O Pintarroxo – um conto para a Páscoa

 

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Adaptação resumida de uma lenda de Selma Lagerlöf

por Ruth Salles

Foto de Mário Gomes

Isto aconteceu no tempo em que o Senhor, tendo criado o céu e a terra, criou igualmente os animais e as plantas, dando-lhes os nomes que ainda conservam.

Ora, estava Ele um dia em seu Paraíso celeste, pintando as aves pequeninas, quando de repente lhe veio a ideia de fazer um passarinho cinzento.

– Seu nome é pintarroxo – disse, assim que terminou. E, colocando-o na palma da mão, deixou-o voar.

O passarinho, depois de testar por algum tempo a eficácia de suas asas e de ver algumas coisas belas que já existiam no mundo, teve curiosidade de se ver a si mesmo. Então, contemplou-se no brilhante espelho do lago e viu que era inteiramente cinzento. Virando-se e revirando-se, não conseguiu descobrir nas penas uma única mancha encarnada. Foi então à procura do Criador.

Seu coração batia apressado, de medo; mas, apesar disso, voou em curvas graciosas cada vez mais perto dele, até que por fim pousou em sua mão.

– Que foi? – perguntou-lhe o Criador.

– Senhor, por que me foi dado o nome de pintarroxo, quando sou todo cinzento, do bico até a pontinha do rabo? Não tenho sequer um único sinal vermelho nas penas.

– Seu nome é pintarroxo, sim, mas decidi que você mesmo deve tentar merecer as penas encarnadas que deseja ter no peito.

Assim respondeu o Criador e, agitando a mão, deixou o passarinho voar mais uma vez pelo mundo afora.
O passarinho cinzento desceu do Paraíso sem saber como fazer para merecer as penas vermelhas. Era tão pequenino, e só o que sabia fazer era um ninho.

Construiu-o num recanto do bosque, na moita de roseira brava, entre os espinhos, dando a impressão de esperar que uma pétala da flor viesse se pendurar em sua garganta, colorindo-a desse modo.
Anos sem conta se passaram, até que amanheceu um novo dia, que será eternamente lembrado na história do mundo.

Naquela manhã, fora das muralhas de Jerusalém, um pintarroxo cantava para seus filhotes, que descansavam no ninho, na roseira brava que crescia sobre uma colina. Gorjeando, ele contou sobre o maravilhoso dia da Criação e falou das tentativas dos pintarroxos para merecerem a mancha vermelha. Os primeiros pensaram que o amor que sentiam pela companheira e pelos filhotes lhes daria a cor desejada. Que nada! Os seguintes cantaram com tal fervor que, com certeza o calor de seu canto, inchando-lhes o coração dentro do peito, daria a eles a cor desejada. Que nada! As novas gerações de pintarroxos, lutando com outras aves pela defesa do ninho, julgaram que a valentia na luta e o orgulho das vitórias lhes daria a cor desejada. Que nada!

Os filhotes, ouvindo tudo, pipilavam, dizendo:

– E que podemos fazer então, além de amar, cantar e lutar?

O canto dos pintarroxos cessou de repente. É que, por uma das portas de Jerusalém, vinha saindo enorme quantidade de gente, dirigindo-se para a colina onde ficava o ninho. Havia cavaleiros em seus cavalos, soldados com lanças, carrascos munidos de cravos e martelos. Havia sacerdotes e juízes, mulheres a chorar e, o que era pior, uma turba de vagabundos a correr e a gritar. O pobre passarinho cinzento pôs-se a tremer na beira do ninho, receando que, a qualquer momento fosse esmagada a roseira brava e, com ela, seus filhotes.

– Tenham cuidado – gritou ele às avezinhas indefesas – deitem-se e fiquem caladas! Vem vindo um cavalo em nossa direção e uma multidão desenfreada!

No mesmo instante, o pintarroxo interrompeu seus gritos de alarme e ficou em silêncio. Parecia ter esquecido o perigo que o ameaçava. Por fim, saltou para dentro do ninho e abriu as asas sobre os filhotes.

– Oh, como isto é horrível! – disse ele – Não quero que vocês presenciem este tremendo espetáculo. Há ali três condenados que vão ser crucificados.

E estendeu tanto as asas que as pequeninas aves nada mais puderam ver. Ao pintarroxo, porém, o terror dilatava os olhos.

– Como são cruéis as criaturas humanas – comentou depois de algum tempo – pois não lhes basta pregar aqueles coitados na cruz, mas ainda cravaram uma coroa de espinhos na cabeça de um deles. O sangue chega a escorrer por sua testa. E é um homem afinal tão belo… Lança olhares tão compassivos ao seu redor que todos deveriam amá-lo profundamente. Vendo seu sofrimento, sinto como se um dardo me atravessasse o coração. Ah, se eu fosse minha irmã, a águia, tiraria os cravos de suas mãos e, com as garras possantes, atacaria seus carrascos.

Vendo o sangue a pingar da testa do crucificado, o pintarroxo disse para si mesmo:

– Apesar de pequeno e fraco, hei de fazer alguma coisa.

E voou em direção à cruz, descrevendo largos círculos sem ousar chegar mais perto. Depois, percebendo que o povo não reparava nele, foi-se aproximando pouco a pouco, até que, com o bico, pôde retirar o espinho que estava enterrado mais fundo na testa do pobre homem. Ao fazer isso, uma gota de sangue caiu em seu peito e rapidamente espalhou-se, inundou e coloriu as penas leves e finas.

O crucificado, então, entreabriu os lábios e murmurou:

– Graças à sua compaixão, você conseguiu o que toda a sua espécie tem tentado obter, desde a criação do mundo.

Quando o passarinho voltou ao ninho, os filhotes gritaram:

– Você está com o peito vermelho! As penas estão rubras como as rosas!

– Foi apenas uma gota de sangue da testa de um pobre homem – disse o pintarroxo – e desaparecerá assim que eu me banhar na lagoa ou nas águas do poço.

No entanto, por mais que o passarinho se banhasse, a cor encarnada não desapareceu. Quando os filhotes cresceram, a mancha vermelha apareceu também nas penas de seu peito e de seu pescoço, como está até hoje no peito e no pescoço de todos os pintarroxos.

 

 

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