24 de agosto de 2017

A rainha da neve

 

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Conto de Hans Christian Andersen

Tradução de Ruth Salles

Primeira história, que fala do espelho e dos cacos

Certo dia, o diabo estava de muito bom humor, pois tinha feito um espelho formidável. Tudo de bom e de belo que se refletia nele ia-se encolhendo até não sobrar quase nada; e o que não tinha valor ficava pior e maior.

As mais lindas paisagens da Natureza pareciam espinafre cozido, e as melhores pessoas ficavam mesmo nojentas. Se alguém tivesse uma só pintinha de sarda, podia ter certeza de que, no espelho, ela parecia cobrir todo o nariz e mais a boca. Se alguém se olhasse no espelho com um bom pensamento, via logo refletido nele um sorriso mau. O diabo estava contentíssimo! Quem frequentava sua escola de magia – pois ele tinha uma escola dessas – espalhou a notícia do grande milagre. Só agora é que se podia conhecer a verdadeira aparência do mundo e dos homens. O diabo correu por toda parte com o espelho, e por fim não sobrou nenhum país ou pessoa que não tivesse sido deformado por ele.

Os maus espíritos quiseram então voar até o céu, para se divertir às custas dos anjos e do bom Deus. Quanto mais alto subiam, mais risos de caçoada o espelho dava. Os maus espíritos quase não conseguiam segurá-lo. E foram voando cada vez mais alto, cada vez mais perto de Deus e dos anjos. Mas o espelho, de tanto rir, começou a tremer horrivelmente. Escorregou então das mãos que o seguravam e despencou na terra, onde se partiu em centenas e mais centenas de milhões de pedaços. Foi justamente lá que ele causou desgraças maiores ainda. Pedacinhos do tamanho de grãos de areia voaram e se espalharam pelo mundo inteiro. Se um deles entrava no olho de alguém, ficava lá, e essa pessoa via tudo deformado, ou só enxergava defeito em tudo; pois cada caquinho possuía o mesmo poder do espelho inteiro.

Em algumas pessoas, encravaram-se cacos no coração, e isso é que foi o pior; o coração ficou parecendo uma pedra de gelo. Uma porção de cacos se enfiou em óculos, e era muito difícil, para quem usava esses óculos, conseguir ver as coisas como mereciam ser vistas.

Os malvados quase arrebentavam a barriga de tanto rir, e achavam a coisa ótima. Enquanto isso, os caquinhos de vidro continuaram voando pelo mundo afora. E então… vejam só o que aconteceu!

 

Segunda história, que fala de um menino e de uma menina

Numa grande cidade, viviam duas crianças pobres. Não eram irmãs, mas gostavam tanto uma da outra, que era como se fossem. Seus pais moravam em dois pequenos sótãos, um defronte do outro.

Diante das janelas, tinham sido postas umas caixas de madeira, onde cresciam as mais lindas rosas. Como as caixas eram muito altas, as crianças tinham licença de sair pela janela e de se sentar ao lado das roseiras. E ali elas brincavam felizes da vida.

No inverno, acabava a brincadeira. As janelas ficavam muitas vezes cobertas de gelo. Mas as crianças, então, esquentavam moedas de cobre no fogão e as encostavam em suas vidraças. Com isso, o gelo se derretia naqueles lugares, e por uma das rodelinhas espiava um olho de Kay, pela outra um olho de Gerda. No verão, era só as crianças darem um pulo, que estavam juntas, mas no inverno tinham de subir e descer uma porção de escadas, e lá fora a neve caía.

– A neve caindo em flocos é como um enxame de abelhas brancas – disse a avó.

– Será que essas abelhas brancas também têm uma rainha? – perguntou o pequeno Kay.

– Têm, sim! – respondeu a avó – A rainha voa onde o enxame de neve é mais denso! Em algumas noites de inverno, ela flutua pelas ruas da cidade e espia pelas vidraças das janelas, tomando formas estranhas que parecem flores.

– A rainha da neve pode entrar aqui? – perguntou Gerda.

– Ela que venha – disse o menino – é só colocá-la na chapa do fogão, que ela derrete.

