tradução de Maria Bárbara Trommer e adaptação e redação final em prosa e verso de Ruth Salles
Vídeo sobre o making off da peça, encenada em 2015 pelo alunos do 8° ano do Colégio Waldorf Micael, de São Paulo SP.
Título original: “Faust’s Erlösung”. Peça baseada em textos antigos – livros populares, teatro de bonecos, entre outros – segundo o maniqueu Fausto de Mileve (séc. IV), e retrabalhada em 1976 para o 8º ano da Escola Rudolf Steiner de Basileia, por Rudolf Kutzli.
PREFÁCIO
Esta peça foi surgindo a partir do ensino do autor como professor de classe durante um ano escolar inteiro. Quem era Fausto? Sempre foi procurada uma figura histórica palpável que estivesse por trás dos acontecimentos relatados em livros populares e em teatro de bonecos no fim da Idade Média. Do século XV ao século XVII, foi documentado um grande número de figuras do Fausto nos mais variados lugares da Europa. Tem-se a impressão de que determinado tipo característico da época foi denominado Fausto – como aquele que se liga ao diabo, para saber os segredos do mundo, e vai para o inferno – como advertência salutar para as pessoas. Na história do Cristianismo primitivo, existiu uma personagem fáustica: o bispo maniqueu Hippo Regius, de Cartago, na África do Norte, que foi chamado o Fausto de Mileve. A partir do envolvimento com o Fausto de Mileve, brotou o impulso de tornar a escrever o antigo tema do Fausto e de redimi-lo. Patenteou-se então que a questão do bem e do mal, relacionada com o significado do mal dentro do mundo, é capaz de tocar profundamente um 8º ano. Numa autêntica peça de 8º ano, deve existir bastante dramaticidade. A seriedade de algumas cenas é equilibrada pelos acontecimentos alegres que rodeiam João-Linguiça e Wagner.
NOTAS SOBRE O TEXTO: O texto foi criado a partir de antigos livros populares e de teatros de bonecos. Estiliscamente, muito foi mudado. Mas uma das citações provém do “Manfred” de Byron, outras do “Fausto” de Avenarius e da “Divina Comédia” de Dante. Em vários pontos ressoam os dizeres de Rudolf Steiner: “A ação do ser humano, / quando é iluminada pelo amor / e quando é aquecida pelo amor, / realiza o sentido do mundo.”
NOTA de Ruth Salles: A música fica a critério do professor ou professora de música da classe. Esta adaptação foi feita em 2007.
PERSONAGENS
FAUSTO / 4 DAMAS DA CORTE / MEFISTÓFELES / NÊMESIS / ESPÍRITO MAU / MENDIGO / ESPÍRITO BOM / MÃE E FILHO / CARONTE / ANCIÃO / PLUTÃO / ANCIÃ DIABO / MENINA / BRUXAS / DOENTES / FÚRIAS / WAGNER / JOÃO-LINGUIÇA / GALO-SILVESTRE / DOM CARLOS / DUQUE / DUQUESA / ALGUMAS ALMAS NO BARCO DO INÍCIO / TRÊS DIABOS DISFARÇADOS DE ESTUDANTES
COMO APARIÇÕES: SALOMÃO / BELKISS / PÁRIS / HELENA / ALTOUM / TURANDOT
Segue abaixo o primeiro quadro do texto. Havendo interesse em representar a peça, enviaremos o texto completo em PDF. A escola deve solicitar pelo email: [email protected]
PRIMEIRO QUADRO
Prólogo no reino dos mortos.
Caronte, Algumas Almas, Plutão; Bruxas, Fúrias, Diabos.
(Ouve-se ao longe um surdo trovejar, o vento uivando baixinho, água marulhando, sons de lamentos que aumentam e diminuem. Luzes pálidas e rubras relampejam, morcegos enormes passam.)
CARONTE (aproxima-se, remando no barco oscilante dos mortos):
– Levo meu barco, eu, Caronte,
por sobre o Estígia e o Aqueronte.
Mas tenho poucas almas embarcadas
que vão para o inferno condenadas.
Por isso mesmo, não me agrada
esta missão que me foi dada.
Demitir-me deste dever
me daria o maior prazer;
e Plutão me olhará azedo
se eu deixar o serviço tão cedo.
Ó inferno, abre-te agora!
Plutão, espero-te aqui fora!
Pois quero deixar teu serviço,
e é com prazer que digo isso! (desce do barco)
Caronte está aqui para pedir!
Sai do inferno, Plutão, e vem me ouvir!
PLUTÃO (surge entre raios e trovões):
– Quem é esse atrevido espírito infernal
que importuna o senhor da treva em seu portal?
CARONTE:
– Sou eu, Caronte, eu, teu servidor.
Ouve bem, meu senhor!
Diante de ti eu curvo minha fronte!
PLUTÃO:
– Que desejas então, fiel Caronte?
CARONTE:
– Pensei bem para falar,
mas hoje venho acusar
tua criadagem.
PLUTÃO:
– Ó remador, como tens coragem?
CARONTE:
– Teus espíritos infernais agem devagar,
Trazem pouquíssimas almas para eu atravessar.
Só levo espíritos menores!
e o que eu quero são os maiores!
Os mestres! Ah, se eles chegassem
e se os infernos fumegassem!
PLUTÃO:
– Bem, chamarei bruxas e fúrias fumegantes,
e terás um grande homem num instante.
Vou mandar atrás dele meu diabo mais quente,
e com isso eu mesmo ficarei contente.
CARONTE:
– Já que fala tão bem o meu Plutão,
eu volto a cumprir com minha função. (dança ao falar)
Daqui por diante estou contente,
com as almas que vou ganhar de presente.
O cão do inferno já está uivando.
Logo meu barco estará cheio de gente! (afasta-se, remando)
PLUTÃO (ergue os braços; ouvem-se uivos distantes):
– Rápido, rápido, diabos preguiçosos!
Fúrias fumegantes, bruxas ardilosas!
Aproximai-vos do meu trono!
Por acaso caístes no sono?
BRUXAS (aparecem com assobios):
– Aqui estamos nós, as bruxas da bruxaria,
oh, mestre, oh guia!
Mexemos poções venenosas
e perigosas. (dão risinhos finos)
FÚRIAS (aparecem aos uivos):
– Nós, as fúrias, deixamos as almas em caco,
em trapo e farrapo. (uivam mais)
DIABOS (com matracas):
– Nós, os diabos, varremos tudo!
