Capítulo do livro Pedagogia Waldorf 100 anos +
Foto de Ernesto Beck Jr. – Escola Waldorf Novalis – Piracicaba SP
“Uma escola livre é aquela que permite a professores e educadores integrar na educação tudo aquilo que, a partir do seu conhecimento do ser humano, a partir do seu conhecimento do mundo e a partir do seu amor à criança, consideram essencial.” Rudolf Steiner
Por princípio, as escolas Waldorf são escolas comunitárias associativas, criadas por iniciativa de um grupo de pais e professores. Apenas alguns pequenos jardins de infância são mantidos por iniciativa particular, e algumas escolas maiores que começaram como escolas particulares, acabaram tornando-se associações, com o passar do tempo. Geralmente pais e futuros pais formam um grupo de estudo sobre a pedagogia e a Antroposofia, e neste processo coletivo acaba amadurecendo o impulso de se criar uma nova escola, mas não há uma receita única para isso. O formato jurídico é o de uma associação de direito civil sem fins lucrativos, formada por pais, professores e apoiadores, e que será a mantenedora da escola. Também já existem no Brasil algumas escolas Waldorf públicas, das quais trataremos em seguida.
De todo modo, o modelo de gestão de uma escola Waldorf é mais próximo daquele de uma escola pública, do que de uma escola privada de iniciativa empresarial. Como organismo social vivo e autônomo, a escola Waldorf associativa é uma comunidade educadora baseada numa estrutura trimembrada, composta pelo corpo docente, através da Conferência Interna, pela Associação de direito civil, e pelos pais, através do Conselho de Pais. Estas instâncias são inter-relacionadas e cada uma é responsável pelos assuntos a ela pertinentes, mas sempre em diálogo e consultas com as demais, de acordo com cada tema em questão. Veja como atua cada uma destas instâncias:
CORPO DOCENTE – Liberdade no Âmbito da Atividade Cultural e Pedagógica
Na escola o corpo docente atua com total autonomia pedagógica, e os professores têm liberdade para planejar como serão ministrados os conteúdos. Livre de programas pré-formatados, apostilas e manuais de ensino, a atuação pedagógica é uma responsabilidade individual do professor, e exige dele que esteja sempre estudando e se atualizando.
Esta liberdade significa a forma como serão ensinados os componentes curriculares (matérias) exigidos pelos programas oficiais de ensino e o momento, assim como a inclusão de componentes adicionais, principalmente no âmbito das artes e dos trabalhos manuais. O professor trabalha os conteúdos curriculares a partir de um planejamento muito bem elaborado e de seu conhecimento sobre o desenvolvimento humano, sua visão de mundo, seu conhecimento sobre a pedagogia e seu conhecimento sobre o aluno.
“A partir da relação conscientemente vivenciada entre professor e alunos, a matéria é configurada de maneira a corresponder à conjuntura momentânea, de tal modo que ofereça o melhor estímulo possível à atividade pessoal dos alunos em seu desenvolvimento. Para uma medida pedagógica, também precisamos sobretudo de fantasia, a dádiva de tomar a medida certa na hora certa, a partir da percepção do todo.” (1) Heinz Zimmermann
Numa escola Waldorf as decisões relativas à pedagogia são tomadas pelo conjunto de professores, e são de sua exclusiva responsabilidade. Os assuntos são discutidos semanalmente no Conselho Pedagógico, que representa o coração da escola, e do qual todos os professores participam. Nele são discutidos assuntos relativos a classes inteiras, ou a alunos em particular, e todo professor pode solicitar ajuda e orientação aos demais. Desta forma cria-se uma consciência coletiva, que ajuda a resolver eventuais dificuldades pedagógicas que possam aparecer. A participação no Conselho Pedagógico é um recurso fundamental para o aprimoramento constante do professor e para sua integração no organismo vivo que é uma escola Waldorf.
O órgão central do corpo docente é a Conferência Interna, onde todos os níveis de ensino são representados, educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. É um colegiado formado exclusivamente por professores, geralmente aqueles já com algum tempo de casa, e que estejam dispostos a arcar conscientemente, e de forma voluntária, com a responsabilidade pela identidade cultural da escola. Tem autonomia para estabelecer e executar as diretrizes de caráter educacional, decidir sobre a contratação e demissão de professores, e atribuição de classes. A Conferência Interna deve estar a par de tudo que acontece e administrar situações relacionados ao corpo docente que extrapolem o âmbito do Conselho Pedagógico e delibera sobre os assuntos que demandam sigilo. Também pode delegar poderes a um ou mais membros, para que fiquem responsáveis por tarefas específicas, podendo tomar decisões em relação a elas. (2) Para cumprir adequadamente com suas atribuições deve estar sempre em contato com a Associação e o Conselho de Pais. A representação das escolas perante os órgãos públicos, como a Secretaria de Educação e o Ministério da Educação, é feita por um Diretor Pedagógico que atua por delegação da Conferência Interna.