De noite, quando o pequeno Kay voltou para casa, subiu numa cadeira ao lado da vidraça e olhou pela rodelinha. Lá fora, caíam alguns flocos de neve; um deles, o maior de todos, pousou na beirada de uma das caixas de flores e foi crescendo, crescendo, até que virou uma linda mulher. Seu vestido era feito de milhões de flocos de neve com o formato de estrelas. Olhando pela vidraça, ela cumprimentou com a cabeça e acenou com a mão. Kay, espantado, pulou da cadeira e teve a impressão de ver lá fora um grande pássaro voando diante da janela. No dia seguinte, o gelo tinha derretido. As plantas começaram a brotar de novo, e o verão chegou. As rosas desabrocharam mais belas do que nunca, e a pequena Gerda se pôs a cantar:

“As rosas se vestem de cor e de luz!
E nós vamos ver o Menino Jesus!”

Os dois ficaram ali contentes, de mãos dadas. De repente, Kay exclamou:

– Ui! Alguma coisa espetou meu coração. E agora alguma coisa entrou no meu olho!

Assustada, Gerda quis ajudá-lo, mas ele disse:

– Não sinto mais nada. Acho que saiu!

Só que não saiu. Era um dos grãozinhos de vidro do espelho mágico. Num instante, o coração de Kay ficou parecendo uma pedra de gelo.

– Não chore! – exclamou ele, zangado – Assim você fica feia. Não estou sentindo nada! E aquela rosa ali foi roída por algum verme, e a outra está torta. Francamente, essas rosas são horríveis!
E ele deu um pontapé nas caixas e arrancou as rosas.

Passaram-se os dias, passaram-se as semanas, e Kay foi ficando cada vez mais mudado. Não queria mais brincar com a pequena Gerda e até caçoava dela, que era tão sua amiga. Num dia de inverno, ele apareceu com seu trenó e exclamou:

– Estou indo para a praça, onde os outros garotos brincam!

E foi, mesmo.

Estava muito divertido lá na praça. Os meninos mais valentes amarravam seu trenó na carroça de algum camponês e se deixavam puxar por um bom trecho. De repente, apareceu um trenó grande, e dentro ia alguém envolto numa pele de lã branca. Esse trenó deu duas vezes a volta na praça. Kay conseguiu logo amarrar nele seu pequeno trenó e lá se foi junto. No mesmo instante, o trenó grande enveredou por uma rua próxima e depois saiu pelos portões da cidade. A neve começou a cair com força. Kay tentou soltar seu trenó, mas não conseguiu nada. Gritou então bem alto, mas o trenó grande voava na maior velocidade. Finalmente parou, e a pessoa que o dirigia ficou de pé. Era uma mulher alta e elegante, de uma brancura reluzente: a Rainha da Neve.

– Viajamos bastante! – ela disse, sentando o menino a seu lado e envolvendo-o em seu casacão de pele.

– Você ainda está com muito frio? – perguntou ela e, em seguida, deu-lhe um beijo na testa.

Oh, aquele beijo era mais frio que o gelo e chegou até seu coração, que aliás já estava meio transformado numa pedra de gelo. A Rainha da Neve deu-lhe outro beijo, e Kay então se esqueceu de Gerda, da avó e de todos de sua casa. O trenó grande saiu voando sobre florestas e lagos, sobre terras e mares; embaixo, o vento gelado zunia, e em cima a lua brilhava, grande e clara, e foi nela que Kay assistiu toda a passagem da longa noite de inverno. De dia, ele dormiu aos pés da Rainha da Neve.

 

Terceira história. O jardim da mulher entendida em magia.

Kay não voltou para casa, e Gerda passou o inverno inteiro chorando. Todo mundo dizia que ele tinha morrido, com certeza afogado no rio.

Quando a primavera chegou, Gerda disse:

– Kay morreu.

– Não acredito nisso! – respondeu a luz do sol.

– Ele foi embora e morreu! – disse Gerda para as andorinhas.

– Não acreditamos nisso! – responderam elas.

E Gerda acabou não acreditando também.

Uma bela manhã, ela disse:

– Vou calçar meus sapatos vermelhos novos e vou perguntar ao rio onde está Kay.

Em seguida, beijou a avó, foi sozinha até a beira d’água e perguntou:

– É verdade que você levou embora o amigo com quem eu brincava? Olhe, eu lhe dou de presente meus sapatinhos vermelhos, e você me devolve Kay!

