10 de outubro de 2017

1 – A primeira escola Waldorf, Rudolf Steiner e a Antroposofia

 

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Texto extraído do livro Pedagogia Waldorf 100 anos+

Foto de Emil e Berta Molt, patronos da primeira escola Waldorf

 

“Nossa mais elevada tarefa deve ser a de formar seres humanos livres, que sejam capazes de, por si mesmos, encontrar propósito e direção para suas vidas.” Rudolf Steiner

Em 2019 comemoramos 100 anos desde a criação da primeira escola onde foi implantada a Pedagogia Waldorf. Desde a fundação da primeira escola Waldorf, este movimento vem se expandindo. Hoje são cerca de 1270 escolas Waldorf de Ensino Fundamental e/ou Médio em 80 países e 1928 Jardins de Infância Waldorf filiados a federações, em 70 países, nos 5 continentes (1). Embora esta pedagogia tenha nascido na Europa, hoje ela é aplicada tanto na Rússia como nos EUA, em favelas da América do Sul e em Israel, no Brasil, nas novas democracias da Europa Oriental, no Nepal, na Índia, na China, no Egito, no Japão, no Quênia e em muitos outros países, o que demonstra ser uma pedagogia que se pode adaptar a qualquer cultura. Isso ocorre porque ela se baseia em um profundo conhecimento do ser humano, e procura oferecer aquilo de que a criança precisa em cada etapa do seu desenvolvimento, respeitando sempre sua maturidade. Isso torna essas escolas mais interessantes e acolhedoras para as crianças.

Temos consciência de que todo conhecimento pedagógico gerado neste período pode ajudar a humanidade, e isso exige que olhemos para o futuro, para os próximos 100 anos. Sabemos que nossa sociedade tem enormes desafios pela frente para tornarmos nossa vida sustentável neste planeta, e acreditamos que só uma educação humanizadora será capaz de nos preparar para isso. A Pedagogia Waldorf pode dar uma importante contribuição para alcançarmos este objetivo, e toda pessoa que estuda e atua na área da educação deveria ter a oportunidade de conhecer seus princípios e práticas.

A Pedagogia Waldorf faz parte de um grupo de atividades humanas que se desenvolveram a partir da Antroposofia (do grego “anthropos”, homem, e “sophia”, sabedoria), uma linha filosófica concebida pelo filósofo austríaco Rudolf Steiner, e que nasceu no meio do caos social e econômico que se seguiu à primeira guerra mundial.

Em novembro de 1918 terminou a primeira guerra mundial, e grande parte da Europa estava destruída. Com o impulso de derrubar os velhos modelos sociais vigentes até então, pessoas que se esforçavam por construir a Europa do futuro procuravam novas orientações. Um desses homens foi Emil Molt, diretor da fábrica de cigarros Waldorf-Astória, de Stuttgart, na Alemanha. Ele e sua esposa Berta procuraram Rudolf Steiner, o fundador do movimento antroposófico, que naquela época era um dos líderes do movimento por uma renovação social, e pediram-lhe que os ajudasse a formar uma escola para os filhos dos trabalhadores da fábrica, e assumisse sua organização pedagógica. Seis meses mais tarde, em 7 de Setembro de 1919, abriram-se as portas da primeira escola baseada na pedagogia criada por Rudolf Steiner, a Escola Waldorf, com 12 professores e 256 alunos distribuídos por 8 classes. Assim, foi uma escola criada para o povo, sendo revolucionária desde sua criação, pois não havia notas nem repetição de ano, e não separava meninos e meninas, o que era comum naquela época. Enquanto o materialismo era a base dos conceitos naquele tempo, assim como é até hoje, Steiner propôs uma educação baseada numa visão holística, que busca o desenvolvimento físico, mental e espiritual do homem, e sua formação como indivíduo livre e autônomo. As escolas Waldorf foram perseguidas por todas as formas de ditadura e autoritarismo.

Geralmente cada país tem sua federação de escolas Waldorf, criada e mantida pelo conjunto das escolas, e que tem o objetivo de zelar pela Pedagogia no país, orientar as escolas, promover eventos, promover e orientar cursos para formação de professores, representar as escolas perante os órgãos governamentais etc. Assim, temos a Federação das Escolas Waldorf do Brasil, fundada em 1998, que você pode conhecer em www. fewb.org.br. O nome Waldorf é uma marca registrada que só pode ser utilizada pelas escolas Waldorf filiadas à FEWB.

