10 de outubro de 2017

2 – Que sociedade queremos?

 

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O ideal da trimembração social

Capítulo do livro Pedagogia Waldorf 100 anos+

Foto: Escola Comunitária Jardim do Cajueiro – Maraú BA – acervo da escola.

 

“As mudanças não acontecem por si só. São o resultado do trabalho de personalidades comprometidas com sua época.” Bodo von Plato

A Visão antroposófica do organismo social, concebida por Steiner, é um dos esteios da Pedagogia Waldorf, e você vai ver adiante que ela se reflete na própria estrutura das escolas Waldorf. Ela busca responder a esta pergunta:

Que sociedade queremos?

Na visão de Steiner, o ideal seria que a nossa sociedade fosse constituída por três esferas vitais independentes, mas interligadas: a vida cultural e espiritual, a vida jurídico-política e a vida econômica. Estas esferas, formando o que ele chamou de “trimembração” do organismo social, deveriam realizar-se lado a lado, mas de forma autônoma, sem que uma exercesse influência sobre a outra de modo que todos tivéssemos direito a:

  1. Liberdade na vida cultural e espiritual – o liberalismo como base ideal para as instituições responsáveis pelos interesses individuais.
  2. Igualdade democrática na vida jurídico-política – a democracia como base ideal para as instituições do estado responsáveis pelos interesses coletivos.
  3. Fraternidade social na vida econômica – a solidariedade como ponto de partida para uma vida econômica organizada de forma associativa.

Trata-se dos mesmos princípios – “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” – da revolução francesa, mas aqui aplicados cada um a uma esfera específica da atuação humana. Essa inovação conceitual de Steiner mostra a sua genialidade, pois a história já comprovou, e continua a nos mostrar todos os dias, que a mistura de interesses e influências entre estas três esferas gera efeitos sociais altamente nocivos, como na representação política, por exemplo, quando políticos legislam mais em benefício do poder econômico, das classes dominantes e de seus interesses pessoais, do que em benefício da sociedade.

Vamos analisar um pouco cada um destes princípios:


Liberdade na vida cultural e espiritual – A educação para a liberdade

 

Devemos formar as mentes sem conformá-las,
enriquecê-las sem doutriná-las,
armá-las sem recrutá-las,
comunicar-lhes uma força,
seduzi-las verdadeiramente
para levá-las à sua própria verdade,
dar-lhes o melhor de nós mesmos,
sem esperar que cresçam à nossa semelhança.
                                                  Jacques Merlan

 

Segundo este conceito, todas as atividades através das quais o ser humano se realiza como indivíduo, não deveriam sofrer nenhuma interferência da área jurídico- política nem da econômica. Todas as escolas, museus, igrejas, clubes, universidades etc, deveriam ser administradas pelas respectivas comunidades. Seus currículos, projetos e programas não deveriam ser impostos por interesses políticos nem econômicos. Só pessoas livres podem promover e desenvolver a liberdade, a justiça, a paz no mundo e a dignidade humana.

 

“Nas engrenagens da existência atual são necessárias instituições que assumam, como sua função publicamente reconhecida, a representação e defesa do ‘Puramente Humano’ em todas as situações, sem considerar qualquer interesse econômico ou político. […] A tarefa de ajudar a desenvolver, plenamente, tendências interiores latentes no ser humano em formação só pode ser assumida por educadores que o conheçam a fundo e que estejam à altura das exigências pedagógicas que se apresentam diariamente na vida escolar. A amplitude do êxito deste trabalho – realizado nos lares e nas salas de aula – define o futuro da humanidade”. (1) Frans Carlgren e Arne Klingborg

 

Do ponto de vista da Antroposofia, a educação deve ser focada no desenvolvimento do potencial que existe em cada um desde a mais tenra idade, com o objetivo de formar seres humanos livres e autônomos, para que tenhamos sempre gerações de jovens com novas ideias que possam melhorar a vida em sociedade. Não podemos nos contentar em educar indivíduos para apenas dar continuidade ao status quo, ou para aprender a passar em um vestibular.

A importância de total incentivo e liberdade para o desenvolvimento individual se baseia ainda em dois argumentos fundamentais:

1) Nenhum ser humano deve ser convertido em meio para fins de outro, pois cada Homem é um fim em si mesmo, tem o direito à sua própria individualidade e a criar o seu próprio caminho.

2) Tudo o que é criado no mundo é fruto de realizações individuais. Por isso, nada mais importante do que termos uma educação que estimule o desabrochar das capacidades e a independência de cada indivíduo.