Com nosso rabo peludo,
chicoteamos a humanidade.
Plutão, qual é tua vontade?
PLUTÃO:
– Correi o mundo como um vendaval.
Levai os homens a praticar o mal.
Bruxas! Fúrias! Diabos!
Lançai os homens em aflições
e no lamaçal das más ações.
Eu vos louvarei se um dia eu acho
tudo virado de cabeça para baixo!
BRUXAS, FÚRIAS e DIABOS:
– Plutão, o que quiseres nós faremos,
pois foi do Caos que nascemos! (assobiam, uivam e matracam)
PLUTÃO:
– E agora, Mefistófeles, meu espírito mais leal,
comparece ante o trono infernal!
MEFISTÓFELES (chega, cumprimentado pelos outros):
– Aqui estou, Plutão!
PLUTÃO:
– Pois vai à cidade de Praga e lá atrai
um homem chamado João Fausto. Vai!
Quero que o seduzas com todo o teu treino
e que o atraias para nosso reino.
BRUXAS, FÚRIAS e DIABOS (sussurram):
– João Fausto! João Fausto! João Fausto!
MEFISTÓFELES:
– Vou usar de toda a minha sedução.
Ele não escapará, poderoso Plutão.
PLUTÃO:
– Então, vai!
As bruxas, as fúrias e meus diabos
estarão fielmente a teu lado.
Tira de Fausto a sede pela verdade,
pela beleza e pela bondade.
Que ele não pense nos outros, só no próprio prazer.
E que depois o remorso faça seu coração arder!
Quando o desespero o agarrar,
é para baixo que o vais arremessar!
MEFISTÓFELES:
– Pelo rio Estígia, escuro,
eu juro!
Esse atrevido, num momento,
vai maldizer seu nascimento!
PLUTÃO (a todos os seus servos):
– Parti, então, em vossa missão!
Prendei Fausto num laço eterno
e arremessai-o na goela do inferno! (saem todos; bruxas, fúrias, diabos, assobiando, matracando, uivando)
SEGUNDO QUADRO
Saleta de estudo de Fausto
Fausto; Espírito bom, Espírito mau; Wagner; três Diabos disfarçados de Estudantes.
FAUSTO:
– Esta noite parece que nunca se acaba
Ai, que sede mortal jamais saciada!
Voltemos ao trabalho, ao estudo,
embora eu encontre desespero em tudo…
Desde a juventude, dediquei-me ao “studium theologicum”, e cheguei a tanto que aqui em Praga recebi o “sumum gradus doctoratus cum laude”e fui honrado por todos como doutor, professor e “Rector Magnificus” da “Alma Mater”. Mas, em quê isso me ajuda? Oh, Natureza? Como se chama a força que revela o futuro? Como encontrar o significado do mundo? É o cerne do espírito que desejo encontrar no oculto…
ESPÍRITO MAU (à esquerda de Fausto):
– Fausto, Fausto!
Deixa o estudo da Teologia
e entrega-te ao estudo da Magia,
se queres ser feliz na Terra
e saber bem o que ela encerra.
ESPÍRITO BOM (à direita de Fausto):
– Fausto, Fausto, não te deixes enganar!
Com a magia, é nas trevas que vais parar!
Desperta a sabedoria em ti mesmo, bem no fundo,
e ela te levará ao significado do mundo.
ESPÍRITO MAU:
– Deixa essa ilusão desmedida
e começa a viver a vida!
O significado do mundo é prazer!
A magia te dará poder!
ESPÍRITO BOM:
– Não ouças o que ele diz, meu amigo.
Salva tua alma desse perigo.
FAUSTO:
– Uma voz de cada lado, cada vez mais perto…
Qual delas me dirá o que é o certo?
– Voz da direita, quem és tu?
ESPÍRITO BOM:
– Eu sou a força do amor,
que cria luz e calor.
FAUSTO:
– Isto qualquer um pode dizer.
– Voz da esquerda, queres responder
quem és tu?
ESPÍRITO MAU:
– Vim do reino de Plutão, na verdade,
para te trazer felicidade.
Força, poder, riqueza, prazer
é o que tenho a oferecer.
FAUSTO:
– Ah, felicidade e riqueza também?
Isso me fará bem.
– Espírito da direita, vai-te embora!
– Espírito da esquerda, sigo-te agora!
ESPÍRITO BOM:
– Ai de ti, pobre alma!
Mas não te deixarei, mesmo quando errares,
pois terás minha luz para te salvares.
(O espírito bom sai. O espírito mau sai com um risinho diabólico. Batem à porta.)
FAUSTO: – Ah, és tu, Wagner, meu “famulus”! Que queres a esta hora da noite?
WAGNER: – Três estudantes desejam falar com Vossa Magnificência. Um deles segurava um grande livro como se fosse coisa sagrada…
FAUSTO: – Um livro? Pois manda entrar.
(Wagner chama os estudantes, que entram com reverências exageradas.)
1º ESTUDANTE: – Mil perdões por perturbar o senhor doutor “Faustum”.
2º ESTUDANTE: – Perdão por vos “molestare im studium”…
3º ESTUDANTE: – … por vos “incomodare”.
FAUSTO: – Por nada! A que vindes? Dizei logo!
1º ESTUDANTE: – Após a morte de nosso pai, encontramos na gaveta secreta de um antigo armário este “compendium”, que ele guardava trancado a chave…
2º ESTUDANTE: – … e que tem o seguinte título: “Clavis astarti ad artem magicam”.
3º ESTUDANTE: – E como arte mágica é algo diabólico, trouxemos o livro para o grande doutor, a cuja alta sabedoria ele não causará danos.
FAUSTO (para si mesmo, ao pegar o livro): – Eis o que eu buscava!
(em voz alta aos estudantes): – Fizestes bem em trazer-me esta obra, que poderia ser vossa perdição. Só o mais sábio deve vê-la. Eu vos agradeço.
TRÊS ESTUDANTES (com ironia):
– Que o livro vos faça bem, Magnificência!
Nós nos despedimos. Com licença. (saem mancando, com Wagner)
FAUSTO: – Que defeito terão os três? (abre o livro) Ah, com ajuda desta obra, dominarei o céu, a terra e o inferno! Iniciemos os estudos.
TERCEIRO QUADRO
Saleta de estudos de Fausto.
