30 de março de 2018

Peronic

 

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conto de fadas bretão segundo Souvestre

tradução e sugestões de Edith Asbeck
arranjo para teatro de Ruth Salles

 

PERSONAGENS

Menestrel
Moços e Moças da aldeia, que formam o coro junto com o menestrel e dançam.
Peronic
Camponesa
Camponês
Cavaleiro 1
Cavaleiro 2 (espanhol)
Cavaleiro 3 (francês)
Cavaleiro 4
O cavalo de Rogéar e o Potrinho (?)
Rogéar, o bruxo
Briac, seu irmão, velho mago
Garotas do campo (3)
Rochedos (4)
Árvores (4)
Águas (4)
Peixes (4)
Anão com a espada de fogo
A Flor misteriosa que sorri
Leão
Os Quatro Dragões
O Gigante com a esfera de aço
As Quatro Jovens
Os dois valetes
Criança no espinheiro
Três seres com véus
Dama de negro (Peste)
Zombador,
Pérfido e
Voraz, servos de Rogéar.
Povo faminto e feridos
Arauto do Rei da Bretanha
Rei da Bretanha e sua filha.
Guerreiros em luta com Peronic no fim

 

Introdução

Vem entrando o menestrel tocando seu alaúde. Seguem-no moços e moças da aldeia, mostram-se curiosos, acompanham-no com gestos e fazem o Coro, depois de ouvirem o tema da música tocado uma vez.

Coro e Menestrel:
“Quem já viu andando aí
um bobinho arregalado,
a olhar pra todo lado
sem saber aonde ir?
É o Peronic!
Vai à fonte pra beber
pede restos pra comer,
faz da palha cobertor
e agradece ao Senhor.
É o Peronic!
Canta igual ao canarinho
ao pedir o seu pãozinho.
E imita qualquer canto.
Nada faz e sabe tanto.
É o Peronic!”

(Saem, enquanto do lado esquerdo entra o cenário da casa do camponês. Junto com a casa, entra uma mesa de rodinhas que passa pela porta e fica do lado de fora. Sobre ela há pão, manteiga, toucinho.)

 

CENA  1

Junto à porta da casa do camponês. A camponesa, com uma colher, raspa um tacho, para limpá-lo. Peronic vem-se aproximando.

Peronic (entrando pela direita, de maneiras jocosas e leves):
– Desde madrugada andei até cansar
e não achei nem cabra, nem vaca para ordenhar.
Um pouco de leite seria a solução
para quem há três dias não come uma lasca de pão.
Ai, ai… Até quando minha pança vazia vai ficar roncando?
Ah, se uma vaca eu encontrasse agora, seria em boa hora.
E ninguém me veria mexendo com ela, pois sou mais rápido que uma gazela!
Hum… Minha barriga não pára de roncar.
Dentro dela uns sete ratinhos podiam até dançar.
Êi! Perto daquela casa ouço um ruído promissor!
Que meus ouvidos não me enganem, ó Senhor!
(Vê a camponesa raspando um tacho e corre desabalado para ela.)
– Pelo amor de Deus, bondosa mulher,
não raspe o tacho todo com essa colher!
Dê pra mim o restinho, estou morto de fome,
e até raspa de tacho um pobre come.
Não provo nada há três dias, nem leite tomei
e ainda agorinha quase desmaiei!

Camponesa (assustada e depois um tanto apatetada):
– Jesus, Maria! Você me assustou! Tome! Pode raspar o que sobrou.
Já que para os porcos não vai dar e para os passarinhos vai sobrar…
(vendo-o devorar a raspa)
– Pobre inocente, está mesmo morto de fome.
Será que realmente faz três dias que não come?
Mas, ouça, reze um Pai Nosso para os bacurizinhos,
que precisam ficar bem gordinhos.

PERONIC (raspando o tacho, comendo e falando; expressão facial):
– Huuum! É mingau de milho dourado,
com gordura de porco e leite de vaca malhada!
Para Peronic é uma senhora refeição!
Afirmo e reafirmo, pois sei que tenho razão:
Ninguém cozinha tão bem em toda esta região!

CAMPONESA (toda orgulhosa):
– Qual o quê, meu filho! Não mereço tamanho elogio.
(volta-se para o público)
– Sinto um aperto no coração… Chamar este resto de refeição…
(para Peronic, passando-lhe um pãozinho de cima da mesa)
– Coma este pãozinho, eu insisto!

PERONIC (comendo):
– Ah! Este foi feito pelo padeiro do senhor bispo!
(mastigando com força)
Nada mau! Ninguém, daqui até Vannes, faz um pão igual.

CAMPONESA:
– Pois recheie com este toucinho. É só um pouquinho
que sobrou da sopa de domingo passado.

PERONIC:
– Quanta honra para Peronic! Muito obrigado!
(canta, depois que come)
“Eu agradeço ao Pai do Céu
por tudo que Ele me deu!”

(Enquanto ele canta, passa atrás da cortina o cavaleiro 1.)

CAVALEIRO 1 (aproximando-se):
– Bons dias, senhora dona! Vossa Mercê pode informar-me qual o caminho para Kerglás?

CAMPONESA:
– Kerglás?! Que Deus o livre! Não vá a Kerglás!
Todos os que foram não voltaram mais!

CAVALEIRO 1:
– Há sete anos venho cavalgando, boa senhora, por isso deve estar próxima a hora da chegada. Por tantos vales passei, tantos leitos de rio atravessei, tantas vezes o sol nasceu… Certamente estou prestes a atingir minha meta: Kerglás!

CAMPONESA:
– Cruz, credo! Justo àquele terrível lugar o senhor deseja chegar?

CAVALEIRO 1:
– Mas o cavaleiro que conseguir pegar a lança de diamante e a taça de ouro puro será senhor da maior riqueza!

CAMPONESA:
– Isso, se tudo não acabar em desgraça e tristeza.

CAVALEIRO 1:
– Ouça, minha senhora, a taça de ouro, quando tocada, oferece imediatamente todas as iguarias e todas as riquezas do mundo; aquele que bebe da taça de ouro se cura de todos os males, até mesmo os mortos despertam novamente para a vida, assim que a taça toca seus lábios. Já a lança de diamante tudo destrói, tudo aniquila. E aquele que é tocado pela lança de diamante, mesmo que seja de leve, é arremessado ao solo e morto. Ela possui misterioso poder.