Se analisarmos a história da ciência, percebemos que as grandes descobertas de cientistas como Galileu, Kepler, Newton, Einstein e tantos outros, ocorreram devido à sua iniciativa e independência intelectual. Segundo Marcelo Gleiser, “essa independência produz uma flexibilidade que permite, com a ajuda dessa elusiva característica chamada gênio, que esses indivíduos encontrem novas e inesperadas conexões onde outros encontraram apenas becos sem saída (2).” O mesmo se aplica às artes ou qualquer outra área do conhecimento humano.

Já o princípio da Igualdade, aplicado à educação, significa que toda pessoa deve ter o direito a uma educação básica completa, independente de classe social, religião, gênero e raça, e ninguém deve ser excluído deste direito devido a ser, aparentemente, menos capaz de aprender. Essa igualdade, no entanto, diz respeito à meta, e não ao processo. Este deve ser conduzido pelo professor com equidade, pois para que todos os alunos alcancem um grau equivalente de desenvolvimento em determinado período, sempre alguns vão precisar de mais ajuda do que outros.

Assim, toda pessoa, independente de sua origem, condição social ou econômica, deveria receber uma educação do mesmo nível, que facultasse o seu pleno desenvolvimento humano. Depois desse ensino geral, deve haver a formação profissional, de acordo com os dons, a vontade e capacidades de cada um.

O sistema educativo idealizado por Steiner tem o objetivo de formar o ser humano com capacidade de se autogerir. Para isso deve:

  1. Ser partilhado por professores que, com conhecimento do mundo e do ser humano, experimentem em si próprios a liberdade, a responsabilidade, a iniciativa e a emancipação;
  2. Realizar um ensino cujos planos educativos tenham por base o direito essencial ao desenvolvimento individual;
  3. Basear suas estruturas na liberdade, na responsabilidade e no direito de decisão, assegurando a autogestão de cada comunidade educadora;
  4. Realizar a formação de seus professores através de instituições que tenham autonomia pedagógica, públicas ou privadas;
  5. Ter planos de ensino desenvolvidos e adaptados para cada escola, contemplando seu ambiente cultural particular;
  6. Limitar a intervenção estatal na escola à garantia da consecução dos direitos do indivíduo contemplados nas leis de cada país, e na Declaração Universal dos Direitos Humanos;
  7. Organizar as tarefas pedagógicas com base na responsabilidade de todos os agentes educacionais envolvidos;
  8. Estabelecer as avaliações necessárias mediante a abertura, o diálogo e a autoavaliação.(3)


Igualdade democrática na vida jurídico-política – educação para a democracia

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. Declaração Universal dos Direitos Humanos – Artigo 1”

 

Da mesma forma que preconiza a total liberdade das instituições responsáveis pelo desenvolvimento de nossas necessidades culturais e espirituais individuais, a trimembração social proposta por Steiner também considera que o indivíduo precisa de uma rede de órgãos públicos responsáveis em regulamentar o convívio humano com base na igualdade de direitos: uma instância pública democraticamente eleita, independente do sistema econômico e sem ingerência sobre a vida cultural e espiritual, que seja capaz de legislar com imparcialidade em benefício do bem comum.

A democracia era apenas uma aspiração revolucionária até o século XIX, e passou a ser um regime dominante no século XXI, embora existam inúmeros níveis de democracia. Conceitualmente, é um regime político em que todos os cidadãos elegíveis podem participar igualmente das decisões políticas — diretamente ou através de representantes eleitos — inclusive na proposta, no desenvolvimento e na criação de leis, exercendo o seu poder através do voto. No seu princípio, em Atenas, a cidadania democrática era um direito apenas para os homens filhos de pai e mãe atenienses, livres e maiores de 21 anos. As mulheres e os demais grupos sociais eram excluídos desta participação. Essa democracia “relativa”, acessível a apenas uma elite, ocorreu em todos os governos democráticos até o século XIX, quando, aos poucos, movimentos pelo sufrágio universal começaram a se fortalecer e a lograr êxito. Várias ditaduras e regimes totalitários ainda existem, mas na maioria dos países a democracia vem sendo instaurada, e passando a ser considerada o único regime político legítimo.

No entanto, na maioria dos países considerados democráticos, trata-se de uma democracia ainda muito frágil e de baixa intensidade, que inspira cuidados permanentes. Hoje existem muitas forças que atuam contra os princípios democráticos dentro das próprias democracias (4). Segundo o estudo DeMaX (Democracy Matrix) (5), que analisa cerca de 200 indicadores de 175 países, há um processo de ‘desdemocratização’ ocorrendo em vários países, inclusive no Brasil. A pontuação brasileira recuou de 0,796 em 2015 para 0,602 em 2019, e ficamos com a 80a colocação no ranking.