João-Linguiça; Wagner.
JOÃO-LINGUIÇA (entra cantando):
“De tanto comer chucrute e nabo,
de minha casa saí disparado.
Se me cozinhassem toucinho do bom,
eu lá teria ficado!
Quando eu chegar a Paris,
já sei o que vou dizer:
– Ah, Messiê, votre serviteur,
donemuá de comer!”
(bate palmas):
– Ô de casa, senhor hospedeiro!
Não há ninguém na hospedaria?
Olá, criado! Olá despenseiro!
Chegou um estranho! Um cavaleiro!
WAGNER (chega, afobado): – Que está acontecendo por aqui? Eh, homem, de onde vieste?
JOÃO-LINGUIÇA: – Ora, vim lá de fora!
WAGNER: – Mas por onde entraste?
JOÃO-LINGUIÇA: – Ora, pela porta!
WAGNER: – Pela porta? Mas, como?
JOÃO-LINGUIÇA: – Ora, andando sobre as duas pernas.
WAGNER: – És um sujeito grosseiro. Sei muito bem que não vieste voando pelos ares.
JOÃO-LINGUIÇA: – Então por que fazes perguntas tão idiotas?
WAGNER: – Perguntas idiotas! Não sabes com quem estás falando?
JOÃO-LINGUIÇA (espeta-lhe um dedo na barriga): – Ora essa! Com um palito engomado.
WAGNER: – Hô-hô-hô! És um camarada engraçado. Na verdade, chegaste bem na hora. Poderias trabalhar como meu criado.
JOÃO-LINGUIÇA: – Como é que é? Como é que é?
WAGNER: – Ouve com atenção! Aqui mora o grande doutor Fausto…
JOÃO-LINGUIÇA: – Ai, ai! Eu é que não fico aqui. Fausto… Fausto… O soco infausto que levei no olho outro dia ainda me dói. Até hoje vejo tudo torto.
WAGNER: – Doutor Fausto é um mestre. Tem um sábio fraseado…
JOÃO-LINGUIÇA: – Se ele está esvaziado, é só enchê-lo de novo.
WAGNER: – É um famoso filósofo. É a proposta melhor que eu te trago.
JOÃO-LINGUIÇA: – Ah, o melhor é que ele gosta de um trago? Pois eu também!
WAGNER: – Como te chamas, afinal?
JOÃO-LINGUIÇA: – Adivinha! As minhas brincadeiras não enjoam. E o que eu como sou eu mesmo.
WAGNER: – Enjoam… enjoam… João! E tu és o que tu comes?
JOÃO-LINGUIÇA: – Rima com preguiça, mas como falo muito é uma preguiça linguaruda.
WAGNER: – Preguiça linguaruda… Ah! Linguiça! Então és João-Linguiça!
JOÃO-LINGUIÇA: – Acertou em cheio!
WAGNER: – Então ouve, João-Linguiça! Estou procurando um criado. Não queres nos comprazer e aceitar o emprego?
JOÃO-LINGUIÇA: – Se é emprego com prazer, por que não?
WAGNER: – Terás de espanar os livros, buscar água na fonte, pôr lenha no fogo…
JOÃO-LINGUIÇA: – Se é só isso: jogar lenha na fonte, água no fogo, afanar livros…
WAGNER: – Nada de afanar. Espanar. Mas, para isso, tens de ter o primeiro grau. Será que tens o primeiro grau?
JOÃO-LINGUIÇA: – Que ousadia! Sou pessoa de boa saúde! Nunca tive o menor grau de febre em toda a minha vida.
WAGNER: – Não é isso. O que eu quero saber é se fizeste estudos mais elevados.
JOÃO-LINGUIÇA: – Ah, bom. Estudos elevados eu fiz, sim, pois minha escola ficava lááá no Alto da Boa Vista! E a comida aqui é boa? Por acaso és o cozinheiro?
WAGNER (com importância): – Eu, aqui sou o “famulus”.
JOÃO-LINGUIÇA: – Flan? Isso parece nome de pudim.
WAGNER: – Famulus é latim e quer dizer criado.
JOÃO-LINGUIÇA: – Não me faças rir. Então o criado precisa de um criado? Portanto, eu serei o sub-flan? Bem, para mim tanto faz. Comecemos logo a trabalhar, meu caro super-flan. Vamos tomar café!
FAUSTO (entra com o livro na mão): – Com este livro adquiri confiança. Já decidi. E o que decidi vou realizar. Êi, Wagner!
WAGNER (entrando): – Aqui estou, Magnificência!
FAUSTO: – Presta atenção no que te digo. Tudo o que eu te ordenar, tudo o que vires e ouvires esta noite deverá ser mantido em segredo!
WAGNER: – Sim, Magnificência.
FAUSTO: – Vai buscar a vara em meu quarto, e mais o cinto; e o bastãozinho que está no vidro do elixir que conseguimos ontem.
(Wagner sai. Fausto mede um círculo com seus passos.)
WAGNER (volta com os objetos):
– Aqui está tudo, Magnificência.
Posso permanecer?
Alguma coisa eu poderia aprender…
FAUSTO:
– Impossível, pois é perigoso o que eu farei.
Se perguntarem por mim, responde que viajei. (Wagner se inclina e sai)
FAUSTO (fecha a porta; soam as 12 badaladas da meia-noite):
– Para a posição correta cada estrela subiu.
Chegou a meia-noite. Eu me sinto febril.
Aqui está o bastão. Com ele o círculo eu traço.
(ele anda em volta do círculo)
Agora é só falar de modo mágico:
Abracadabra! Siste! Phlegethontia Styx! (ouve-se um trovão surdo)
Penetro corajosamente no círculo mágico. (trovão mais forte)
Tenho a impressão de que tudo treme. Coragem.
– Avante, príncipe das trevas,
deves cumprir tuas regras!
– Fúrias, vinde com velocidade
fazer minha vontade!
FÚRIAS (entram uivando):
– Mas tu te atreves, então,
a falar como uma montanha
quando és apenas um anão?
Com esse poder
não nos podes reter. (saem uivando)
FAUSTO:
– Maldição!
Digo a sentença mais potente, então:
Em nome do Estígia e do Aqueronte!
Bruxas, vinde aqui defronte!
BRUXAS (entram com assobios):
– Achamos ridículo
esse homem minúsculo.