PERONIC (parando de comer e chegando perto):
– E quem é o dono de tudo isso?

CAMPONESA:
– É Rogéar, o bruxo, que entende de feitiço
e que mora no castelo de Kerglás. Todo dia
ele passa numa égua preta, sua montaria,
e um potro de treze meses vem atrás. Esse bruxo é muito audaz.
Vem sempre com a lança em riste (faz o gesto) para ameaçar.
E todos que o vêem tratam de se esconder ou de se afastar.
A taça que brilha e rebrilha está em seu pescoço pendurada.
Sua luz deixa a visão de toda gente ofuscada.
E é esse bruxo que o senhor cavaleiro deseja encontrar e ainda desafiar?!

CAVALEIRO 1:
– Senhora, a lei divina proíbe Rogéar de usar a lança dentro de seu castelo. Assim que ele chega lá, ambas são depositadas no fundo de um sombrio subterrâneo, que nenhuma chave pode abrir. E é no castelo que vou atacá-lo, como cavaleiro que sou, conhecedor da arte de combater. Não tenho o menor receio, sei que serei vencedor!

CAMPONESA:
– Tomara que dê certo. Pois mais de cem cavaleiros, muito espertos,
para lá cavalgaram e jamais voltaram!

CAVALEIRO 1:
– Isso aconteceu porque eles desconheciam os ensinamentos que me foram dados pelo bondoso eremita que eu tive a sabedoria de procurar.

PERONIC:
– Eremita? Aquele que vive escondido num abrigo,
e que só conversa com os anjos o tempo inteiro?
Que disse o eremita, senhor cavaleiro?

CAVALEIRO 1:
– Ensinou-me passo a passo o que devo fazer. Disse que eu devo atravessar a Floresta da Ilusão, e que eu não me deixe enganar de maneira alguma por seus encantamentos, mas que resista a toda prova, não me desviando do caminho em hipótese alguma.

PERONIC (faz gestos de quem está guardando na memória e pensando):
– E depois?

CAVALEIRO 1:
– Ele disse que eu enfrentarei um anão, que tem como arma uma espada de fogo que tudo queima e transforma em cinzas. O anão vigia uma macieira carregada de frutos. E apesar da atenção e da sagacidade do anão, devo colher uma das maçãs.

PERONIC:
– Credo! Cruzes! E que mais?

CAVALEIRO 1 (enquanto este fala, Peronic conta nos dedos como quem decora e move os lábios em silêncio):
– Disse que eu encontrarei a flor que sorri. É uma flor misteriosa, de cujo poder vou depender em outro momento de minha busca. E já quando eu a encontrar será difícil aproximar-me dela, pois há um leão vigiando, e em sua juba cem víboras serpenteiam pérfidas, ameaçadoras, mostrando as línguas ágeis!

PERONIC:
– Ai, que coisa horrível! E depois, senhor?

CAVALEIRO 1:
– Depois, meu jovem ingênuo, eu colho a flor!

PERONIC:
– Crendospadre! E depois?

CAVALEIRO 1:
– Ele disse que vou atravessar um lago povoado por seres assustadores: o Lago dos Dragões, e não posso permitir que eles se aproximem demasiado. Na margem oposta, são e salvo, devo lutar com o escuro gigante, cuja arma é uma esfera de aço que nunca deixa de atingir o alvo e que volta sozinha para ele. Tendo vencido mais esse obstáculo, diante de mim vai abrir-se um vale – o Vale da Tentação. Nesse vale, tudo quanto possa desviar um cristão de seu caminho de fé e de sincero fervor vai manifestar-se. Se resisto às tentações e alcanço ileso a orla da floresta, surge um rio, que só dá passagem num único e estreito local. Por fim, vou encontrar à minha espera uma dama de negro, que me dará conselhos de como prosseguir.

CAMPONESA:
– O melhor conselho seria regressar sem mais hesitações.
Não há como vencer sete aflitivas situações!

CAVALEIRO 1:
– Não, não, senhora dona! Vencerei as sete provas. Portanto, repito a pergunta: Por obséquio, que caminho devo tomar?

CAMPONESA:
– Que Deus me perdoe! Vá por aquela estrada!
(O cavaleiro sai, ereto e altivo.)
Esse vai cair no laço que nem uma galinhola estabanada.
– E você, Peronic, já comeu bastante. Dê o fora! (enxota-o)

(Peronic vai saindo e, por ser malandro, ao ouvir o camponês falando, procura esconder-se para não ser visto.)

CAMPONÊS (vem chegando, falando sozinho):
– Aquele ajudante imprestável, que eu mandei embora,
não fazia nada direito, não cuidava das vacas,
até o maior dos bezerros caiu num buraco!
Só que agora sou um pastor
sem ajudante, sem guardador! (percebe Peronic)
– Ei, menino! Aonde vai você correndo pela rua?

PERONIC:
– Vou ver como nasce a lua!

CAMPONÊS:
– Seu brincalhão folgado! Você viria a calhar para me ajudar a cuidar do gado.

PERONIC:
– Prefiro cuidar só de mim, bom senhor, em vez de ser um guardador.
Se o senhor quer que eu lhe explique,
ninguém sabe não fazer nada tão bem quanto Peronic!

CAMPONÊS:
– Ora! Olhe ali nossas vacas, todas bem tratadas,
a preta, a castanha, a branca, a malhada
e aquela que está lambendo seu bezerrinho.
É só tocar todas para o pasto de manhã bem cedinho,
e na volta contar de uma em uma para ver se não falta mesmo nenhuma,
e levar todas de volta ao curral para tirar o leite, fazer o queijo e coisa e tal.
O esterco a gente usa para adubar a terra. Ele vale ouro.
Tome, segure a vara! E não tenha medo do touro!
Ande, meu jovem! E fique atento, pois o gado gosta de se espalhar.
É preciso cuidar!
E volte na hora do pôr-do-sol! (Grita esta frase já se afastando.)

PERONIC (sozinho consigo mesmo):
– Pôr-do-sol… pôr-do-sol…
Se não fosse o mingau, o pãozinho, a manteiga, o toucinho,
eu saía correndo sem pensar. Mas é melhor concordar,
ouvir esse camponês falador e servi-lo como bom guardador.
Eu, Peronic, com esta vara na mão, não dá pra acreditar. Juro que não.