E assim Gerda tirou os sapatos e os jogou no rio, mas as ondas trouxeram de novo os sapatos para a margem. Gerda achou que tinha jogado perto demais e subiu então num barco que estava encalhado entre os juncos. Foi até a ponta e, bem da beiradinha, jogou de novo os sapatos dentro d’água. Mas, com o solavanco, o barco se soltou da margem e deslizou na correnteza. A pequena Gerda se assustou muito e começou a gritar e a chorar, mas ninguém ouviu, a não ser os pardais. E lá se foi o barco pelo rio afora…

– Quem sabe o rio me leva até Kay – disse a menina um pouco depois, e isso a deixou mais contente.
Chegou então a um grande pomar de cerejeiras e viu ali uma casinha com estranhas janelas vermelhas e azuis. O telhado era de palha, e de pé, na frente da casa, estavam dois soldados de madeira que faziam continência para todas as pessoas que passavam. Gerda chamou por eles e acenou com a mão, e por fim saiu da casa uma velha apoiada numa bengala.

– Pobre criança! – exclamou ela – Como foi que você veio parar nesse rio de correnteza tão forte?
E a velha chegou até a beira d’água e puxou o barco para a margem com sua bengala.
Gerda ficou bem contente de pisar de novo em terra firme, embora sentisse um pouco de medo daquela desconhecida. A velha então disse:

– Venha me contar quem é você e como chegou até minha casa!

Gerda contou tudo. A velha, porém, balançou a cabeça e afirmou que não tinha visto o pequeno Kay. E acrescentou:

– Quem sabe ele ainda passa por aqui! Não fique triste. Prove estas cerejas e aproveite para apreciar minhas flores.

Enquanto Gerda comia, a velha penteou seu cabelo com um pente de ouro, e com isso Gerda se esqueceu de seu amigo Kay. A velha entendia de magia, mas não era uma pessoa má. Só queria tirar a memória de Gerda para que ela ficasse em sua companhia. Por isso, foi também até o jardim e tocou as rosas com a bengala. Imediatamente, todas elas mergulharam na terra escura. A velha tinha medo de que Gerda, vendo aquelas rosas, pensasse nas que brotavam em sua própria casa e se lembrasse do pequeno Kay. Ela podia então querer fugir. Assim, Gerda passou dias e dias no maravilhoso jardim. Certa vez, porém, Gerda reparou que a touca da velha tinha uma rosa pintada. Pulando por entre os canteiros, ela procurou, procurou, mas não achou nenhuma rosa e começou a chorar. Suas lágrimas caíram justamente no local onde uma roseira tinha mergulhado na terra. Essa roseira brotou de novo, tão linda como era antes. Gerda beijou as rosas, pensando nas rosas de sua casa, e então se lembrou de novo do pequeno Kay.

– Onde está Kay? Será que ele morreu? – perguntou ela.

– Não – responderam as rosas – Nós estivemos dentro da terra; todos os mortos passam por lá, mas não vimos Kay.

Gerda, então, abriu o portão do jardim e saiu correndo descalça. Lá fora, já era outono. Ela nem tinha notado isso quando estava dentro do jardim mágico.

 

Quarta História. O Príncipe e a Princesa.

O mundo estava cinzento e frio, e Gerda precisou parar para descansar, pois tinha os pés feridos. Nesse momento, um corvo pousou na neve, bem na sua frente, querendo saber o que ela fazia ali sozinha. Gerda então contou sua triste história e perguntou se ele tinha visto Kay.

O corvo balançou a cabeça, pensativo, e disse:

– Pode ser que eu tenha visto! Pode ser…

– Oh, você acha, mesmo? – exclamou a menina, e quase sufocou o corvo com seus beijos.

– Calma! Calma! – protestou o corvo – Eu acho que o conheço, pelo menos eu acho. Mas, com certeza, ele já se esqueceu de você, por causa da princesa.

– Ele mora na casa de uma princesa? – perguntou Gerda.

– Mora, sim. Neste reino onde estamos, vive uma princesa de grande inteligência. Ela leu todos os livros do mundo e tornou a esquecer o que leu, de tão inteligente que é. Finalmente, resolveu casar-se. Mas o noivo não devia apenas ter uma aparência elegante e nobre; acima de tudo, tinha de saber conversar como pessoa inteligente. Quando todo o país ficou sabendo da notícia, correram ao palácio pretendentes aos montes. Enquanto esperavam lá fora, na rua, todos sabiam falar bem, mas assim que se viam diante do trono da princesa ficavam atrapalhados e não conseguiam dizer uma palavra.

– E o que tem isso a ver com Kay? – perguntou a menina, impaciente – Ele também foi lá?

– Espere! Espere! No terceiro dia, chegou um rapaz, sem cavalo nem carruagem, andando todo alegre em direção ao castelo. Seus olhos brilhavam, tinha lindos cabelos compridos, mas estava pobremente vestido.