O fato é que a democracia é feita por pessoas, e, para termos democracias melhores, é preciso pessoas melhores. O principal antídoto contra a democracia de baixa intensidade é uma educação que seja emancipadora, que forme jovens com pensamento crítico, e comprometidos com os valores humanos e com os direitos da natureza, que sejam capazes de discernir entre o que é bom e o que é ruim para a humanidade e para o planeta. Depende principalmente das famílias e das escolas formarem uma geração de jovens que não sejam escravos dos valores materiais e consigam atuar como cidadãos conscientes em prol da construção de um mundo melhor para todos, mas cada um na sociedade tem sua parcela desta responsabilidade.


Fraternidade social na vida econômica – educação para a solidariedade

“Conhecimento verdadeiro de si próprio só é dado ao ser humano quando ele desenvolve interesse afetuoso para com os outros; conhecimento verdadeiro do mundo, o ser humano só alcança quando ele procura compreender seu próprio ser.” Rudolf Steiner

 

A fraternidade social na vida econômica, vista a partir da competitividade predatória que rege a atividade econômica atualmente, pode parecer, em primeira análise, a mais desafiadora das três esferas vitais consideradas por Steiner fundamentais para uma nova sociedade. Sabemos que hoje o poder econômico exerce grande influência sobre as políticas que deveriam ser públicas. Esse conflito entre interesses públicos e privados gera legislações e decisões que não têm como resultado o bem comum.

Em 2007 o economista brasileiro Ladislau Dowbor propôs o conceito de Democracia Econômica, segundo o qual as decisões econômicas também deveriam ser tomadas a partir de um processo democrático/político, que levasse em conta todos os seus impactos sociais e ambientais, de forma que os interesses das empresas não fossem prejudiciais aos interesses públicos. O autor compara os movimentos sociais atuais, que lutam contra a destruição do meio ambiente, por melhor saúde, educação etc, aos movimentos sociais que lutaram pela abolição da escravatura, pelos direitos dos assalariados e pela inclusão política das mulheres. O autor afirma que “a democratização da economia pode bem se tornar um eixo desta construção de uma vida mais humana”. Sustenta também que “limitar a democracia à sua expressão política tornou-se cada dia menos realista, a ponto de nos tornar cada vez mais céticos sobre os mecanismos políticos. Temos de evoluir para um conceito democrático da própria economia, para que a política volte a ter sentido”. (6)

Outra grave influência do ambiente econômico atual que impacta na educação, é o consumismo. Vivemos sob forte influência de imagens e mensagens que buscam impregnar em todos a ideia de que a felicidade e o sucesso pessoal estão diretamente ligados à pessoa TER coisas, casas, carros, celulares, eletroeletrônicos etc, sempre novos e modernos. Este fomento ao consumo exacerbado influencia diretamente as crianças e estimula uma competitividade extremamente negativa. Como ensinar a fraternidade se todo o nosso modelo de sociedade é baseado na competitividade e, geralmente, a qualquer custo?

 

“Por que transmitir a nossos filhos ideias como altruísmo, mérito ou civismo, se eles têm por modelo, permanentemente, um sucesso financeiro baseado no individualismo, no dinheiro fácil e na burla das regras e das leis como suprema arte da administração? […] Na verdade o que se aborda aqui é a questão central entre o ter e o ser e, portanto, a própria natureza de nossos projetos de vida, tanto no plano pessoal quanto no coletivo, no plano local e no global, no plano de nossas vidas individuais e no das estratégias de transformação mundial “. (7) Patrick Viveret

 

Viveret é um dos líderes de um movimento mundial que luta pelo desenvolvimento e estabelecimento de novos indicadores de riqueza, que avaliem a economia real, em oposição ao conhecido PIB (Produto Interno Bruto), que se baseia apenas nos recursos financeiros gerados pelas atividades. O PIB credita o resultado financeiro de uma atividade mas não debita, por exemplo, os prejuízos de seu impacto ambiental ou social, ou seja, não considera a sustentabilidade da atividade. Por outro lado, o trabalho voluntário de milhares de organizações e pessoas que ajudam muita gente e o meio ambiente, não tem nenhum valor para o PIB. Este é um índice que não diz nada sobre a nossa qualidade de vida nem a do planeta.