 

 

CENA 2

Pasto à beira da estrada. Peronic canta com a vara na mão.

 

PERONIC (canta):
“A primavera está a chegar,
o frio a terminar.
O sol nasceu e brilha no céu,
e as nuvens com seu véu…
No prado verdinho, olho as vaquinhas
todas a pastar.
De vara na mão, eu como meu pão
e sem me preocupar.”

PERONIC (fala, olhando ao longe, com a mão em pala na testa; há um brilho atrás da cortina):
– Que brilho é esse que ao longe dança?
Oh! É o bruxo Rogéar com sua lança!
Atrás de sua égua segue o valente potrinho.
Dia após dia, fazem o mesmo caminho.
Estou seguro aqui atrás deste mato.
Mas, se ele me visse, eu saía dançando no maior espalhafato!
(dança montado na vara; de repente, olha para o campo e corre de um lado para o outro)
– Ei, Malhada! Está indo pelo caminho errado!
Hô, Castanha! O curral é daquele lado!
Ui, a Preta fugiu, e eu tenho de ir atrás!
O bezerro vai cair no buraco! Isso também já é demais (devagar, com expressão)
Peronic, o guardador, corre o dia inteiro.
Ah, se eu pegasse aquele potrinho, eu seria Peronic, o cavaleiro!
(cai no chão, exausto)

CAVALEIRO 2, o espanhol (entrando):
– Eh, usted ahí, oiga! Ha visto Rogéar a cabalgar,
con su lanza en ristre a brillar?
El lleva en el pecho una taza colgada
y, soberbio como un rey, piensa que yo soy nada.
Pero ese brujo va a ver de qué yo soy capaz.
El fué para la derecha, mi rapaz?

PERONIC (erguendo meio corpo e coçando a cabeça):
– Que foi, foi… Mas, se eu fosse o senhor, não ia atrás. (O cavaleiro sai.)
(consigo mesmo): – A mistura na fala é tanta
que, vai ver, ele tem uma doença na garganta.
(Peronic se senta, apoiado na vara.)

CAVALEIRO 3, o francês (entrando):
– Dis-moi, mon enfant, où trouverais-je Kerglás?

PERONIC (põe-se de pé, espantado e diz consigo mesmo):
– Eu entendi Kerglás e não sei o que mais.
Enrolou a língua esse senhor. Deve ser de pavor.

CAVALEIRO 3 (gesticula, para saber que direção seguir):
– Parbleu! Je cherche la lance d’or!

PERONIC (consigo mesmo):
– Lance deve ser lança. Isso eu sei de cor.
(ao cavaleiro)
– O senhor quer saber o caminho de ida?
(consigo mesmo)
– Mesmo porque o caminho de volta é causa perdida.

CAVALEIRO 3:
– Oui! Oui! Oui!

PERONIC (consigo mesmo):
– Quanto “ui”… Ele está é com medo.
(ao cavaleiro)
– Calma, senhor, a direção é esta, que depois passa pela floresta.

CAVALEIRO 3 (indo embora):
– Oui, mon bon enfant! Merci! Merci!

PERONIC (acena para ele sem entender e grita):
– É! Pra pegar a maçã é cada um por si!

(Entram moços e moças da aldeia.)

MOÇA:
– Que dia lindo! Parece domingo! Vamos dançar?

(Eles executam uma dança típica. Peronic se alegra e tenta imitá-los. Terminando a dança, os jovens saem, menos um par.)

CAVALEIRO 4 (entrando e dirigindo-se a Peronic):
– É por aqui que se vai a Kerglás?

PERONIC (encolhendo os ombros):
– Deve ser… pois quem foi por aí não voltou mais.

CAVALEIRO 4 (olha para os três com bastante orgulho e importância):
– Mas eu voltarei, não há dúvida alguma! Nasci para vencer nas aventuras.

MOÇA (consigo mesma):
– Isso é uma verdadeira loucura!

CAVALEIRO 4:
– A lança do bruxo eu hei de arrebatar, tenho plena certeza! E depois será meu o grande, o imenso poder! Exterminarei quem a mim se opuser. Determinarei sobre o existir e o não existir dos outros. Nada no mundo me deterá, pois minha vida será eterna. Somente eu saberei melhorar o mundo! Somente eu! Terei alcançado o direito sobre a vida e a morte, escolherei aqueles que, como eu, não sofrerão sede nem fome jamais. Eu serei onisciente, onipresente, inextingüível!

MOÇO:
– Mas, senhor cavaleiro, ouvi falar num leão feroz.
E as serpentes de sua juba se agitam de modo mortífero e atroz.

CAVALEIRO:
– Pois eu não tenho medo de leão, quer tenha uma juba de répteis peçonhentos, que podem aterrorizar o viajante desavisado, quer se mova silenciosamente para o ataque ou se aproxime com um rugido cavernoso. Nenhuma criatura terrena conseguirá abalar minha coragem e auto-confiança.

PERONIC:
– E de dragão, o senhor não tem medo?

CAVALEIRO (pomposo e com leve desprezo pelos que o ouvem):
– Nem de dragão! Em minha terra, é de minha espada que todos têm medo! O feiticeiro que trema pelo que vai enfrentar. Ouça, meu rapaz, espere por minha volta. Certamente estarei formando um grande exército. Precisarei de muitos homens e até pode ser que eu o tome como pajem!

(O cavaleiro sai por um lado, e os dois jovens saem pelo outro.)

PERONIC (acena, gritando):
– Está bem, senhor, está bem!
(consigo mesmo)
– Mais um que vai… Até me deu vontade de ir também.
Tenho sentido uma estranha emoção…
A taça, a lança… Arde um desejo em meu coração,
um desejo que cresce e se transforma em labareda dia a dia,
ao ver Rogéar passar em sua montaria,
e o potrinho logo atrás…
Ah, estou pensando demais! (Faz um gesto de quem espanta os pensamentos.)

(Peronic cantarola e, dali a pouco, Rogéar passa de novo.)

PERONIC:
– Outra vez Rogéar sobe a colina.
Isso está virando rotina.
Já nem preciso me esconder de medo.
Ele passa tarde, ele passa cedo…
(Peronic boceja, deita-se e cochila, mas acorda com a chegada de um velho e se espreguiça.)
– O senhor é outro que quer saber o caminho para o castelo do feiticeiro?