Ó gnomo, nós rimos
e não te seguimos. (saem assobiando)
FAUSTO:
– Elas se foram! Que desgraça!
Ah, que um sinal mais forte eu faça!
Bibit rapaton pessanos Kaldonai!
– Rápidos como o vento, diabos, chegai!
Sede submissos a mim!
DIABOS (com som de matracas):
– A um homem pequeno assim? (saem, matraqueando)
FAUSTO:
– Não vou desesperar.
Sentença mais forte devo pronunciar:
Faustus vos citissime citat! (trovões)
MEFISTÓFELES (entra):
– Sou Mefistófeles. Chamaste-me e eu vim.
Que desejas de mim?
FAUSTO:
– Que satisfaças meu anseio.
MEFISTÓFELES:
– Quanto a isso, não tenhas receio.
Mas… sabes qual é o preço? Tua alma!
FAUSTO:
– Minha alma… E dando-a em pagamento,
tu me servirás por quanto tempo?
MEFISTÓFELES:
– Por vinte e quatro anos. É um acordo bem exato.
No fim desse prazo, à meia-noite, se desfaz o trato.
Mas, ouve Fausto, não quero ser enganado.
Com 3 gotas de teu sangue, o trato estará selado.
FAUSTO:
– Meu sangue? (ouve-se um eco de vozes: “Teu sangueeee!” Mefistófeles
lhe arranha o braço. Trovões. Escuridão. Mefistófeles desaparece. Luz.)
Ai, que terrível sensação.
Vou perder os sentidos, cair no chão. (desmaia)
ESPÍRITO BOM:
– Seduzida criatura,
ias caminhando tão pura…
Mas a teu lado vou permanecer
e não te deixo perecer.
(O Espírito bom desaparece, enquanto uma música suave se transforma em cacofonia.)
FÚRIAS:
– Fausto! Mergulha no prazer!
DIABOS: – Nós te damos o poder!
BRUXAS: – E toda a riqueza que pode haver.
FAUSTO (levanta-se):
– Terei talvez dormido?
Agora estou fortalecido.
E o príncipe do inferno, onde está?
– Mefistófeles, apresenta-te já!
MEFISTÓFELES (com papel e pena na mão):
– Eis o pacto. Falta assinar. Depois disso, com as artes mágicas,
vamos sair a passear!
FAUSTO (pega o papel):
– Quero lê-lo antes:
“Após Mefistófeles, por 24 anos,
me servir satisfatoriamente,
eu lhe entrego corpo, alma, sangue
e renego a Deus e a Fé eternamente.”
MEFISTÓFELES:
– Vamos! Assina com teu sangue!
FAUSTO (escreve, molhando a pena no arranhão): – Manu própria: “Doctor Ioannes Faustus”. (trovões distantes)
MEFISTÓFELES (pega o papel): – Agora está feito. Ordena!
FAUSTO:
– Pois quero mergulhar bem fundo
em todos os prazeres do mundo.
Soube que na corte do duque de Parma há esplêndidas festas.
E que sua mulher, a duquesa é a mais bela de todas as mulheres.
Mas eu teria de ser mais jovem, mais sadio, mais rico!
Mefistófeles, dá-me de presente juventude, ouro e saúde!
MEFISTÓFELES:
– O que quiseres terás.
Mil delícias provarás!
– Bruxas! Trazei o elixir!
BRUXAS (música das bruxas):
– Seiva que encerra
a força eterna
da juventude!
Eis a saúde! (entregam-lhe o cálice)
MEFISTÓFELES:
– Bebe confiante!
FAUSTO (cheira):
– Hum… Cheira mal!
BRUXAS:
– Toma bastante!
FAUSTO (bebe):
– Sinto-me mal!
(Ele desmaia. As bruxas dançam à sua volta, com música, depois saem. Fausto se reergue jovem e forte.)
FAUSTO:
– Ahhh… Sinto-me assim
como se uma força nova passasse por mim.
MEFISTÓFELES:
– Vamos! Não temos tempo a desperdiçar.
Envolve-te em meu manto e vamos voar.
Em Parma chegaremos muito breve,
voando leve…… (saem)
QUINTO QUADRO
Sala de estudo.
João-Linguiça; 5 diabos; Galo-silvestre.
JOÃO-LINGUIÇA: – Fausto! Infausto! Vossa Magra-Essência! O café está servido. (tropeça e cai de comprido) Bumba! Agora já sei o comprimento da sala. Vai ver que tropecei num rabo de rato. Aqui só há ratos, e que ratos! Com chifres, garras e olhos em fogo. (Vê um livro no chão) Mas o que fará um livro no chão? Será que aqui o costume é ler sentado no chão? (entra no círculo; trovões; pega o livro) Será que vem chuva? Vou tentar ler: “Quando… se quer… chamar… os diabos… é só dizer… Perlique.” (Os diabos aparecem zumbindo atrás dele, mas ele não os vê) Está trovejando de novo? Vem chuva. (continua a ler) “Quando… se quer… que eles… desapareçam… é só dizer… Perlaque!” (os diabos desaparecem zumbindo.) Que resmungos são esses? Será que não se pode ler em paz? Onde foi que parei? Ah: “Dizer Perlique!” (os diabos aparecem com grande barulho. João-Linguiça os vê, finalmente) Ui! Que monstros são esses? Que é que vós quereis, Rabos-de-ratos?
DIABOS: – Servir-te! Servir-te!
JOÃO-LINGUIÇA: – Servir o quê? Algum prato gostoso?
DIABOS: – Fogo e peste! Lixo e enxofre!
JOÃO-LINGUIÇA: – Ah, isso no momento não me apetece. Ih, mas que unhas imundas! Quem sois vós, afinal?
DIABOS: – Nós somos os diabos, os diabos!
JOÃO-LINGUIÇA: – Diabos? Que nojo. Quais são vossos nomes? Tu aí, limpador de chaminés!
1º DIABO: – Sou Vitsliputsli, o diabo das grosserias!
2º DIABO: – Sou Bla-bla-bla, o diabo do papo furado.
3º DIABO: – Sou Jensiensi, o diabo da preguiça.
4º DIABO: – Sou Eli-beli, o diabo das bobagens!
5º DIABO: Sou Ti-ti-ti, o diabo das intrigas!
JOÃO-LINGUIÇA: – Belos nomes. E o que quereis?
DIABOS: – Tua alma! Tua alma!