Os nomes usados para identificar instâncias como a Conselho Pedagógico e a Conferência Interna podem variar de uma escola para outra, mas não suas funções e responsabilidades.
Além do Conselho Pedagógico e da Conferência Interna, por decisão e delegação destas, são criadas comissões para tratar dos diversos assuntos administrativos que competem ao corpo docente ou envolvem sua participação, como comunicações com os pais, transporte escolar, organização de festas e eventos, reformas e construções etc. Há comissões que são mistas, entre professores e pais, e comissões pedagógicas, compostas apenas por professores. A participação nelas é sempre voluntária, e há um esforço para que as decisões sejam tomadas por consenso.
ASSOCIAÇÃO DE DIREITO CIVIL – Igualdade no Âmbito Jurídico- Administrativo
As escolas Waldorf são criadas a partir da constituição jurídica de uma associação sem fins lucrativos, de acordo com a legislação de cada país. Esta associação é formada por iniciativa de pais interessados na constituição da escola, por professores e apoiadores, tendo como atribuição e responsabilidade tomar as decisões relativas às questões administrativas, jurídicas e financeiras, e será a mantenedora da escola, proprietária de seus bens e empregadora de seus colaboradores. Além de poder receber apoios, patrocínios e doações de recursos, bens móveis e imóveis, a mantenedora também define, em conjunto com a Conferência Interna, a política de remuneração dos recursos humanos da escola. Sua diretoria é responsável pelo relacionamento com as autoridades de ensino e outras, e por zelar, junto com o corpo docente, para manter a escola sempre com o mesmo espírito antroposófico e a missão social com que foi criada. (3)
A participação dos pais na associação deve ser sempre aberta e baseada em critérios democráticos e transparentes estabelecidos nos seus estatutos.
As questões financeiras costumam ser compartilhadas e debatidas com as comissões financeiras e de bolsas e com a Conferência Interna.
CONSELHO DE PAIS – Fraternidade no Âmbito Econômico e das Relações Sociais
Este conselho representa os pais na estrutura que sustenta uma escola Waldorf, sendo constituído por representantes de cada classe, eleitos no início de cada ano, e pode elaborar seu próprio estatuto. Geralmente há um grupo coordenador eleito, podendo haver comissões responsáveis por assuntos e eventos específicos. É um fórum para debates e encaminhamento de ideias para as outras instâncias da escola e tem a responsabilidade de estimular a integração social da comunidade, atuando na organização de festas e encontros. Também dá suporte às questões relacionadas com a gestão escolar e promove grupos de estudos e outras ações em apoio ao desenvolvimento da comunidade e da pedagogia. Trata ainda de outros assuntos de interesse dos pais, como taxas e campanhas financeiras.
O Conselho de Pais também costuma ser a instância responsável em gerenciar os recursos arrecadados na escola através de campanhas ou em festas e eventos, e decide como o dinheiro deverá ser utilizado.
CORRESPONSABILIDADE ECONÔMICA
A corresponsabilidade econômica pela manutenção das escolas associativas é uma tendência que foi impulsionada em 2020 pelos efeitos da pandemia da Covid-19, pois muitas famílias tiveram perdas de recursos nesse período e precisaram diminuir suas despesas mensais. Algumas escolas Waldorf então substituíram o sistema convencional de mensalidades fixas e bolsas de estudo pré-definidas por um em que as famílias avaliam o próprio orçamento, e o da escola, para determinar o quanto podem pagar. A escola disponibiliza sua planilha de despesas de forma transparente, as famílias recebem orientações sobre planejamento financeiro e, com base no interesse comum pela educação de todas as crianças da comunidade, buscam estabelecer o valor com que cada família pode colaborar com esse objetivo.
Esse sistema inclusivo e de confiança mútua permite ampliar a diversidade e o número de alunos, diminui a inadimplência, estabelece uma arrecadação sustentável para a escola e, principalmente, fortalece a comunidade, pois cada família assume uma corresponsabilidade pela educação, não só de seus filhos, mas de todos da comunidade, em conjunto com o corpo docente e a associação mantenedora. São comunidades que sustentam a educação, onde a fraternidade econômica é realizada de forma prática e efetiva.