BRIAC:
– Eu? Não. Já estive lá muitas vezes.

PERONIC (espantado):
– E voltou inteiro?
E ele não furou o senhor com a lança?

BRIAC:
– Como vê, nada me aconteceu. Pois eu sou Briac, o mago, irmão de Rogéar. Pouco temos em comum, mas mesmo assim ele espera minha visita. Mas quero ir montado no potrinho, que sabe muito bem o rumo certo. Basta chamá-lo, montar nele e deixar que corra solto em bom galope. Ele irá rápido como o vento, e logo chegaremos ao castelo, onde sou aguardado.

(Ele desenha com o dedo três círculos na terra, dizendo de cada vez):
– Peric perac, bric brac, potric potrac!
(Depois chama)
– Potrinho de passos rápidos e de crina esvoaçante,
de olhar astuto e brilhante,
venha me pegar na disparada
e me leve pela floresta encantada!

(O potro aparece. Briac lhe põe o cabresto, monta e sai. Música de cavalinhos.)

PERONIC:
– Ora essa! Então é assim que se faz para ir a Kerglás?!
Desenho na terra… (tenta), ih, não sei fazer…
Palavrinhas para dizer:
“Petic, petrac, petri, brac, brac, pro, pro… Ah, deixa pra lá. Não é assim.
E os versinhos: “Potrinho, potrinho, meu bom cavalinho.”
Não… também não é assim.
É, mas que eu tento, lá isso eu tento! E quem não tem um belo conhecimento
se vale da esperteza, mesmo porque beleza não põe mesa.

GAROTA DO CAMPO (passando com mais duas):
– Lá está aquele tonto falando sozinho outra vez.

GAROTA 2:
– Parece tonto, mas é sabido. Não diz dois sem três.

PERONIC (continua a falar, enquanto faz preparativos):
– Em vez de ficar aqui pensativo,
vou fazer meus preparativos:
(caminha, entrando nos lugares, para pegar o material)
arranjo um cabresto e um cordão de pegar galinhola,
que vou mergulhar na água benta;
e mais um saco de lona bem cheio de cola
e de penas de ganso, galinhola, galinha,
pois a fome do leão aumenta
ao sentir este sugestivo cheirinho.

GAROTA 3 (as três estão meio escondidas, espiando):
– Que será que ele está aprontando, falando, falando?

PERONIC (coça a cabeça, pensativo):
– E mais um rosário! É isso! E minha flautinha de sabugueiro!
Talvez me salvem de dificuldades… Deus queira! (faz a flautinha)

GAROTA 1:
– Quando ele crescer, vai ser um moço bonito.
Vocês não acham?

GAROTA 2:
– Mas é tão esquisito…

PERONIC (dando um tapa na testa):
– Ah! O toucinho rançoso na casca de pão,
para eu não ser tentado por algum cheirinho bom no Vale da Tentação.
(vai buscá-lo e repara nas garotas):
Estão falando de mim, essas tontas. – Ei! Psiu!

GAROTA 3:
– Vamos embora, que ele já nos viu! (fogem correndo dando uns risinhos)

PERONIC (encolhendo os ombros):
– Ah, não quero nem saber!
Tenho mais o que fazer.
Pensando bem, vou espalhar pedacinhos de pão na grama,
pois um potrinho é sempre curioso. E o curioso é assim que a gente chama.

(Tendo preparado tudo, Peronic espalha o pão na grama e se esconde atrás de um arbusto.)

PERONIC:
– Já tenho tudo arranjado,
e o pão está espalhado.
Lá vêm eles! (Música de cavalinhos. Rogéar passa, e o potrinho pára para comer o pão. Peronic sai detrás do arbusto e monta no potrinho.)
– Vamos lá, meu potrinho, na disparada,
pela floresta encantada!

(Ele sai e, com a passagem da música, entram o cenário e o clima da floresta.)

 

 

CENA 3

Floresta da Ilusão. Euritmia dos elementos. Peronic no potrinho.

PERONIC:
– Vamos, meu potrinho, pela Floresta da Ilusão.
Começou a disparar meu coração.
Sinto um frio na espinha e tremo de medo.
Que os céus me ajudem! Quem vem lá? São rochedos!!

ROCHEDO 1:
– Para trás! Para trás!
ROCHEDO 2:
– Quem passa por nós não volta mais!
ROCHEDO 3:
– Podemos rolar e esmagar seus ossos!
ROCHEDO 4:
– De você restarão apenas destroços!

PERONIC:
– Coragem, potrinho valente! Eia! Vamos em frente!
As pedras não estão falando!
As pedras não estão rolando!
É tudo enganação da Floresta da Ilusão!
Seria uma grande bobagem perder agora a coragem!
É só confiar e vencer o medo.
Nisto consiste o segredo!

(Saem os rochedos. Surgem as árvores em chamas. Ver como serão iluminadas. Som de zumbidos e estalos.)

ÁRVORE 1:
– Ouça os galhos como falam!
ÁRVORE 2:
– Ouça as chamas como estalam!
ÁRVORE 3:
– Para trás! Para trás!
ÁRVORE 4:
– Ramos, queimem este rapaz!

PERONIC:
– O fogo do mal não me vence assim,
porque o céu cuida de mim.
Coragem, meu coração!
Isto não passa de ilusão.

(As árvores somem. Surgem as águas e depois os peixes.)

ÁGUA 1:
– Minhas vagas avançam, avolumam-se, dançam…
ÁGUA 2:
– Reviram toda a terra do mundo e levam você para o fundo.
(Peronic cai e nada com esforço, mas afunda.)
ÁGUA 3:
– Abandone-se a nós! Torne-se leve como os peixes velozes.
São belos os sonhos de quem ouve nossas vozes! (4 peixes cercam Peronic.)
ÁGUA 4:
Lá em baixo ele bateu com os pés e vem subindo outra vez!
Não deixem! A coragem é seu poder! Assim ele nos vai vencer!

PERONIC (ressurgindo na superfície):
– As águas não avançam. Eu venço as vagas.
E não acredito nessas medonhas pragas.
Com a força de minha vontade,
eu enxergo a verdade! (As águas e os peixes somem.)
Veja, potrinho valente! De repente,
a ilusão desapareceu,
e aqui ainda estou Eu!