É importante ressaltar que as Escolas Waldorf, com poucas exceções e alguns pequenos Jardins de Infância, são associações comunitárias sem fins lucrativos, criadas para este fim por grupos de pais e professores interessados nesta pedagogia. Não se trata de uma franquia comercial. O fato de pais e mães dedicarem seu tempo e energia ao esforço necessário para se criar uma escola nova, é um parâmetro importante para avaliarmos o quanto a Pedagogia Waldorf vem se colocando como um caminho reconhecido e desejado para a educação, por milhares de famílias em todo o mundo.

No Brasil a primeira escola Waldorf foi fundada em São Paulo em 1956, com o nome de Escola Higienópolis, e depois de alguns anos passou a se chamar Escola Waldorf Rudolf Steiner. Ela começou atendendo principalmente filhos de europeus de língua alemã, e nessa época não havia ainda literatura sobre essa pedagogia emp ortuguês. A partir da década de sessenta começou um movimento de abrasileiramento da Pedagogia Waldorf, inclusive com adaptações às nossas diversas culturas regionais, de acordo com a localização de cada escola. Hoje, há grupos de estudo e cursos específicos sobre este tema para que tenhamos uma Pedagogia Waldorf brasileira autêntica, inclusiva e diversa, que valorize os saberes de cada comunidade e promova o diálogo intercultural. Uma pessoa que teve um papel decisivo no início deste processo foi a poetisa Ruth Salles (1928-2021), que em 1966 conheceu a Pedagogia Waldorf e matriculou dois de seus filhos na Escola Waldorf Rudolf Steiner, começando logo a colaborar com os professores. Selecionou mais de 200 textos de autores de língua portuguesa, condizentes com a pedagogia. Revisou e recriou a tradução de mais de 400 poemas e escreveu mais de uma centena de poemas para uso pedagógico. Também compôs músicas para peças de teatro e poemas, além de letras para melodias já existentes, e colaborou com a tradução, revisão e redação final de dezenas de livros. Trabalhou criando, traduzindo e adaptando mais de 120 textos de teatro para todos os anos do ensino fundamental, inclusive cerca de 40 peças clássicas, e até óperas, para 8° ano, entre inúmeros outros trabalhos.

Hoje há no Brasil 266 escolas Waldorf entre filiadas à FEWB e novas iniciativas. Totalizam 137 atendendo a Educação Infantil (2), 53 escolas atendendo até o Ensino Fundamental I, 38 atendendo até o Ensino Fundamental II, 21 vão até o Ensino Médio, e há também 34 organizações sociais, creches e escolas públicas atendendo a Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e contraturno. Estão distribuídas em 20 estados e no Distrito Federal, atendendo cerca de 20.000 alunos(as), com cerca de 1.800 professores(as) especializados(as) e 1.200 auxiliares (3).

Há professores especialistas formados que não têm uma escola Waldorf em seu município ou região para atuar, e então lecionam em escolas convencionais adequando o que é possível, em benefício de seus alunos. Também há muitos professores que aprendem elementos desta pedagogia em cursos livres, e conseguem com isso enriquecer sua prática pedagógica em escolas convencionais e em organizações sociais, tanto públicas quanto privadas. A comunidade de educadores que se identificam com a Pedagogia Waldorf aumenta a cada dia.

A formação de professores especializados na Pedagogia Waldorf no Brasil conta atualmente com 23 núcleos regionais, supervisionados pela FEWB, que mantém um fórum para seu acompanhamento e integração, com encontros periódicos onde seus coordenadores trocam experiências e buscam manter um processo de aprendizagem coletiva para melhorar sempre a qualidade dos cursos. Em 2018 foi inaugurada a Faculdade Rudolf Steiner, em São Paulo, que oferece formação superior em Pedagogia ampliada pela Antroposofia, com opções de pós- graduação em Pedagogia Waldorf para a educação infantil, ensino fundamental ou médio, entre outras opções e cursos de extensão.