JOÃO-LINGUIÇA: – Ih, que pobres diabos! Então não sabeis que minha alma está presa no corpo? Fora já daqui, Rabos-de-ratos!
DIABOS: – Não, não! Prescreve a venda da tua alma… prescreve! Assina aqui! Assina!
JOÃO-LINGUIÇA: – Minha sina não é essa, e assim não pode continuar. Vou ler o livro: “Perlaque”! (os diabos desaparecem) Ah, agora vou mostrar quem manda: Perlique! (os diabos aparecem) Ui, que cheiro pestilento. Para fora! Perlaque! (os diabos desaparecem) Perlique! Perlaque! Perlique! Perlaque (os diabos vão e vêm, tropeçando uns nos outros e somem.)
GALO-SILVESTRE (entra voando): – Prrrrrrrrrrr!
JOÃO-LINGUIÇA: – Ué! Que é isso? Perlaque!
GALO-SILVESTRE: – Sobre mim não tens poder algum. Pertenço a teu dono, que pertence ao diabo.
JOÃO-LINGUIÇA: – Ah, essa, não… Que diabo… E como te chamas?
GALO-SILVESTRE: – Galo-silvestre! E o doutor Fausto me ordenou que te levasse a Parma. Anda! Monta em mim, porque vamos voando.
JOÃO-LINGUIÇA: – Um galo endiabrado não queima meus fundilhos?
GALO-SILVESTRE: – Pára com o falatório, senão te deixo cair.
JOÃO-LINGUIÇA: – Uuuuiiiiii! (saem com assobios)
SEXTO QUADRO
Parma. Jardim do palácio do duque. À esquerda um poço.
Dom Carlos; João-Linguiça e Galo-silvestre; o duque e a duquesa de Parma; 4 damas da corte; Fausto; Salomão e Belkiss; Helena e Páris; Altoum e Turandot; Mefistófeles.
DOM CARLOS:
– Quando verei as festas terminadas?
Estou cansado destas mascaradas.
Comes e bebes, tanto esbanjamento,
sem dar sossego e nem contentamento…
(Galo-silvestre vem vindo, e João-Linguiça despenca dentro do poço)
DOM CARLOS:
– Que meteoro é esse de repente?
Um rabo de ouro num dragão ardente!
Que vejo eu? Das penas do dragão
alguma coisa vem caindo ao chão.
Céus! Quem foi que caiu dentro do poço
do meu jardim? Quem está aí? Ei, moço!
(Ele ajuda João-Linguiça a sair. O Galo-silvestre desaparece.)
JOÃO-LINGUIÇA: – Ai, ai, ai, será que ainda tenho todas as costelas? E meu lindo nariz de domingo? Ainda bem que não caí no chão abrindo um buraco.
DOM CARLOS:
– O acaso nos trouxe estranho pombo!
JOÃO-LINGUIÇA:
– Que pombo? Foi tombo. Foi quase um rombo!
DOM CARLOS:
– Tu caíste das nuvens? Mas, que impacto!
E tens braços e pernas ainda intactos?
Montaste num dragão? Tu tens poder?
Decerto um mestre-bruxo deves ser.
JOÃO-LINGUIÇA: – Eu, não. Vim com o Galo-silvestre, que me derrubou aqui e não tenho permissão para falar. O Mentirófoles me proibiu terminantemente de contar que sou o João-Linguiça e que vim atrás do meu patrão, que pertence ao diabo.
DOM CARLOS: – Então és um criado. Como se chama teu patrão?
JOÃO-LINGUIÇA: – Ah, Vossa Pestilência, isso o Mentirófoles também me proibiu de contar. Mas posso indicar. (Faz gestos) Quem vive no luxo, na ostentação, vive no quê?
DOM CARLOS: – Luxo, ostentação, fausto… Então é o famoso Fausto das ciências mágicas? Com certeza aprendeste com ele alguma coisa de peso. Dá uma prova disso!
JOÃO-LINGUIÇA: – Pois não! (planta uma bananeira)
DOM CARLOS: – Ora, isso qualquer macaco faz.
JOÃO-LINGUIÇA: – Então, vira de costas! Depois que eu disser a fórmula mágica, podes contar até 5 e desvirar, e verás que a terra me engoliu. (Dom Carlos vira de costas) Zause-bause-berlidause-binse-bause-pitinause-fidilause! (Sai de cena)
DOM CARLOS: – Um, dois, três, quatro, cinco… E não é que sumiu mesmo? O criado supera o patrão. Oh, lá vêm vindo o duque e a duquesa.
DUQUE (entrando com a duquesa e comitiva): – Minha cara esposa, pela minha vontade, esta festa de nosso casamento jamais terminaria.
DUQUESA: – Ah, basta de festa, meu caro duque.
DUQUE: – Não, não. Eis aí Dom Carlos, nosso mordomo-mor, que vai pensar em alguma coisa para coroar nossa festa.
DOM CARLOS: – Alteza, como Vossa Graça deseja, a festa será coroada, pois acabou de chegar aqui o famosíssimo doutor Fausto.
DUQUE: – Que estás dizendo? O grande erudito? Então, que ele entre!
(Dom Carlos sai.)
1ª DAMA DA CORTE: – Ouvi falar muito desse sábio doutor Fausto.
2ª DAMA DA CORTE: – Dizem que ele domina o mundo dos espíritos.
3ª DAMA DA CORTE: – Ele é um mago? Que horror!
4ª DAMA DA CORTE: – Como será sua aparência?
DUQUESA: – Ele já vem chegando!
DOM CARLOS (anuncia ao duque): – O doutor Fausto!
DUQUE: – Que ele entre!
(Fausto entra acompanhado de Mefistófeles, invisível em seu manto.)
DUQUESA: – Bem-vindo sejas. Ouvimos falar a teu respeito.
FAUSTO: – Como?! Então minha fama já foi comentada para a mais bela das mulheres?
DUQUESA: – Sim, queres embelezar minha festa de casamento?
FAUSTO: – Pois não. Será uma honra para mim.
DUQUESA: – Mostra então um exemplo de teus poderes.
FAUSTO: – É com prazer que obedeço à mais bela de todas as mulheres.
DUQUESA: – Pois mostra-nos então o rei Salomão.
(Escurece. Num ponto de luz aparecem Salomão e Belkiss.)
FAUSTO: – Eis aí!