(A água desaparece com seu cenário. Peronic cavalga. Com a música, entra o cenário da campina.)

 

 

CENA 4

Campina com uma macieira carregada, guardada pelo anão, sentado numa pedra com a espada de fogo. De um lado, como que de outra região, cantam as moças e os moços da aldeia com o menestrel. Depois, entra Peronic com o potrinho.

CORO CANTADO (do menestrel com os moços e moças da aldeia):
“Onde andará Peronic, o tonto pastor?
Ele cresceu em beleza, coragem, fervor.
E foi atrás de aventuras, saiu a correr,
o feiticeiro malvado ele quer vencer!”

ANÃO:
– Que nenhum homem se atreva a pegar esta maçã! Se minha espada o tocar, ele será transformado em nada! Ainda ontem esteve aqui um cavaleiro audaz que tentou pegá-la. E que restou de sua tentativa desesperada? Nada além de um montinho de carvão.

PERONIC (aparece):
– Muito bons dias, prezado senhor. Venho de longe e estou indo para Kerglás, onde o senhor Rogéar me espera.

ANÃO:
– Audaz mentiroso! Quer experimentar esta lâmina de fogo?

PERONIC:
– O senhor não entendeu. Sou um treinador de pássaros e dedicado servo de Rogéar. Tanto assim que ele me emprestou seu potrinho. Porque em Kerglás os passarinhos arrasam com os bicos todos os jardins e tudo o que amadurece nas plantações. Esse é um caso que só eu posso resolver, e vou prender os passarinhos com este laço especial.

ANÃO (cofiando a barba, observa bem Peronic e fala consigo mesmo, voltado para o público):
– É, mesmo… Ele está com o potrinho de Rogéar. E tem um ar tão ingênuo que nem deve saber pregar mentiras.
(Aponta para o laço e fala com Peronic):
– E como é que você apanha os passarinhos com esse tal de laço especial, que mais parece um lacinho atoa? Trate de demontrar logo isso para mim, senão eu me aborreço e o transformo num mero montículo de cinzas.

PERONIC:
– Pois então experimente! É só o senhor passar a cabeça pelo laço, como se fosse um passarinho. (O anão passa a cabeça pelo laço.) Passou?

ANÃO:
– Passei. E agora?

PERONIC (fechando o laço):
– E agora dou um puxão: zás-trás!

ANÃO (esbravejando e esperneando):
– Ei, ei, ei… Socorro! Mentiroso! Traidor!

PERONIC:
– Agora, que o senhor já sabe o bastante, pode sapatear à vontade, pois a cordinha foi benzida e por isso não arrebenta. (Colhe depressa a maçã e monta no potrinho.)
– Vamos, meu potrinho, vamos a galope, mas não me deixe cair!

CENA 5

Jardim cheio das mais variadas flores, sobressaindo a misteriosa flor que sorri. O leão, com a juba de serpentes, anda em círculos em torno dela. Peronic chega.

FLOR (movimentos eurítmicos):
– Felizes as mãos que me arrebatarem, benditos os lábios que me tocarem, a mim, a flor misteriosa que sorri! Jovem, curve-se, colha-me, e eu o farei feliz!

(O leão continua correndo em círculos e rugindo. Peronic tira o capuz e o saúda.)

PERONIC:
– Desejo-lhe bons dias, senhor Leão, e as bênçãos do Criador, por ser o senhor de nobre linhagem e imensa força! Que Deus guarde sua família e principalmente o senhor, que é tão considerado. Com todo o respeito, é este o caminho para Kerglás?

LEÃO (rugindo ameaçadoramente):
– Que quer você lá em Kerglás?

PERONIC:
– Desculpe-me por ter nascido e por causar-lhe aborrecimento, mas uma nobre amiga do senhor Rogéar pediu que eu lhe levasse este saco cheio de cotovias, para o senhor Rogéar mandar fazer um pastelão.

LEÃO:
– Éééé mesmo?! Cotovias? Já nem sei quando foi a vez
que devorei umas duas ou três…

PERONIC:
– Sóóó? Mas eu não seria um jovem correto se não confessasse que este saco está cheio delas!

LEÃO (tenta sussurrar, mas grita, desajeitado por estar tão ávido):
– Ah, bem que me apetece uma cotovia,
pois ela faz crescer a juba e a cauda no mesmo dia!

PERONIC:
– Posso até satisfazer esse pedido, desde que o senhor pare de rugir. (Abre o saco.) Pronto. Coma um bocadinho, mas deixe algumas, pois as cotovias são para Rogéar.

(O leão se enfia dentro do saco e gruda nas penas, rugindo feito louco. Peronic dá um nó no saco, depois corre para a flor.)

FLOR:
– Jovem, curve-se, colha-me, e eu o farei feliz. Olhe para meu centro. Ele é um espelho que diz o que você é. Vendo-se aí refletido, sua vida terá um verdadeiro sentido.

PERONIC (olha o centro da flor):
– Vi minha verdade no centro da flor. Agora sei o que me cabe. (Ele colhe a flor e monta no potrinho) Tudo há de dar certo! Vamos, meu potrinho, pela floresta encantada! (Saem.)

 

CENA 6

Lago dos dragões. Peronic vai atravessá-lo, mas os dragões surgem e avançam.

DRAGÃO 1:
– Pouco a pouco ele vem vindo!
DRAGÃO 2:
– Vamos estraçalhar esse atrevido!
DRAGÃO 3:
– Bufem! Soltem fogo pelas ventas!
DRAGÃO 4:
– Vamos ver se esse rapaz agüenta!

(Euritmia dos dragões.)

PERONIC:
– Por que tanto barulho? Não sabem gritar mais baixo? Venham! Estou aqui! Podem escancarar o focinho! (Joga as contas do rosário dentro das bocas dos dragões.) Vamos! Devorem as contas do meu rosário sagrado, e veremos o que acontece!

(Os dragões vão cambaleando, tropeçando e morrendo. Mas o dragão 1 torna a se levantar e o ataca. Suas forças, porém, já diminuíram.)

DRAGÃO 1:
– Venha! Venha, mísero ser humano! Eu sou mais poderoso do que você imagina!

PERONIC (lutando contra o medo):
– Coragem! A falta de coragem é irmã da vontade fraca. Mas eu hei de ser forte!