Realizam-se frequentemente congressos nacionais e internacionais. Durante este século que se passou desde que a primeira escola Waldorf foi criada, milhares de educadores vêm contribuindo para o desenvolvimento dessa pedagogia em todo o mundo, inclusive no Brasil. Vários deles, além de Steiner, são citados neste livro. Este constante impulso de estudo e renovação segue a orientação de Steiner no sentido de que no mundo moderno não devemos nos basear em crenças, mas sempre procurar analisar os conceitos propostos e verificar sua coerência de acordo com nossos próprios parâmetros.

“Inicialmente a escola Waldorf surgiu como uma escola bem genérica – poder- se-ia dizer até como uma escola humanitária constituída do proletariado; e foi somente pelo fato de a pessoa que teve a primeira ideia da escola ser também um antropósofo que essa escola se tornou uma escola antroposófica. Aqui reside, pois, o fato de ter surgido de uma raiz social a estrutura pedagógica que, em relação a todo o espírito do ensino, em toda a sua metodologia de ensino, busca sua raiz na Antroposofia – porém jamais no sentido de possuirmos uma escola antroposófica, e sim por acreditarmos que a Antroposofia, em qualquer momento em que se faça necessário, será capaz de renegar a si própria para que essa escola não se torne uma escola de elite, uma escola sectária ou então algum tipo de escola especial, e sim uma escola comum, capaz de tornar- se uma escola para a humanidade” (4) Rudolf Steiner

Hoje, a influência da Pedagogia Waldorf transcende o espaço das escolas. Com base nos seus conceitos foi criada em 1999 a Aliança pela Infância (Alliance for Childhood), movimento que hoje abarca organizações de diversas áreas e correntes filosóficas, com representações em países da Europa, Américas, África e Ásia, inclusive no Brasil, todas unidas em defesa da infância, pois acreditam que a infância, parte essencial da existência de cada pessoa, necessita de proteção e cuidados. Tem como missão sensibilizar a sociedade sobre a importância de uma infância saudável para o desenvolvimento de seres humanos capazes de construir uma sociedade fundada na cultura de paz, na sustentabilidade ambiental e no respeito a todas as diferenças (5).

Outra iniciativa de impacto social criada a partir da Pedagogia Waldorf é a Pedagogia de Emergência, que começou a ser desenvolvida em 2006, quando o professor Waldorf alemão Bernd Ruf vivenciou a situação traumática a que eram submetidos os jovens libaneses afetados pela guerra entre Israel e o Hezbollah. A partir dessa experiência, liderou a formação de um grupo de pedagogos e terapeutas que se dispuseram a realizar um atendimento de emergência para ajudar a cicatrizar as feridas emocionais das crianças e jovens da região, e assim evitar que seus traumas se tornassem crônicos. Desde então, o movimento cresceu e atua no atendimento a vítimas de conflitos e catástrofes nos mais diversos países, para que crianças feridas emocionalmente recuperem a confiança nelas mesmas, no outro e no mundo, e sejam capazes de, um dia, atuar para transformá-lo num lugar melhor. Em 2016 foi criada a Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil, que realiza capacitação de educadores que lidam com crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social, já tendo atuado em intervenções no Brasil e em outros países (6).

Nestas intervenções são utilizados vários princípios e práticas da Pedagogia Waldorf, que os professores utilizam no dia a dia das escolas. É estruturado um ritmo para as atividades cotidianas, pois isso traz mais segurança. Nele é estabelecido um tempo para brincar, são propostos exercícios rítmicos, euritmia, esportes, jogos e danças, e atividades artísticas, como pintura, desenho, teatro, música etc, que podem ajudar as crianças e jovens a lidar com seus traumas. O principal objetivo é estabelecer vínculos com as crianças que estimulem confiança e estabilidade.

“Por ocasião de uma catástrofe, é comum que muitas crianças enfrentem sentimentos de desamparo, solidão e abandono. Sua relação com o próprio corpo, com o mundo e com as outras pessoas sofre um desajuste devido ao trauma. Para crianças e jovens traumatizados, estabelecer vínculos e relações é, portanto, uma das mais importantes tarefas pedagógicas (7)”
. Bernd Ruf

Desde 2006 já ocorreram mais de 50 intervenções da pedagogia de emergência em países que sofreram com grandes catástrofes e guerras, como Japão, Sumatra, Faixa de Gaza, Haiti, Nepal, Curdistão/Iraque, China e Quênia entre outros. As ações internacionais são coordenadas pela Associação Amigos da Educação Waldorf (8), sediada na Alemanha, que apoia iniciativas ligadas à pedagogia Waldorf em todo o mundo.