1ª DAMA DA CORTE:
– É um milagre!
2ª DAMA DA CORTE: – Ele está vivo!
3ª DAMA DA CORTE:
– Dá para ver bem detalhado!
4ª DAMA DA CORTE:
– E quem é a dama a seu lado?
FAUSTO:
– Seu nome era Belkiss, rainha de Sabá.
Ela foi muito linda.
Porém nossa duquesa é mais bonita ainda. (a imagem some)
Quereis ver mais?
DUQUE (seco, com ciúmes): – Mostra-nos a cidade de Troia.
DUQUESA (animada):
– Helena! Quero ver Helena, que pensou
ser a mais bela das mulheres.
E Páris, que dos gregos a roubou.
FAUSTO:
– Pois que seja! (aparecem os dois)
DUQUE: – Ele é valente e altivo.
DUQUESA (com pouco caso):
– Ela é doce e não deixa de ser bela.
FAUSTO:
– Mas de tua beleza, que é tão nobre,
a dela é apenas um reflexo pobre. (a aparição some.)
Agora, Altoum, o imperador da China,
com sua filha, bem maligna. (os dois aparecem)
DUQUE (irônico):
– É Turandot. Os homens que a amavam
tiveram triste sorte.
A esperta os condenava à morte. (a aparição some)
DUQUESA:
– Oh, agora, segue-nos, será nosso convidado,
como agradecimento pelo que nos foi mostrado.
FAUSTO:
– Servir à mais bela das mulheres, na verdade,
considero a maior felicidade.
(O duque e a duquesa, com sua comitiva saem, esperando que Fausto os siga. Mas Mefistófeles o segura.)
MEFISTÓFELES:
– Se amas tua vida, deixa a corte,
senão o que te espera é a morte.
FAUSTO:
– Mas, Mefistófeles, pensei ter agido a contento.
MEFISTÓFELES:
– Deixaste o duque muito ciumento.
Vamos a outro lugar. Tanto faz.
Aqui é que não podes ficar mais.
Ainda tens muito a aproveitar.
Nosso pacto está longe de acabar.
FAUSTO:
– Pois então, vamos. Sinto-me cheio de poder.
Prazer e mais prazer! (sai envolto no manto de Mefistófeles)
JOÃO-LINGUIÇA (aparece correndo):
– Ei, ei, não é que fui abandonado?
Lá se foi o Mentirófeles voando com meu patrão
e me deixou aqui plantado
na terra dos comedores de macarrão!
Todo o povo de Parma está atrás de mim,
porque fiz meus diabinhos dançarem assim. (imita-os)
Foi só dizer perlique e perlaque.
Ah, tive uma idéia: Perlique!
GALO-SILVESTRE: – Prrrrr… Já estou aqui.
JOÃO-LINGUIÇA:
– Ah, meu galinho-silvestre queridinho do coração,
como estou feliz de ver tua cara de diabinho resmungão.
Esta solidão me esmaga!
Vou montar e prometo não tagarelar.
Leva-me de volta a Praga! (saem os dois)
SÉTIMO QUADRO
Sala de estudo de Fausto
Fausto; Espírito bom; Mefistófeles.
FAUSTO:
– Não estou nem feliz, nem satisfeito.
E sinto grande inquietação no peito.
Nenhum enigma eu soube responder.
Nenhum alívio me trouxe o prazer.
Vi tanta coisa com que sonhei,
mas o sopro do espírito não encontrei.
Olhei a Natureza usando a magia
e apenas destruí a existente harmonia.
Busquei felicidade e não pude prendê-la.
Com o mágico poder não consegui retê-la.
ESPÍRITO BOM:
– Fausto, felicidade tu nunca terás
se corres atrás dela, prendendo-a. Jamais!
FAUSTO:
– Quando terei felicidade então?
ESPÍRITO BOM:
– Quando fizeres de ti uma doação!
Trata-se de doares a felicidade.
Pondera bem esta grande verdade.
FAUSTO (movendo-se angustiado):
– A palavra que ouvi não consigo guardar.
Diabólico poder me vem emaranhar!
Só pratiquei o mal, que para mim retorna.
ESPÍRITO BOM:
– Se praticas o bem, todo o mal se transforma.
Cria coragem, Fausto, e teu olhar eleva!
A luz do amor altruísta vence a própria treva.
FAUSTO:
– Que suave confiança… Tenho nova esperança.
Eu, que pequei demais,
não quero encontrar Mefistófeles mais!
MEFISTÓFELES:
– Tu me chamaste? Em que posso servir?
FAUSTO:
– Em nada. Eu hei de resistir.
Agora não te receio. Só te odeio.
ESPÍRITO BOM:
– Fausto, pobre de ti… Não entendeste.
Se odeias quem é mau, ainda não venceste.
Só a força que o amor contém
pode, do mal, recriar o bem. (sai)
FAUSTO (avança contra Mefistófeles):
– Resisto aos teus poderes! Para trás!
Sinto uma força nova arder demais!
MEFISTÓFELES (recua e fala consigo mesmo):
– Algo novo é preciso que eu invente
para conquistar Fausto novamente. (ele sai.)
OITAVO QUADRO
Ao fundo, a silhueta de uma cidade. Anoitece.
Fausto; Nêmesis; Mefistófeles; doentes, mendigos, mãe com filha, velho e velha.
FAUSTO (viajante solitário):
– Eis a cidade, tão calada e alheia…
Mas que espírito é esse que a rodeia?
(Aparece um vulto envolto em panos cinzentos.)
FAUSTO:
– Alto lá, ó sinistra criatura!
Quem és? Tira da face a teia escura!
NÊMESIS:
– Sou o destino, Nêmesis eu sou.
Foi o mais alto Deus que me enviou.
As minhas asas movem a sorte.
Eu trago a vida… e trago a morte.
(aproxima-se mais de Fausto):
Caminhante noturno,
afasta de ti mesmo o olhar soturno,
pois assim o teu mal se multiplica.
Olha os outros e vê quem sofre mais.
Aquece o coração! Não vou deixar-te em paz! (aponta para a cidade)
A cidade dorme. No entanto,
o dia vai acordá-la em pranto.
A asa da peste bem quieta se abriu.
Mil empalidecem, e dez vezes mil!
Do que vai morrer, o vivo se afasta.
O pavor da peste por tudo se alastra.