(Da dança-duelo Peronic enfim sai vencedor. Ele atravessa o lago. Escurece.)

 

CENA 7

O gigante com seis olhos, acorrentado pelo pé a um rochedo à esquerda. Depois, o Vale das Tentações. Peronic vai chegando, escondido pelas moitas à frente. À direita está escuro.

GIGANTE (jogando a esfera que volta):
– Bruto, grudo no musgo.
Meu sopro ruge e assusta.
O fundo do chão com os pés eu furo.
Com meus seis olhos vejo tudo,
quem vem e quem vai pelo mundo.
Seguro com as unhas quem surge.
Os humanos são estúpidos,
mariposas surdas que flutuam
em torno dos tesouros de Rogéaaaarr!
E dão pulos quando presos na rede.
E tudo eu escuto:
os elementos os enganam, o anão os domina,
o leão os devora, os dragões os queimam.
NENHUM
consegue chegar! NENHUM!
E, se chegasse agora aqui um pirralho humano,
não seria bom então?
Era só esmagar e passar no meu pão!

PERONIC (anda, escondido pelas moitas, e fala consigo mesmo):
– Vou logo chegar ao Vale das Tentações, mas o gigante está ali me espiando com seis olhos. Preciso fazê-lo dormir. Seus seis olhos vão fechar-se quando eu tocar. (Ele toca a flautinha, o gigante vai fechando um olho de cada vez até o sexto.)

(Surgem as jovens do Vale das Tentações, que clareia à direita. Aparecem mesas com frutas e flores. Valetes imóveis à espera. As jovens dançam e falam. Elas estão feiamente maquiadas, mas na frente dos rostos seguram lindas máscaras.)

JOVENS (chamam):
– Venha, lindo jovem! Nós cantamos, dançamos, giramos. Estamos à sua espera!
JOVEM 1:
– Você venceu os elementos: os rochedos possantes, as árvores de fogo e as águas profundas. Venha, meu valente!

JOVEM 2:
– Você capturou o anão e escapou das chamas de sua espada! Venha conosco!
JOVEM 3:
– Você não teve medo do leão e conquistou a flor que sempre sorri! Venha, lindo jovem!
JOVEM 4:
– Você acabou com os terríveis dragões e atravessou o lago são e salvo. Venha, meu valente!
JOVEM 1:
– Você fez dormir o gigante da esfera que vai e volta, fechou seus seis olhos que tudo vêem. Impossível imaginar tamanha esperteza em alguém tão jovem!
JOVEM 2:
– Você resolveu tudo tão bem… Agora merece descanso e prazer, pois amanhã ainda haverá outras tarefas a cumprir. Venha!
JOVEM 3:
– Temos para você iguarias em taças de cristal e em pratos dourados. Tome, tome, prove um pouquinho! Prove! Sinta o aroma destas delícias!

PERONIC (mordendo a casca do pão):
– Só sinto o cheiro do ranço do toucinho.

JOVEM 4:
– Olhe estas jóias, Peronic!
JOVEM 1:
– Temos pérolas, ouro! Muito ouro!
JOVEM 2:
– Temos também veludo e sedas finas e macias.
JOVEM 3:
– É tudo seu, Peronic!
JOVEM 4:
– Seremos suas servas dedicadas e só faremos o que for de sua vontade.
JOVEM 1:
– Todas nós temos um rosto lindo. Olhe bem!
JOVEM 2:
– Temos um rosto lindo. Você não acha? Não acha?

PERONIC (consigo mesmo):
– Minha atenção está firme. Essa beleza toda parece falsa. Por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento.

(Neste momento, as máscaras caem das mãos das jovens, e sua feiúra aparece).

JOVEM 3:
– Oh! Ele nos vê como realmente somos! Ah, que bom seria se ele ficasse cego!
JOVEM 4:
– Vamos embora daqui! Fujamos agora mesmo! O olhar desse jovem é claro demais, ai de nós! É claro demais!! (Elas saem correndo.)

(Peronic chega ao fim do jardim e segue com seu potrinho.)

PERONIC:
– Vamos, meu potrinho, falta pouco para chegarmos a Kerglás! (Saem. Escurece.)

CENA 8

Criança no espinheiro. Vai clareando. Peronic chega.

PERONIC:
– Ainda bem que está clareando. (O potrinho vira em direção ao espinheiro.) Potrinho, por que você mudou de direção?

CRIANÇA no espinheiro:
– Não se deixe iludir! Não se deixe confundir!

PERONIC (atento):
– Dessa sebe de espinhos, ouço uma voz delicada. Parece voz de criança…

CRIANÇA:
– Pare e ouça-me, Peronic! Um triste destino me fez chegar até Rogéar. Fui obrigada a ficar a seu serviço. Certo dia, num banquete de muita gente má, ele me gritou: “Traga-me a taça! É dela que vou sorver a vida!” Obedeci na mesma hora, mas tremendo tanto, que uma gota pingou da taça e virou uma chama ardente. Rogéar, cheio de fúria, decidiu banir-me para este espinheiro. Não posso viver, nem posso morrer, estou presa aqui para sempre! Só você poderá libertar-me. Salve-me, Peronic!

PERONIC (preocupado):
– Mas, como vou atravessar tantos espinhos?

CRIANÇA:
– Você não será picado. Estenda sua mão. Ajoelhe-se e ouça meu conselho: O caminho é seguro para quem é puro e confia. Deves ter coragem e agir com amor.

Ouça-me como se eu fosse seu mestre, e estes espinhos serão desmanchados, e você libertará a todos.

(Peronic tira a criança do espinheiro, que se desmancha. Três seres com véus ocultam a criança, e ela some. Como que saindo de um sonho, Peronic se ergue e chama o potrinho.)

PERONIC:
– Vamos, meu potrinho, falta pouco para chegarmos a Kerglás! (Escurece.)

 

CENA 9

 

De um lado, o castelo de Rogéar; do outro, o rio (faixa de tecido movimentada de ponta a ponta do palco). Chega o potrinho com Peronic.

PERONIC:
– O rio está ali. (O potrinho o conduz.) Muito bem, meu potrinho! Só mesmo você para saber o ponto certo onde atravessar! Do contrário, nós dois nos afogaríamos. Mas… (olha para todos os lados), não vejo a dama vestida de negro que devia estar à minha espera!