A VIDA ESCOLAR DAS FAMÍLIAS
Numa escola é fundamental o comprometimento dos pais com a manutenção de um ritmo de vida saudável para as crianças em casa, aspecto sobre o qual os professores das escolas Waldorf oferecem preciosas orientações. Periodicamente são realizadas reuniões pedagógicas entre os pais de cada classe com os professores de seus filhos. Também há oportunidades de aprendizado e autoeducação para os pais, sempre que houver disponibilidade e aceitação para isso. Eles são convidados a participar de reuniões, palestras, grupos de estudo, a se envolver nos mutirões, atuar junto ao Conselho de Pais e têm a oportunidade de conhecer outras famílias. Essa vivência comunitária é sempre uma oportunidade rica para estabelecer novos e duradouros laços de amizade.
Muitos pais participam de diversas comissões, como as de comunicação, finanças, obras, manutenção, festas etc. Podem também ajudar nos bazares, festas e exposições na escola, ou como acompanhantes das classes em viagens e excursões. Há escolas que foram construídas pelos pais, literalmente. A participação dos pais junto à escola é essencial para fortalecer o espírito da comunidade e é uma experiência muito rica para as crianças. Segundo Inocência Wanderley, “esse comprometimento dos pais com a escola reflete-se diretamente nas crianças, que passam a vivenciar um novo modelo de sociedade, fraterna, responsável e comprometida com o bem comum.” (4)
As escolas Waldorf pertencem às comunidades que as criam, procuram espelhar os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, e pressupõem uma organização social que atue com autonomia e responsabilidade, amparada comunitariamente por pais e professores. Não é um caminho fácil, pois exige um comprometimento maior do que a maioria dos pais e professores têm hoje com as escolas convencionais, mas, certamente, é muito mais enriquecedor.
Antes de terem seus filhos matriculados em uma escola Waldorf, os pais passam por entrevistas com professores, que tiram dúvidas sobre a pedagogia, e ficam sabendo de que forma podem ajudar mais os professores na formação de seus filhos. As escolas também mantêm dias de visita para interessados, quando têm a oportunidade de conhecer as instalações e assistir a palestras sobre a pedagogia e a forma de funcionamento da escola.
O APOIO À PARENTALIDADE – Uma Escola para a Família
“Educar os filhos é uma das tarefas mais instigantes, trabalhosas, exigentes e estressantes do planeta. É também uma das mais importantes e gratificantes, pois através dela formamos os seres humanos que serão protagonistas do futuro, influenciando-lhes o coração, a consciência, a experiência de sentido e ligação, o repertório de habilidades para a vida e os mais profundos sentimentos que essa geração tem sobre si mesma e seu possível lugar num mundo em transformação acelerada.” (5) Ana Paula Cury
Você vai perceber no decorrer deste livro que a Pedagogia Waldorf é baseada num profundo conhecimento antropológico, e que há um cuidado muito grande para que as crianças recebam sempre os estímulos, conteúdos e cuidados mais adequados para a sua idade. No entanto, para que a educação de cada criança tenha sucesso é fundamental o apoio e a presença dos pais ou responsáveis no dia a dia da criança. Sabemos que educar filhos é um grande desafio nos dias de hoje e muitas dúvidas preocupam e trazem insegurança a todos os jovens casais. Para sermos pais geralmente contamos apenas com nossa experiência pessoal como filhos, com tudo que foi bom e o que não foi. Precisamos então revisitar e ressignificar essa experiência, nosso processo escolar e até nosso caminho de vida e tentar criar nossa própria maneira de educar, ou corremos o risco de apenas repetirmos e perpetuarmos crenças e erros antigos nem sempre conscientes. Também há sempre a tentação de ‘terceirizar’ a educação para a televisão, os eletrônicos, terapeutas, babás e atividades extraescolares diversas. Quando isso acontece, crianças acabam crescendo órfãs de pais vivos, acumulando problemas de saúde e emocionais.
“Ser criança é muito difícil quando os adultos ao seu redor não sabem o que ela necessita e espera deles. É difícil quando os adultos têm uma imagem fixa e rígida de como a criança deve ser e comportar-se, e, ao mesmo tempo, comportam-se de maneira diferente.” Leonore Bertalot
Cientes dos diversos dilemas que acometem os jovens pais e mães, várias escolas criam grupos de apoio e estudos para aqueles que se interessem em conhecer mais sobre a pedagogia, com o apoio de um pedagogo ou terapeuta experiente. Assim, todos que quiserem podem estudar o assunto, compartilhar experiências, angústias e alegrias, e adquirirem condições para exercer sua parentalidade com mais segurança e sucesso. Os filhos têm o poder de tornar os pais pessoas melhores desde que estes se dediquem para isso, realizem uma autoeducação consciente e consigam entender as necessidades das crianças e tratá-las com amor e coerência. As comunidades que se constroem nas escolas Waldorf são ambientes que criam essa oportunidade para aqueles que precisarem ou tiverem interesse.