FAUSTO (vê que amanhece e que há pessoas caminhando curvadas):
– Que terrível desgraça! Esse povo definha…
Tal infelicidade é maior que a minha.
Quem me dera o poder de ajudar e salvar…
NÊMESIS:
– E tu não tens poder?
Teu servo não está preso a ti por um contrato
que faz com que te deva obedecer?
FAUSTO:
– Eu te ouço, Nêmesis, Destino, obrigado!
– Vem, Mefistófeles, e atende ao meu chamado!
MEFISTÓFELES (aparece):
– Por que me chamas?
FAUSTO:
– Porque és obrigado a vir me obedecer.
Quero ajudar aqui. Emprestas teu poder?
MEFISTÓFELES:
– Onde Nêmesis põe sua mão,
o diabo não tem poder de ação.
Não há salvação para essa triste sorte,
nada que vença a peste ou vença a morte.
NÊMESIS:
– É mentira. Eu percebo teu veneno!
Dize o que sabes, vamos, eu te ordeno!
FAUSTO:
– Oh, estes pobres seres… Como irei salvá-los?
MEFISTÓFELES:
– Bem, eu sei de um remédio para libertá-los.
O elixir milagroso. É a única saída.
Mas custa doze anos de tua própria vida!
FAUSTO:
– Pois darei doze anos de minha própria vida.
Para dar sua luz, a vela é consumida.
Portanto, faz vir esse elixir!
MEFISTÓFELES:
– Tenho de obedecer.
Porém, mais tarde, hás de te arrepender. (ele sai)
FAUSTO:
– Coragem, pobre gente! Eu ouvi vossa voz
e vos hei de salvar de vossa dor atroz.
MEFISTÓFELES (volta com um frasco na mão):
– Eis aqui o elixir…
FAUSTO: – Ei-lo aqui, afinal!
Que ele vos cure a todos do terrível mal. (vai dando o remédio a todos)
Logo, logo estareis curados.
(a Nêmesis): – Ó Nêmesis, muito obrigado!
Peço que não te vás embora.
Oh, que milagre!
Eu sinto agora uma real felicidade
em poder livrar alguém da enfermidade!
NÊMESIS:
– Fizeste o bem com a força do mal que foi submetido.
Teu poder de amor fará a treva ser redimida!
UMA DOENTE:
– Homem nobre e altruísta, nós te agradecemos!
UM DOENTE:
– Muito obrigado pelo que recebemos!
MEFISTÓFELES:
– Como é tolo esbanjar esse elixir a esmo,
dando aos outros em vez de pensar em si mesmo!
FAUSTO:
– Silêncio! Fora daqui! Tu nunca entenderás
a alegria que esta serenidade traz.
MENDIGO:
– Estou gelado… Ai, este frio é tanto…
FAUSTO (dá-lhe o seu manto):
– Toma, aquece-te agora com meu manto.
MÃE com FILHO:
– Meu filho está com fome e sem alento.
FAUSTO (dá-lhe um saquinho com moedas):
– Compra com este ouro bastante alimento.
VELHO:
– Que desgraça! Minha casa foi destruída!
FAUSTO:
– Pelo meu servo uma nova será construída. (Mefistófeles urra de raiva)
MENINA:
– Meus pais morreram, e eu fiquei sozinha…
FAUSTO (dando-lhe a mão):
– Pois tu serás agora filha minha.
VELHA:
– Sou uma pobre anciã… Mal posso andar…
FAUSTO (dando-lhe a outra mão):
– Vem comigo. Eu sei que hás de sarar.
HOMEM (cai de joelhos carregando um fardo pesado):
– Eu não aguento. Estou quase desmaiado…
FAUSTO:
– Mefistófeles, vem e carrega este fardo!
MEFISTÓFELES (obedece com raiva e grita):
– Pelo Estígia e o Aqueronte! Agora estou saturado!
Também estou cansado e extenuado!
(a Fausto):
– Oh, enxofre, lixo e peste!
Tu abusas do pacto que fizeste!
Tu não me escaparás! Cuidado! Cuidado!
Com diabólica astúcia eu hei de te apanhar!
É nesta noite ainda que te vou dominar! (saem)
NONO QUADRO
Rua em Praga.
João-Linguiça, Wagner; Fausto, Mefistófeles; Bruxas, Fúrias, Diabos; Espírito Bom; Espíritos do inferno; Todos os que foram ajudados por Fausto.
JOÃO-LINGUIÇA:
– Eu deixei doutor Fausto; por pouco não me acabo!
Não é que ele vendeu mesmo a alma ao diabo!
Por isso me afastei
e nova vida em Praga comecei.
Eu sou guarda-noturno. De dia posso descansar.
E, com aqueles diabinhos, nada mais tenho a tratar.
Mas, atenção! O sino já vai tocar. (ouvem-se 10 badaladas ao longe, e ele canta):
“Ouvi, senhores, eu vos digo agora
o nosso sino já bateu 10 horas.
Dez mandamentos Deus instituiu.
Obedecei ao que ele vos pediu.” (ele proclama):
– O sino já bateu as 10! O sino já bateu as 10!
WAGNER (com um livro na mão):
– Não é nada difícil obedecer.
Leio meu livro e pronto:
sei de tudo e sou um letrado.
Só não quero é ser incomodado
por quem passar ao meu lado. (reconhece João-Linguiça):
– Mas, que fazes tu aqui? És João-Linguiça, o pobre coitado.
JOÃO-LINGUIÇA:
– Sou guarda-noturno. Não sou pobre coitado.
Aviso as horas na noite escura até a beirada da manhã.
Mas, olha só! Não és o velho super-flan?
Onde está teu patrão, que não está do teu lado?
WAGNER:
-Ele está enredado na trilha que escolheu:
uma busca sem fim.
Eu acho que escolhi a trilha do saber e da virtude
e só quero cuidar disso, quer dizer, cuidar de mim.
Eu mereço a celeste recompensa.
JOÃO-LINGUIÇA (consigo mesmo):
– É o que ele pensa…
Vaidoso e egoísta como ele só.
(a Wagner):
– Olha que esse teu saber, da forma como o vives,
é lixo e pó! (esbarra em Wagner que deixa cair o livro, levantando pó)
(Fausto aparece em farrapos, e vê que é seguido por Mefistófeles.)
FAUSTO: – Tu estás aqui? Nada mais temos a tratar!