DAMA:
– Estou aqui neste rochedo, Peronic. E, já que você tem tanta coragem, leve-me consigo nessa travessia.

PERONIC:
– Pois não, senhora. Suba na garupa do meu potrinho.

(Ela sobe e, no meio da travessia, começa a falar com Peronic.)

DAMA:
– Você sabe quem sou eu, meu rapaz?

PERONIC:
– Perdão, senhora, mas não sei.

DAMA:
– Pois saiba que sou de origem mourisca, e isso o tom de minha pele dá a perceber. Não existe mais ninguém com um nome igual ao meu. Ele é de alta importância, pois descendo do pecado original. Todos tremem só de me ver vestida de negro. Estremeça, Peronic! Eu sou a Peste!

PERONIC:
– Senhora dona, eu lhe peço, não me segure com tanta força!

DAMA:
– Não tenha medo de mim. Eu nada lhe farei de mal. Na verdade, vou ajudá-lo!

PERONIC (atrapalhado):
– Querida Peste – quer dizer – Nobre Peste – quer dizer, como dizer? – então a boa senhora dona Peste me dará ajuda? Pois o que preciso fazer agora é vencer o bruxo Rogéar.

DAMA (afirma categoricamente):
– Pois ele vai morrer!

PERONIC:
– Mas isso é impossível! Dizem que ele é imortal!

DAMA:
– Mesmo assim, seus dias estão contados. Preste atenção: você será recebido por Rogéar. Você se lembra, jovem Peronic, da árvore do conhecimento do bem e do mal, que existia no Paraíso terrestre? Você se lembra que Adão e Eva comeram de seu fruto, e que esse fruto torna mortais os imortais? Pois saiba, valente Peronic, que um anjo tirou uma muda dessa árvore e a plantou num abismo profundo. Foi de lá que veio essa maçã que você traz consigo, e ela torna mortal todo ser imortal. Se Rogéar provar essa maçã, vai morrer assim que eu o tocar.

PERONIC:
– E como vou encontrar o tesouro que procuro, nobre dama? A lança de diamante e a taça de ouro devem estar trancadas num subterrâneo tenebroso, que nenhuma chave pode abrir.

DAMA:
– Não se preocupe. Você conseguiu a flor misteriosa que sorri. Ela abre qualquer fechadura e ilumina a treva mais sombria. Você é bom, e seu destino é de luz! Vá sem medo. Lá está o castelo! (Escurece.)

 

CENA 10

 

No castelo. Rogéar e servos. Depois, Peronic e a Dama. Três portais de um lado.

ROGÉAR (fumando um cachimbo, sentado no chão, de pernas cruzadas):
– Venham cá, meus servos, Zombador, Pérfido, Voraz! Digam: meu tesouro está bem guardado? Responda, Zombador!

ZOMBADOR:
– Está trancado na torre a sete chaves, senhor.
Nem espada, nem fogo, nem seja o que for
pode abrir aquela porta. Só a sua voz
terrível e feroz.

ROGÉAR:
– Nem posso imaginar outras mãos conquistando as forças desse tesouro. Mas, por que me preocupar? Estou protegido pelo anão, pelo leão, pelo gigante e pelos dragões! Aproxime-se e responda, Voraz! Lá na floresta morreu mais alguém?

VORAZ:
– Um alguém só? Que nada!
Foram dois ou três. Uma gentarada!
Um nos rochedos, um nas labaredas,
e um as águas viraram
e afogaram.

ROGÉAR:
– Que boa notícia! Agora, Pérfido, encha meu copo e diga o que tem a dizer!

PÉRFIDO (enche o copo):
– Senhor, veio outro, barbudo,
que ao ver a maçã fez de tudo,
quis pegá-la, mas não conseguiu.
O anão com a espada o destruiu.

ROGÉAR:
– Ah, que bom feiticeiro eu sou! Minha magia não falha. Agora, façam por merecer minha benevolência e vão buscar depressa um bom peixe assado e tudo o mais de uma boa refeição! (Os servos se retiram.) Por Belzebu e Satanás, que grande prazer foi ouvir as notícias que me trouxeram. Mas… MAS… quem é esse, sem espada e sem lança, que se atreve a entrar em meu castelo? E, além disso, vem montado em MEU potrinho! E nem foi devorado pelo leão!

PERONIC (entra com o potrinho, a dama velada e a personagem da flor; ele faz uma profunda reverência):
– Foi realmente este cavalinho que me trouxe. Não desconfie de mim, senhor. Venho a pedido de Briac, e é dele a encomenda que lhe trago.

ROGÉAR:
– Mas… você conhece meu irmão?

PERONIC:
– Sim, eu o conheço muito bem. Ele me implorou que lhe trouxesse, hoje mesmo, a maçã das mil alegrias e esta dama de grande beleza.

ROGÉAR (consigo mesmo):
– Sem dúvida é um amável presente, mas tenho de pensar nisso com cuidado…
(volta-se para a Peste): – A senhora vem de onde e com que propósito?

DAMA:
– Venho cumprir, com todo o prazer, a vontade do maior Senhor.

ROGÉAR:
– Neste reino, o maior senhor sou eu. Nunca surgiu ninguém maior. E, velada como está, eu não a conheço, senhora. Não quer erguer seu véu?

DAMA:
– Deixe-me continuar como a humilde desconhecida. Pois aquele que vê meu rosto, nem que seja uma só vez, jamais se esquece dele.

ROGÉAR:
– Nesse caso, que venha a maçã das mil alegrias! Quero experimentar o presente que meu irmão mandou! (Peronic entrega, e ele dá uma mordida na maçã.)

DAMA:
– Então experimente me ver. (tira o véu) Eu sou a Peste!

ROGÉAR:
– Não!! Não quero vê-la! Para trás, para trás!

DAMA (tocando-o):
– Este será seu fim! (Rogéar cai morto.)
– Peronic! A flor misteriosa que sorri vai abrir para você aqueles três portais. Todos os três lhe darão passagem. Mas só por um deles você deve entrar!

FLOR:
– Que o portal de ouro se abra para Peronic, o vencedor das provas! (o portal de ouro se abre) Que o portal da luz celestial se abra para Peronic, o herói cavaleiro! (o portal da luz celestial se abre.)