– Esse só podia ser Kay! – exclamou Gerda, toda feliz.

– Ele trazia nas costas uma pequena mochila – acrescentou o corvo.

– Não, com certeza era seu trenó! – explicou Gerda.

– É bem possível – concordou o corvo – eu não olhei com muita atenção. Mas o resultado é que o rapaz, quando falou, mostrou tanta animação e inteligência, que a princesa o escolheu para marido.

– Era Kay, não tenho a menor dúvida – disse Gerda – ele sempre foi inteligente. Oh, ajude-me a entrar no castelo!

Com a maior boa vontade, o corvo fez o que a menina pediu. Ele foi buscar lá no castelo um corvo-fêmea que era sua noiva, e que também era mansa, para ajudá-los. Por uma escada secreta que ficava nos fundos, os dois levaram Gerda até os aposentos da princesa. No meio estavam penduradas, numas hastes grossas, duas camas que pareciam lírios. Uma era branca, outra, vermelha. Na branca, estava deitada a princesa; na vermelha, a pequena Gerda viu uma nuca morena.

– Kay! – ela chamou em voz bem alta.

Mas, não era Kay; era um jovem príncipe. Gerda então chorou de desgosto e contou sua triste história ao príncipe e à princesa.

– Pobre criança! – disseram os dois, e o príncipe saiu do quarto e deixou que a menina dormisse em sua cama.

No dia seguinte, deram a Gerda lindas roupas novas, uma carruagem dourada, com os cavalos, o cocheiro e mais um criado. Assim, ela se pôs a caminho, outra vez à procura de seu amigo Kay.

 

Quinta História. A Filha dos Salteadores.

No caminho, apareceu um bosque escuro por onde a carruagem entrou. Ela brilhava como ouro, e isso chamou a atenção dos salteadores. Estes pularam para a estrada, seguraram os cavalos, mataram o cocheiro e o criado, puxaram para fora a pequena Gerda e a levaram.

– Está gordinha! Deve ter sido alimentada com nozes – disse a velha salteadora – e me parece bem apetitosa!

Mas a filha dos salteadores logo protestou:

– Ela serve para brincar comigo! Vai ter que me dar sua linda roupa e seu regalo e vai dormir comigo na minha cama!

E gritou e teimou tanto que sua vontade foi feita. E assim a filha dos salteadores abraçou a pequena Gerda e disse:

– Ninguém tem ordem de matá-la, enquanto eu não ficar com raiva de você. Será que você é alguma princesa?

– Não – disse Gerda, e contou tudo o que tinha acontecido com ela e o quanto ela gostava de Kay.

A filha dos salteadores balançou a cabeça e afirmou, muito séria:

– Ah, eles não vão poder matá-la nem se você me deixar com raiva.

Depois, ela levou Gerda para um cantinho onde havia palha e tapetes. Sobre umas ripas de madeira, estavam empoleiradas mais de cem pombas. Duas pombas do mato estavam, porém, presas numa gaiola, e numa estaca estava amarrada uma rena, que tinha um anel de cobre polido em volta do pescoço.

– Todos esses bichos são meus – disse a menina – mas conte de novo para mim a história do pequeno Kay.

E Gerda contou. Não demorou muito, e a filha dos salteadores pegou no sono. A pobre Gerda, no entanto, não conseguiu dormir, de medo dos salteadores, que estavam lá fora em volta do fogo.
Nisto, as pombas do mato disseram:

– Gru! Gru! Nós vimos Kay. Uma galinha branca levava seu trenó, e ele ia sentado no trenó da Rainha da Neve, que passou voando por cima das copas das árvores.

– Que é que vocês estão dizendo? – perguntou Gerda, animando-se – Para onde foi a Rainha da Neve?

– Talvez para a Lapônia – respondeu a rena – pois é lá que ela passa o verão; seu castelo fica no polo norte.

De manhã, Gerda contou à filha dos salteadores o que havia acontecido, e a menina, depois de pensar um pouco, disse:

– Todos os homens saíram. Só está a mãe em casa, mas por volta do meio-dia ela dorme um pouquinho. Nessa hora, vou fazer alguma coisa por você.

Dito e feito. A filha dos salteadores conversou bastante com a rena. Em seguida, virou-se para Gerda e explicou:

– Minha rena vai levar você até a Lapônia, ela sabe o caminho; mas eu fico com seu regalo, que é muito bonitinho. Em troca, você ganha as luvas de minha mãe. Leve também estes dois pães com presunto.