MEFISTÓFELES: – Renunciaste a tudo, deste tudo e esqueceste nosso trato. A porta do inferno já está aberta à tua espera.
FAUSTO: – Eu nada receio e nada tenho. Sou livre! E o prazo ainda não se esgotou. Só se passaram 12 anos.
MEFISTÓFELES: – Então já esqueceste os 12 que deste em troca? Está na hora. Escuta só as vozes! (Mefistófeles sai)
VOZES: – Fauste, Fauste, accusatus es!
JOÃO-LINGUIÇA (canta, depois que o sino toca ao longe):
“Ouvi, senhores, eu vos digo agora:
o nosso sino já bateu 11 horas!
Onze apóstolos fiéis ao Senhor,
e o outro foi o traidor.”
– O sino já bateu as 11! O sino já bateu as 11!(sai)
FAUSTO:
– Só mais uma hora eu tenho de vida.
Ah, se a clemência me fosse concedida…
VOZES: – Fauste, Fauste, judicatus es! Praepara te ad mortem.
FAUSTO: – Judicatus? Condenado! Qual será minha pena? (vê Wagner)
WAGNER (não o reconhece):
– Credo! Um mendigo em hora tão tardia!
-Que fizeste durante o dia?
Tens preguiça de trabalhar?
De mim tu mereces apanhar! (avança para Fausto)
FAUSTO:
– Wagner! Sou eu! Olha a minha figura!
Já fiz tanto por ti, criatura…
WAGNER:
– Que horror! Não quero saber de quem andou no pecado
e fez pacto com o diabo.
FAUSTO:
– Tenho sede, Wagner. Dá-me de beber.
WAGNER:
– Não fica bem para mim. Todo mundo vai ver.
FAUSTO:
– Não me ajudas? Nesta mesma noite serei julgado.
WAGNER:
– Adeus, senhor, eu não te fui apresentado.
JOÃO-LINGUIÇA: – Acabei de ver meu antigo patrão, o doutor Infausto, que vendeu a alma ao diabo. Ele fica aí, vagando pelo mundo como um mendigo, e consta que hoje será devorado pela goela do inferno. Coitado! (ouve o sino ao longe) Opa, a meia-noite já vem. (canta):
“Ouvi, senhores, eu vos digo agora:
o nosso sino já bateu 12 horas.
Fogo e carvão tratai de guardar.
O diabo já vem o Fausto buscar.”
– O sino já bateu as 12! O sino já bateu as 12!
WAGNER:
– Ao ver um castigo, o homem justo sente prazer.
Acho que num cantinho eu vou-me esconder,
para apreciar o que acontece a um pecador.
Será um exemplo educador. (ele se esconde num canto)
FAUSTO: – Meu tempo terminou. Logo ouvirei meu veredito.
VOZES: – Fauste, Fauste! In aeternum damnatus es!
FAUSTO: – Condenado por toda a eternidade…
MEFISTÓFELES (aparece entre trovões e lhe mostra o papel do pacto):
– Fausto, eis aqui o pacto combinado.
Agora não sou mais teu criado.
BRUXAS, FÚRIAS e DIABOS (surgem com uivos e matracas):
– Céus, rachai! Estrelas, rebentai!
Montanhas, desmoronai também!
– Ai de ti, Fausto! Vem conosco, vem!
(O Espírito bom surge; luz clara, música. Os espíritos maus recuam.)
ESPÍRITO BOM (para Fausto):
– Fausto!
Somente a lei te condenou.
Mas a corda do amor te segurou.
(a Mefistófeles):
– Não és tu, Mefistófeles,
quem faz o mundo ser impulsionado!
É a busca! É o germe da vontade
pela força do amor iluminado!
O amor é que salva quem foi condenado!
MEFISTÓFELES:
– Ele não é teu. É meu. Tu não o levas.
Pois ele se comprometeu com as trevas.
ESPÍRITO BOM:
– Aquele que quer subir e que ao céu se eleva
deve primeiro espelhar-se na treva.
Fizeste tua parte. Agora,
vai-te embora!
MEFISTÓFELES (para as Bruxas, as Fúrias e os Diabos):
– Socorrei-me! Fui atraiçoado!
BRUXAS, FÚRIAS e DIABOS (precipitam-se sobre Wagner):
– Então é este que vai ser levado!
WAGNER:
– Mas que ideia é essa?
Largai-me depressa!
Nada tenho convosco, afinal.
Eu me mantive distante do mal.
MEFISTÓFELES:
– Hipócrita!
Pensaste só em ti com toda a tua ciência.
Virás conosco e farás penitência!
(Saem com ruídos. Da escuridão vai aparecendo Fausto como figura luminosa.)
ESPÍRITO BOM:
– Os sentidos, em sua escuridão,
eu transformei em estrela cintilante,
e a dureza do carvão
em espada de diamante.
E os membros do escorpião
eu transformei em penas de asas,
em asas de águia,
para alcançar a altura na amplidão.
(Vai conduzindo Fausto para um local mais alto. Os que foram ajudados por Fausto aparecem dos lados e falam.)
TODOS:
– Quem ilumina seu modo de agir
por caminhos retos irá seguir.
Quem aquece seus atos com amor
e ouve o conselho da luz interior,
quem atua assim desse modo profundo,
esse compreende o significado do mundo!
Esse ilumina o mal em sua escuridão!
Fausto, devido a nós, terás a redenção!
FAUSTO:
– Ó Deus, durante toda a minha vida,
minha busca não teve fim.
E o que me fez buscar assim, em tal medida,
eras Tu mesmo,
em mim!
F I M
Sobre a escolha e envio da peça
Para escolher uma peça com objetivo pedagógico, estude bem que tipo de vivência seria mais importante para fortalecer o amadurecimento de seus alunos. Será um drama ou uma comédia, por exemplo. No caso de um musical, é importante que a classe seja musical, que a maioria dos alunos toquem instrumentos e/ou cantem. Analise também o número de personagens da peça para ver se é adequado ao número de alunos.
Enviamos o texto completo em PDF de uma peça gratuitamente, para escolas Waldorf e escolas públicas, assim como as respectivas partituras musicais, se houver. Acima disso, cobramos uma colaboração de R$ 50,00 por peça. Para outras instituições condições a combinar.
A escola deve solicitar pelo email [email protected], informando o nome da instituição, endereço completo, dados para contato e nome do responsável pelo trabalho.