PERONIC:
– O portal de ouro decerto é para o sol passar. O outro, de luz celestial, deve ser para os anjos. Se eu ousar passar por esses dois, posso me perder. Sou pequeno e humilde. Devo entrar pelo portal cinzento do porão.

FLOR: – Que se abra o portal cinzento para este jovem, que olhou para o centro da flor que sorri e, vendo-se aí refletido, percebeu o sentido de sua própria vida!

(Quando esse portal se abre, aparece a criança com a taça e a lança.)

CRIANÇA:
– Aproxime-se, Peronic, meu irmão! Você passou por todas as provas e as venceu, graças à sua simplicidade e pureza. Não se mostrou orgulhoso nem pretencioso, e conquistou o grau de cavaleiro. A lança e a taça são suas. Segure-as bem firme em suas mãos. Agora, aqui, você é o rei!

(Assim que Peronic segura a lança e a taça, ouve-se um rumor surdo como de terremoto, um estrondo, e tudo desaparece, escurecendo-se o palco.)

 

CENA 11

 

O coro canta com o menestrel, enquanto Peronic passa com lindo traje de festa e vai de novo dando vida aos quatro cavaleiros do início, que estão caídos no chão. Depois chega à Bretanha, onde encontra famintos e feridos.

CORO (canta, enquanto Peronic cuida dos cavaleiros caídos):
“Em seu corcel e num traje de festa,
o Peronic voltou à floresta.
E os cavaleiros que haviam morrido
todos os quatro voltaram à vida,
graças à taça com fundo de ouro
que ele levava, bendito tesouro.
E, cavalgando, chegou à Bretanha.
A triste fome ali era tamanha,
eram tantos os pobres feridos
que Peronic ficou entristecido.”

ARAUTO (surge, transmitindo mensagem do rei):
– Aqui, na cidade de Nantes, o inimigo nos cerca, e as terras em volta foram devastadas! Impera por tudo a fome, e os feridos estão morrendo! O rei, por isso, proclama que fará seu sucessor aquele que expulsar os inimigos e libertar a cidade!

PERONIC (dirigindo-se ao arauto):
– Senhor, não é necessário continuar chamando. Leve-me ao rei. Eu sou aquele por quem ele procura.

ARAUTO (com desprezo, por ele ser pequeno):
– Você?! Siga seu caminho, Nanico. O rei não pode perder tempo espantando os mosquitos que pousam em seu ombro.

(Peronic o toca com a lança, e o arauto cai. O povo recua de medo.)

PERONIC:
– Voltem! Não tenham medo. Vocês viram o que acontece com o toque desta lança em alguém que me trata mal. Agora vejam o que posso fazer para o bem dele. (Encosta a taça em seus lábios, e o homem volta à vida.) – Arauto! Agora que já sabe o que posso fazer, vá levar ao rei a notícia de minha chegada!

ARAUTO (sai correndo):
– Majestade! Majestade! (Escurece.)

 

CENA 12

 

Cena da batalha enquanto o coro canta. Os guerreiros da Bretanha, guiados por Peronic, enfrentam os inimigos e os dispersam. A ação pode se passar também atrás de um véu ou cortina fina, aparecendo na frente, de um lado, o coro cantando.

CORO (canta):
“Peronic já vai à luta com a lança e a taça nas mãos.
Aniquila os inimigos e revive seus irmãos.
A vitória é alcançada, e não há quem a explique.
O rei está assombrado com o valente Peronic. (bis)”

 

CENA 13

Castelo do rei. O rei, sua filha, o arauto e outras personagens da corte. Peronic se ajoelha diante do rei.

REI:
– Peronic! Por causa de sua extrema coragem e da grande vitória conseguida, eu o nomeio meu sucessor. Tem você algum pedido a fazer?

PERONIC:
– Tenho dois pedidos, se Vossa Majestade me permite!

REI:
– Fale, jovem cavaleiro!

PERONIC:
– O primeiro pedido, Majestade, é que sua filha Ana Clara me seja dada em casamento, se for da vontade dela.

REI:
– Que diz você a isso, minha filha?

PRINCESA ANA CLARA:
– Meu pai, pelo amor que já nasce por ele em meu peito, é isso o que mais desejo. As maneiras deste cavaleiro são firmes, porém são brandas. Ele me transmite carinho e alegria, força e paz. (Ela se aproxima de Peronic e o faz levantar-se, falando com ele) – Peronic… (Os dois se dão as mãos.)

PERONIC (embevecido):
– Ana Clara…

REI:
– Seu primeiro pedido foi aceito, Peronic. Faça agora o segundo!

PERONIC:
– Senhor, a alegria que sinto é imensa. Minha missão, porém, só estará completa se me for concedida a graça de acompanhar à Terra Santa os valentes cruzados.

REI:
– Essa graça eu a concedo. E vejo no semblante de meus fiéis vassalos a satisfação por saberem que terão entre eles Peronic, o justo, o corajoso. E agora, festejemos este noivado com música e alegria!

(Dança final de todos. Depois da dança, o palco escurece. Luz apenas sobre o menestrel, que vai entrando e falando, enquanto leve melodia é tocada.)

MENESTREL:
– Dizem uns que Peronic, de posse da lança e da taça, vive para sempre, não só ele como também seus descendentes.
Mas também ouvi dizer que Briac, o mago bom, irmão do maligno Rogéar, retomou a lança e a taça, que estão agora sob seu poder.
E hoje, quem as quiser para si, deve partir em longa viagem e, com a própria força e a própria coragem, procurá-las e assim conquistá-las.

 

F I M

 

Sobre a escolha e o envio da peça

Para escolher uma peça com objetivo pedagógico, estude bem que tipo de vivência seria mais importante para fortalecer o amadurecimento de seus alunos. Será um drama ou uma comédia, por exemplo. No caso de um musical, é importante que a classe seja musical, que a maioria dos alunos toquem instrumentos e/ou cantem. Analise também o número de personagens da peça para ver se é adequado ao número de alunos.

Enviamos o texto completo em PDF de uma peça gratuitamente, para escolas Waldorf e escolas públicas, assim como as respectivas partituras musicais, se houver. Acima disso, cobramos uma colaboração de R$ 50,00 por peça. Para outras instituições condições a combinar.

A escola deve solicitar pelo email [email protected], informando o nome da instituição, endereço completo, dados para contato e nome do responsável pelo trabalho.

 

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