Gerda agradeceu à menina, montou na rena, e lá se foram as duas por montes e vales, por florestas, pântanos e aldeias, até que chegaram à Lapônia.

 

Sexta História. A Mulher da Lapônia e a Mulher de Finnmark

Pararam ao lado de uma casinha muito pobre. Dentro dela, estava uma velha lapônia cozinhando peixe à luz de uma lamparina de óleo.

A rena contou então a triste história de Gerda.

– Ah, coitadinhas – disse a lapônia – vocês vão viajar por muito tempo ainda. Vão ter de andar mais de cem milhas pela terra de Finnmark a dentro, para chegar onde mora a Rainha da Neve. Papel eu não tenho, mas vou escrever algumas palavras num bacalhau seco, para vocês entregarem à mulher de Finnmark. Ela vai saber explicar o caminho melhor que eu.

Gerda se aqueceu no calor da pobre casinha e, depois de ter bebido água e se alimentado bastante, amarrou o bacalhau na rena, agradeceu à velha lapônia e seguiu viagem. As duas viajaram bem alto pelos ares, e a noite inteira brilhou a maravilhosa aurora boreal. Chegaram então a Finnmark e bateram na chaminé da finesa que morava ali, pois a casa não tinha porta.

A finesa, que era baixinha e suja, fez as duas entrarem e leu o que estava escrito no bacalhau seco. Leu três vezes, até decorar, e depois meteu o bacalhau na panela, pois nunca desperdiçava nada. A rena contou então a história da pequena Gerda; a finesa piscou seus olhinhos espertos, mas não disse uma palavra.

– Você, que é tão inteligente – pediu a rena – não quer dar à pequena Gerda a força de doze homens, para que ela possa dominar a Rainha da Neve?

A finesa, sem dizer nada, pegou uma grande pele enrolada e desenrolou-a. Nela estavam escritas umas letras estranhas. A rena tornou a pedir, e Gerda também olhou para a finesa com olhos tão suplicantes, que ela começou a piscar e, puxando a rena para um canto, cochichou em seu ouvido:

– O pequeno Kay está mesmo com a Rainha da Neve. Lá ele tem tudo o que deseja, e acha que ali é o melhor lugar do mundo. Isso é porque ele tem um caquinho de vidro em seu coração e também um grãozinho de vidro no olho. Primeiro, o caco e o grãozinho têm de sair, para que ele possa ser de novo um homem e se livrar do poder da Rainha da Neve. Eu não posso dar a Gerda um poder maior que aquele que ela já tem. Você não percebe sua força? Os homens e os animais a servem! Essa é a força que vem de um coração puro. Se ela não conseguir tirar o vidro de dentro do pequeno Kay, não somos nós que vamos poder ajudar. A duas milhas daqui começa o jardim da Rainha da Neve. Você pode levar Gerda até lá. Deixe-a junto de um grande arbusto que tem frutinhas vermelhas e volte imediatamente!

Assim dizendo, a finesa montou a pequena Gerda na rena, que correu o mais depressa que pôde.

– Oh, eu fiquei sem minhas botas! E fiquei sem minhas luvas! – exclamou a pequena Gerda.

Mas a rena não se atreveu a parar. Correu até o grande arbusto de frutinhas vermelhas, deixou Gerda ali e tornou a correr de volta o mais depressa que pôde.

E a pobre Gerda, sem botas e sem luvas, ficou naquele frio terrível da terra de Finnmark. Ela avançou pelo jardim adentro. Nisto, veio em sua direção um pelotão de flocos de neve, que eram a guarda avançada da Rainha da Neve. Iam ficando cada vez maiores e mais assustadores, parecendo ouriços ou pássaros encantados ou espíritos medonhos com garras.

A pequena Gerda não sabia mais o que fazer e então, diante daquele perigo, começou a rezar. O frio era tanto, que ela podia ver a própria respiração saindo de sua boca feito fumaça. Esse sopro foi ficando cada vez mais compacto e tomou a forma de pequenos anjos, e os anjos cresciam assim que tocavam a terra.

Eles avançaram com suas lanças contra os terríveis flocos de neve, que se partiram em mil pedaços. Diante disso, a pequena Gerda criou coragem e ficou mais confiante para continuar andando. Os anjos afagaram suas mãos e seus pés, e ela sentiu menos frio. Correu então para o castelo da Rainha da Neve.