 

RUDOLF STEINER E A ANTROPOSOFIA


Rudolf Steiner nasceu em 27 de fevereiro de 1861 em Donji Kraljevec, na região chamada Medjimurje, Croácia, entre a Hungria e a Slovênia, no então Império Austro-Húngaro, e realizou em Viena seus estudos superiores de ciências exatas. Em 1883 foi convidado a trabalhar no Arquivo Goethe-Schiller, em Weimar, na Alemanha, para se dedicar à edição dos escritos científicos de Johann Wolfgang von Goethe – que se tornou uma importante influência em sua obra – desenvolvendo a partir daí um grande interesse, e consequente atividade literário filosófica. Como resultado deste trabalho, escreveu em 1886 Linhas Básicas de uma Teoria do Conhecimento da Concepção Goetheanística do Mundo, com Referência Especial a Schiller. Em 1891 publicou sua tese de doutorado, intitulada Verdade e Ciência, e em 1894 publicou sua obra básica: A Filosofia da Liberdade. Após alguns anos trabalhando como redator literário em Berlim, passou a se dedicar a uma intensa atividade como escritor e conferencista, com o objetivo de expor e divulgar os resultados de suas ideias e pesquisas, inicialmente no âmbito da Sociedade Teosófica e mais tarde no da Sociedade Antroposófica, por ele fundada. Steiner usava como meio de pesquisa o pensamento treinado pela meditação, que lhe permitia observar de forma objetiva e consciente o mundo para além da matéria. Segundo Waldemar Setzer, Steiner baseou suas pesquisas na compreensão, e não nos sentimentos, elaborou uma visão de mundo que lhe é própria, tendo dado contribuições filosóficas e práticas absolutamente originais, que não remontam a ninguém (9).

O termo Antroposofia foi usado por Steiner pela primeira vez quando proferiu a palestra “De Zaratustra a Nietzsche – História da evolução da humanidade com base nas cosmovisões desde os tempos primordiais até a atualidade, ou Antroposofia”. Ele escreveu 28 livros e ministrou mais de 5.000 conferências, publicadas em cerca de 330 volumes, realizando grandes contribuições para os campos das artes, da organização social, da pedagogia, da psicologia, da medicina, da farmacologia, da agricultura, da arquitetura, da pedagogia terapêutica para crianças com deficiência etc, sendo os princípios da Antroposofia adotados em instituições de todo o mundo. Rudolf Steiner viveu profundamente comprometido com os destinos da Terra e do ser humano e faleceu em Dornach, na Suíça, em 1925.

Em português, já existe um grande acervo de livros sobre a Antroposofia, a Pedagogia Waldorf e outras áreas das atividades humanas que a Antroposofia abrange, tanto de autoria de Rudolf Steiner quanto de outros autores, publicados por algumas editoras especializadas.

Bibliografia

  1. Dados de 2022, da Friends of Waldorf Education – https://www.freunde-waldorf.de/en/
  2. Muitas escolas começam com a educação infantil e vão crescendo ano a ano, conforme a demanda da comunidade e as condições estruturais.
  3. Informações fornecidas pela FEWB – Federação das Escolas Waldorf do Brasil, em outubro de 2023.
  4. STEINER, Rudolf. A Cultura atual e a Educação Waldorf, 2014 – p 15
  5. Aliança pela Infância – http://aliancapelainfancia.org.br/
  6. Pedagogia de Emergência – http://pedagogiadeemergencia.org
  7. RUF, Bernd. Destroços e Traumas – embasamentos antroposóficos para intervenções com a Pedagogia de Emergência, 2018, pg 132
  8. Associação Amigos da Educação Waldorf – https://www.freunde-waldorf.de/en/
  9. SETZER, Waldemar. Comentários sobre o capítulo “Rudolf Steiner” do livro 50 Grandes Educadores, 2008.

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