a até a cabeça. Quando rei voltou e quis falar com sua mulher, a velha disse:
– Psiu… silêncio! Agora não é possível. A rainha está suando muito. Hoje deveis deixá-la repousar.
O rei não viu maldade nisso e voltou na manhã seguinte. Quando falou com sua mulher, a cada resposta que ela lhe dava, saltava-lhe um sapo da boca, quando antes caía uma moeda de ouro. Então, ele perguntou o que era aquilo, mas a velha respondeu que era conseqüência do forte suadouro e que logo passaria.
À noite, porém, o ajudante de cozinha viu uma pata que, nadando pela sarjeta, chegou e disse:
– Ó rei, que fazes aí?
Estás a velar ou estás a dormir?
E, como ele não lhe desse resposta alguma, ela perguntou:
– E como estão minhas visitas?
Então o ajudante de cozinha respondeu:
– Profundamente adormecidas.
E ela continuou:
– Que está fazendo o meu filhinho?
E ele respondeu:
– Está dormindo em seu bercinho.
Então, retomando o aspecto de rainha, ela subiu, amamentou o filhinho, ajeitou-lhe a caminha, cobriu-o bem e, retomando a forma de uma pata, foi-se embora de novo, nadando pela sarjeta. Assim, ela veio por duas noites. Na terceira, disse ao ajudante de cozinha:
-Vai, e dize ao rei para apanhar sua espada e, na soleira da porta, brandi-la três vezes sobre mim.
O ajudante de cozinha correu a falar com o rei, que veio com a espada e a brandiu três vezes sobre o espírito; na terceira vez, estava diante dele a sua esposa, radiante, cheia de vida e saúde como antes.
O rei sentiu grande alegria, mas conservou a rainha escondida num aposento até o domingo seguinte, quando a criança deveria ser batizada. Terminada a cerimônia, ele disse:
– Que merece uma pessoa que arranca outra da cama e a atira ao rio?
– Nada melhor – respondeu a velha – do que meter a malvada num barril crivado de pregos e rodá-lo montanha abaixo para dentro d’água.
O rei, então, disse:
– Proferiste tua sentença.
E mandou buscar um barril assim, e mandou meter dentro dele a velha com sua filha; e o fundo do barril foi pregado, e o barril foi posto a rolar montanha abaixo, até que rodou para dentro do rio.