No entanto, algumas iniciativas interessantes vêm sendo realizadas no sentido oposto, como por exemplo o FIB – Felicidade Interna Bruta, conjunto de indicadores de felicidade criado no Butão em 1972, que vem sendo estudado por organizações internacionais, países e até por empresas. A New Economics Foundation (NEF), principal centro de estudos do Reino Unido na promoção da justiça social, econômica e ambiental, criou o Happy Planet Index (Índice Planeta Feliz), para medir o que importa: o bem-estar sustentável para todos. Inclui avaliar bem-estar, expectativa de vida, desigualdade e pegada ecológica. O índice mostra como algumas nações estão se saindo bem em proporcionar vidas longas para as pessoas, felizes e sustentáveis, e mostra que é possível viver bem sem destruir o planeta. (8) E a ONU – Organização das Nações Unidas publica anualmente o Relatório de Felicidade das Nações, que leva em conta variáveis como as ajudas sociais, a expectativa de vida, a liberdade, a generosidade, a ausência de corrupção, a qualidade de vida dos imigrantes e o PIB per capita.

A fraternidade social na vida econômica, atualmente, já pode ser vista na atuação das cooperativas agrícolas e nas cooperativas de crédito. O Brasil já tem mais de 100 bancos comunitários, que, com suas moedas sociais, dinamizam a economia local e são uma opção aos bancos privados. Está em curso também a criação do Banco Ético da América Latina, por iniciativa da Fundación Dinero y Conciencia, nos moldes do holandês Triodos Bank. Seu objetivo é criar um banco cuja meta seja contribuir para a construção de um mundo melhor, com atuação baseada em rígidos critérios éticos e dedicada a fomentar uma transformação positiva da economia, que contribua para melhorar a qualidade de vida das pessoas e a preservação do meio ambiente. (9)

Uma economia mais compartilhada e colaborativa começou a se desenvolver. Hoje, já temos diversas plataformas para financiamento coletivo. Através delas já foram financiados coletivamente milhares de projetos sem a intermediação de bancos, desde pequenas produções culturais, edições de livros, até projetos de pesquisas avançadas ou de desenvolvimento de tecnologias. Há também os escritórios compartilhados, onde vários pequenos negócios dividem um mesmo espaço físico e a mesma estrutura básica para funcionarem de forma mais econômica. Temos ainda os sistemas de compartilhamento de bicicletas, e já existem em alguns países sistemas de compartilhamento de automóveis. A necessidade de possuir vem sendo substituída pela cultura de compartilhar. Outro exemplo é o das Comunidades que Sustentam a Agricultura (10), grupos de consumidores que contribuem com uma mensalidade para um produtor rural, garantindo sua sustentabilidade, e em contrapartida recebem semanalmente uma cesta de produtos orgânicos. Ou seja, já está começando a acontecer uma mudança cultural na sociedade em direção à prática da fraternidade social na vida econômica, tendo a solidariedade como ponto de partida para uma vida econômica organizada de forma associativa e cooperativa.

Também está tomando vulto o debate internacional sobre a proposta de se estabelecer uma renda básica universal, que possa garantir a sobrevivência digna de todas as pessoas, pois grande parte dos empregos está sendo eliminada pelo avanço da tecnologia, da robotização, da mecanização e da inteligência virtual. A pandemia que teve início em 2020 deve acelerar este processo, pois nem todos os empregos perdidos serão recuperados.

Talvez você questione o que tudo isso tem a ver com uma pedagogia, mas, analisando com atenção, fica claro que é cada vez mais necessário e urgente a nossa sociedade convergir na direção da concepção trimembrada, proposta por Steiner. Para isso, a escola deve atuar pelo desenvolvimento de uma inteligência coletiva que nos transforme em uma sociedade com mais liberdade, igualdade e fraternidade. Precisamos formar jovens com liberdade de pensamento, com determinação, criatividade, tolerância, entusiasmo e confiança para escolher seu próprio caminho e construir uma nova era para a humanidade, baseada na consciência social e ambiental. A Pedagogia Waldorf pode dar uma importante contribuição neste sentido, pois foi criada e continua a se desenvolver com esse propósito.

 

Bibliografia

  1. CARLGREN, Frans e KLINGBORG, Arne. Educação para a Liberdade – a Pedagogia de Rudolf Steiner, 2005, p. 11
  2. GLEISER, Marcelo, A Dança do Universo, 1997, p. 254
  3. MCALICE, Jon e GÖBEL, Nana, et al, Otto Ulrich. Pedagogia Waldorf – UNESCO, 1994, p. 75.
  4. LEVITSKY, Steven e ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2018, p. 15
  5. https://www. democracymatrix.com – – A Matrix Democrática é um projeto financiado pela Fundação Alemã de Pesquisa (DFG), e realizado pela Universidade de Würzburg.
  6. DOWBOR, Ladislau. Democracia Econômica, 2007, p. 185.
  7. VIVERET, Patrick. Reconsiderar a Riqueza, 2003, p. 13 e 43.
  8. https://happyplanetindex.org/
  9. Veja em https://bancaeticalat.com/
  10. https://www.csabrasil.org/csa/

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