A criança de 10 anos
Por Cristina Maria Brigagão Abalos, Dora Regina Zorzetto Garcia e Vilma Lúcia Furtado Paschoa.
Aos 10 anos, quase todas as crianças já passaram pela fase de estranhamento frente ao mundo, decorrente do desaparecimento do sentimento de unidade e integração com a natureza e o ambiente, o que prevalecia até por volta dos 9 anos; vislumbram agora a própria individualidade e começam a desenvolver uma fase mais harmoniosa, que deverá durar até aproximadamente os 12 anos. Estas crianças querem estar aqui e agora; muito saudáveis e ativas, sentem grande entusiasmo e curiosidade por tudo que lhes é apresentado.
A roda rítmica, tão utilizada com crianças menores no início de cada dia, para harmonizá-las e prepará-las para a aprendizagem, passa por transformações. Os exercícios rítmicos* passam a ser feitos na posição frontal: ou com a classe toda de frente para o professor, ou uma metade frente à outra metade etc.
Sugerimos que os conteúdos das matérias sejam dados com muitas descrições, bem ricas e coloridas; os alunos geralmente fazem muitas perguntas e acrescentam informações que eles mesmos possuem ou descobrem. Nessa faixa etária, é necessário caracterizar cada conteúdo trazido antes de conceituá-lo. Não se deve fazer nenhuma dissecação científica, o que ressecaria qualquer vivência.
Uma das vias de acesso aos sentimentos das crianças desta idade é a Mitologia Nórdica, uma coleção de histórias com origens variadas e transmitidas oralmente até o século XI na Escandinávia, quando foram escritas pela primeira vez em versos. Essa coleção chama-se Antiga “Edda” (a palavra “Edda” significa mulher antepassada ou bisavó). Por volta de 1200 d.C., o islandês Snorre Sturlason escreve a Nova “Edda”, mas em prosa.
Através destas histórias, as crianças de 10 anos podem penetrar de forma imaginativa em alguns segredos da existência humana: são imagens vigorosas, que “sacodem” saudavelmente as crianças e que lhes falam de honra, coragem, luta e outros valores fundamentais. As histórias, tocando seu coração, traduzem a mudança de consciência pela qual elas estão passando. A imagem das Nornas, por exemplo, chama a atenção para a passagem do tempo, para a existência do passado, do presente e do futuro, que só agora a criança tem condições de compreender em profundidade. No contexto destas imagens, o professor pode trabalhar os tempos verbais. Na história de Siegfried, o herói deve forjar a própria espada, vencer o dragão e libertar a jovem aprisionada pelo fogo: são belas imagens que já apareceram, de forma simplificada, em contos de fada, mas que agora, com nova roupagem, falam da luta interior que cada criança trava nesta idade, afastando-se da infância em direção ao seu caminho individual, tentando superar os impulsos e conquistar uma postura amorosa e equilibrada diante do mundo.
Os alunos nesta idade sentem uma atração muito forte pelos animais, querem conhecê-los, saber como vivem e quais as suas especialidades. Esta abordagem é bem diferente daquela feita com as fábulas em anos anteriores. Agora, descrevem-se os animais observando suas formas e cores, movimentos e habitat, como se alimentam e como se protegem e, principalmente, suas especialidades. As crianças constatarão que o homem não tem uma especialidade única, mas que pode conter todas de maneira menos desenvolvida. É como se um pouco de cada animal estivesse reunido no ser humano. Mostrando às crianças os animais em sua relação com o homem, a ponte entre elas e o mundo é reconstruída e o entendimento cultivado. Quando a criança percebe o entrelaçamento e a interdependência que existe entre todas as coisas do mundo, ganha confiança e desenvolve um sentimento social.
Para crianças de 10 anos, sugere-se que o estudo da Geografia e da História seja ainda bastante integrado. Pode-se iniciar com o lugar onde as crianças vivem: elas podem ser solicitadas a observar e desenhar sua casa, as redondezas, o caminho para a escola e suas cercanias; fala-se da cidade onde se vive e que ela não foi sempre assim. O que existia antes de a cidade aparecer? Quem vivia aqui? Como vieram os primeiros navegantes que aqui chegaram? O que precisaram enfrentar? Todo este assunto é muito extenso, mas tudo pode ser contado como uma história, sem julgamentos. Para isto haverá ocasião nos próximos anos!
Também neste ano pode-se aprofundar a sistematização da gramática e amplia-se o estudo das classes gramaticais, vivenciadas nos anos anteriores. Na matemática entram as frações: só depois de se perceber separada do mundo é que a criança entende melhor a fragmentação.
O TEATRO PARA CRIANÇAS DE 10 ANOS
Todos estes assuntos podem ser objeto de dramatizações, inclusive Português e Matemática; podemos fazer dramatizações sobre animais ou acidentes geográficos, uma peça sobre uma lenda indígena ou um episódio do povoamento de nossa região, uma dramatização sobre verbos ou sobre frações, sempre com poesias, música, muito movimento e a fala bem cuidada.
Com crianças de 10 anos, pode haver papéis mais individualizados e menos atuação em coro. Crianças mais conscientes, seguras e desembaraçadas são capazes de estabelecer, sustentar e desenvolver diálogos entre personagens.