E Kay? Que estaria fazendo? Na verdade, ele nem pensava em Gerda nem sabia que ela estava chegando ao castelo.

 

Sétima História. Sobre o Castelo da Rainha da Neve – e o que aconteceu depois.

As paredes do castelo eram feitas da neve que caía, e as janelas e portas eram cavadas pelo vento cortante. Dentro havia mais de cem salões, e o maior deles se estendia por muitas milhas. Tudo estava vazio e iluminado pelo clarão gélido da aurora boreal. No meio desses salões de neve imensos e vazios, havia um lago congelado, partido em mil pedaços. Os pedaços eram tão iguais uns aos outros que formavam uma verdadeira obra de arte. Kay estava sentado ali, sozinho; tinha a pele azulada de tanto frio, mas nem reparava nisso, pois a Rainha da Neve lhe havia dado um beijo, e seu coração era igual a um bloco de gelo. Ele tinha nas mãos uns pedaços de gelo e tentava juntá-los de modo a formar figuras. Olhava aqueles pedaços de gelo e pensava e pensava. Estava tão parado e duro que parecia congelado. Foi nessa hora que Gerda entrou no castelo, passando pelo grande portal, e chegou assim ao salão imenso e frio. Ela avistou Kay, reconheceu-o, passou-lhe os braços pelo pescoço e exclamou:

– Kay! Querido Kay! Até que enfim encontrei você aqui!

Ele continuou, porém, quieto e frio, e então a pequena Gerda começou a derramar lágrimas ardentes, que caíram em seu peito e penetraram em seu coração. Elas derreteram o bloco de gelo e o pedacinho de espelho que estava dentro dele. E Gerda cantou:

“As rosas se vestem de cor e de luz!
E nós vamos ver o Menino Jesus!”

Foi aí que Kay caiu no choro. Chorou tanto, que o grãozinho de espelho escorreu para fora de seus olhos, e ele reconheceu Gerda e ficou muito, muito feliz.

– Gerda! Querida Gerda! Onde você esteve esse tempo todo? E eu, onde estive eu? – exclamou Kay, olhando em volta – Mas que lugar frio e vazio é este! Até me dá medo!

Ele abraçou Gerda, e ela riu e chorou de alegria; foi tudo tão lindo que os pedaços de gelo ao redor começaram a dançar. Gerda beijou o rosto de Kay, e suas boas cores voltaram; beijou seus olhos, e eles brilharam como os seus; beijou suas mãos e seus pés, e Kay ficou de novo forte e saudável.
De mãos dadas, os dois saíram do castelo. Falaram da avó e das rosas no telhado; por onde iam, o vento se acalmava e o sol brilhava. Junto do arbusto de frutinhas vermelhas, a rena estava à sua espera e os levou até a casa da mulher finesa, onde eles se aqueceram, e depois até a casa da mulher lapônia, que fez roupas novas para os dois e lhes arranjou um trenó. E então Gerda e Kay partiram de novo. No caminho, encontraram também a filha dos salteadores, montada num belo cavalo. Foi uma alegria!

– Você me parece um camarada bem simpático para andar vagando por aí! – disse ela para Kay – Pois eu gostaria de saber se você merece que alguém corra até o fim do mundo por sua causa.
Apertando a mão dos dois, ela prometeu visitá-los assim que fosse à cidade onde moravam.
Kay e Gerda continuaram sua viagem de mãos dadas. A primavera estava no auge, a terra toda verde e coberta de flores; os sinos badalaram, e eles reconheceram sua própria cidade; foram até a casa da avó, entraram na sala, e tudo ali estava como antes. Ouvia-se o tique-taque do relógio, e lá iam girando seus ponteiros.

Porém, assim que passaram pela porta, Kay e Gerda repararam que haviam crescido, que já eram adultos. As rosas floresciam, entrando pela janela, e ali estavam as cadeirinhas de quando eles eram crianças. Kay e Gerda se sentaram e continuaram de mãos dadas. Tinham esquecido o palácio grandioso, deserto e gelado da Rainha da Neve, assim como quem esquece um pesadelo. Olhando nos olhos um do outro, eles entenderam mais uma vez a antiga canção:

“As rosas se vestem de cor e de luz!
E nós vamos ver o Menino Jesus!”

E ali ficaram os dois, adultos sim, mas também crianças, crianças no coração, e ao seu redor era verão, um verão quente e abençoado.

 

 

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