A PEDAGOGIA WALDORF NA ESCOLA PÚBLICA
No Brasil já existem algumas escolas na rede pública que adotam essa pedagogia. Algumas são escolas associativas conveniadas, que foram criadas por uma associação, que geralmente é proprietária da estrutura física da escola e que estabeleceram um convênio com a prefeitura local. Mediante este convênio, a prefeitura provê a manutenção da equipe de professores e demais funcionários, ou de uma parte dela, a alimentação dos alunos e os mesmos materiais que fornece às demais escolas da sua rede, e os alunos estudam gratuitamente. Nestes casos, geralmente, a associação complementa com recursos próprios algumas despesas. Inúmeras creches conveniadas também atuam com a Pedagogia Waldorf em diversos municípios. Uma pioneira nesse sentido é a Associação Comunitária Monte Azul, em São Paulo, que mantém creches e jardins de infância com essa pedagogia em três favelas na periferia de São Paulo: Monte Azul, Peinha e Horizonte Azul. Acesse aqui um estudo detalhado sobre as escolas Waldorf na rede pública.
Outras escolas são públicas de origem, que atuam inspiradas pela Pedagogia Waldorf por iniciativa do próprio poder público, ou por iniciativa de gestores e educadores Waldorf que transformam as escolas em que trabalham.
Nestas escolas algumas atividades que fazem parte do currículo Waldorf nem sempre são plenamente realizadas, por falta de professores especialistas de música, artes, trabalhos manuais, marcenaria e euritmia, por exemplo, que as prefeituras geralmente não oferecem, assim como pela falta de materiais como tinta para aquarelas, pincéis, flautas, giz de cera de abelha, lã de carneiro, brinquedos de madeira etc, o que exige adaptações e muita dedicação dos professores. Estas demandas às vezes são supridas pelas respectivas associações, que realizam eventos e campanhas para captação de recursos. Sua eventual falta é compensada pela criatividade e dedicação de seus professores, que podem aproveitar materiais naturais e culturais da região em que a escola está situada.
Importante destacar que toda escola pública tem o direito de estabelecer seu próprio Projeto Político Pedagógico. Este representa a identidade da escola como organismo social, e faz parte de uma gestão escolar democrática. Deve ser elaborado por e para todos: gestores, professores, funcionários, alunos e familiares. A gestão democrática das escolas é um direito estabelecido pela LDB (Lei nº 9.394/96) da qual destacamos os artigos 14 e 15.
LDB – Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:
I – participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;
II – participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes. LDB – Art. 15. Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro público.
Não podemos deixar de citar a BNCC – Base Nacional Comum Curricular, atualizada em 2018, que estabelece objetivos e princípios para a educação básica no Brasil, e que embora sejam um grande desafio para a maioria das escolas, já são realizados nas escolas Waldorf. Ou seja, os argumentos para a Pedagogia Waldorf ser realizada em escolas públicas estão na própria BNCC. Basta o empreendedorismo social daqueles que conhecem e acreditam nessa pedagogia, o interesse de professores e a vontade política dos gestores públicos.
As Escolas Sociais
Temos ainda algumas iniciativas associativas que atendem grande número de alunos bolsistas em escolas Waldorf, mas que são mantidas com recursos privados. Uma relação atualizada das escolas Waldorf públicas e das escolas sociais é encontrada no site da FEWB. (6)
Bibliografia
- ZIMMERMANN, Heinz. – As Forças que Impulsionam a Educação, 1997, p. 12.
- LANZ, Rudolf. Pedagogia Waldorf, 1990, p. 166
- Idem op. cit., p. 168.
- Inocência Wanderley é professora e fundadora da Escola Waldorf Recife. Depoimento em vídeo comemorativo pelo aniversário de 20 anos da escola.
- Ana Paula Cury é médica de formação antroposófica, co-fundadora da Escola de Pais na Escola Waldorf Rudolf Steiner, coordenadora do Projeto Semear na favela de Paraisópolis e membro da diretoria da Sociedade Antroposófica no Brasil.
- www.fewb.org.br/pw_sociais.html
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