Entretanto, no processo de montagem, todos devem vivenciar os vários papéis da peça. A definição destes papéis fica a cargo do professor que, por seu envolvimento e sensibilidade, tanto saberá perceber a real identificação do aluno com a personagem, quanto as necessidades pedagógicas. Muitas vezes, as vivências através de uma personagem podem ser o contraponto para a harmonização do aluno. Uma criança frágil, por exemplo, pode ser o “cacique” de uma peça como a sugerida a seguir e que, apesar da fala restrita, é uma figura imponente, um líder.
Nos cenários, além de panos coloridos para compor ambientes, pode haver objetos cênicos confeccionados pelos alunos nas aulas de Artes, promovendo uma integração curricular mais abrangente.
Os figurinos também podem receber maiores detalhes, caracterizando as personagens de forma mais detalhada, ainda que utilizando materiais simples e de baixo custo, ou confeccionando peças que possam ser utilizadas em outras dramatizações, compondo aos poucos um pequeno camarim escolar.
Como exemplo prático, foi escolhida a peça “O Começo de São Paulo”, que faz parte da proposta de ensino integrado de História e Geografia. O texto, baseado em documentos e cartas de época, apresenta peculiaridades que enriquecem e ampliam a linguagem dos alunos. Também caracteriza o universo dos indígenas, dos portugueses conquistadores e dos jesuítas, mostrando sua interação.
A composição cênica pode ter mais de um plano. O coro, mais atrás e dividido em planos diferentes (o que pode ser feito com tablados de madeira). Na frente, a princípio, não há nada. Nóbrega vem de longe com Leonardo Nunes (pode ser até do meio da plateia). Índios chegam de lados diferentes, trazendo, por exemplo, panos azuis, representando os Rios Tamanduateí e Anhangabaú. Deixando os panos no chão, eles saem, e Nóbrega, apoiado em um bordão e guiado pelo rapaz André Ramalho, inicia a “subida da serra”, indicando em gestos o esforço físico que isto exige. De quando em quando para, recupera o fôlego, mede a distância com os olhos e admira a paisagem. O coro fala por Nóbrega. Entra João Ramalho e vão chegando alguns índios com seus caciques e estabelece-se um diálogo entre eles, a partir do qual todos iniciam a construção da barraquinha, que será escola, cozinha, enfermaria, refeitório e dormitório. Depois disso, seguindo as falas, outros personagens vão entrando, trazendo objetos do seu trabalho, por exemplo: Anchieta carrega um livro e fibras para tecer alpargatas; Paiva traz tecidos e vasilhas para o tingimento; Jácome enfia contas de madeira para fazer um rosário etc. Aos poucos vai-se compondo o cenário, deixando o centro livre para que todos juntos possam erguer o altar.
Além das músicas que integram a peça, e que também podem ser trabalhadas na aula de Artes, toda a movimentação deve ser acompanhada por sons de chocalhos, paus-de-chuva, reco-recos, apitos com sons de pássaros. O canto é sempre feito por todos. Também ficaria bonito introduzir uma dança indígena e confeccionar um trompete de concha (caramujo), que se faz quebrando seu bico e lixando o orifício. Toca-se por meio da vibração dos lábios. Este era o instrumento que os indígenas usavam para dar algum aviso, como um toque de reunir.
Os figurinos podem ser divididos em três grupos: a roupa dos índios com base na juta ou palha e aplicações de penas, sementes e conchas, adereços nos braços, tornozelos e colares; os caciques usam também um cocar; os padres jesuítas vestem batinas pretas e longas, com crucifixos pendurados sobre o peito; Nóbrega pode usar um chapéu de abas largas; os portugueses vestirão calças largas e rústicas dentro de botas de cano alto (isto pode ser simulado com pedaços de couro, feltro ou papel camurça), cinturões, camisas de manga longa com coletes, chapéus de couro ou feltro de abas largas, algo semelhante à roupa dos bandeirantes. Sugerimos que o coro se apresente vestindo túnicas de uma ou duas cores.
* Exercícios de ritmo – A cada dia, quando as crianças chegam na sala de aula, vêm de ambientes diferentes e se apresentam num estado de ânimo especial: algumas chegam esbaforidas porque estavam atrasadas, outras cansadas, pois pegaram muito trânsito, outras assistiram uma briga entre os pais ou coisas ainda piores. Elas não estão prontas para a aprendizagem. A função principal da parte rítmica é harmonizar estas crianças e dispô-las para a aprendizagem. Um poema, por menor e mais simples que seja, dito em coro no início do dia escolar, por exemplo, ajuda a aliviar a dispersão dos alunos e levá-los a sentir que fazem parte de um todo. De forma lúdica e alegre, ensinam-se exercícios de ritmo, com poesias e canções – que até podem fazer parte de uma futura peça – executados por todos, com palmas, gestos, movimento, “afinando” a turma. Assim se trabalham o esquema corporal, espacialidade, dicção, atenção, integração social e muitos outros aspectos. Esse início de aula, que chamamos de parte rítmica, é repetida, dessa forma, por três ou quatro semanas, quando então alguma coisa é mudada, não tudo de uma vez, isto é, substitui-se uma poesia por outra nova, depois uma música e assim por diante, acompanhando os temas trabalhados em classe, a matéria. A longo prazo, o trabalho rítmico desenvolve qualidades e cria disposições e habilidades para o trabalho teatral.