7 – Antropologia

 

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O desenvolvimento humano em setênios

por Rubens Salles

Embora o ser humano nasça completo em sua estrutura, com corpo, alma e espírito, e com as capacidades anímicas de pensar, sentir e querer, o desenvolvimento de cada um destes elementos se dá em etapas bem definidas. A Antroposofia divide o desenvolvimento do homem em períodos de, aproximadamente, sete anos, os setênios.

Dentro destes períodos há defasagens entre indivíduos e entre os sexos, mas mesmo assim faz sentido considerá-los. Até os 21 anos, época em que nosso desenvolvimento físico se completa, a alma e o espírito estão em constante adaptação com as possibilidades oferecidas pelo corpo físico. Segundo a visão antroposófica, a partir do terceiro setênio há um maior desenvolvimento das qualidades da alma até os 42 anos, que será a base para o maior dos desenvolvimentos do ser humano, o espiritual, que leva novamente 21 anos, dos 42 aos 63 anos, quando ele passa a viver como ser plenamente presente, em um ciclo de plenitude e serenidade. É com esta visão do desenvolvimento humano que a Pedagogia Waldorf projeta a educação.

As características dos setênios

Setênios Focos do desenvolvimento em cada setênio
de 0 a 7 anos querer
de 7 a 14 anos sentir
de 14 a 21 anos pensar
de 21 a 28 anos sensação
de 28 a 35 anos razão
de 35 a 42 anos consciência
de 42 a 49 anos coragem
de 49 a 56 anos interiorização
de 56 a 63 anos sabedoria
10° acima de 63 anos plenitude

 Fonte: Steiner 2007 – Organização nossa

Podemos caracterizar os três primeiros setênios da seguinte maneira:

1º setênio – O período entre o nascimento e a troca dos dentes.
2º setênio – O período entre a troca dos dentes e a puberdade.
3° setênio – O período entre a puberdade e a maioridade.

O longo período necessário para preparar o ser humano para a vida, não tem paralelo no mundo animal devido a ele possuir um espírito individual, um Eu que deve fazer um aprendizado de longos anos em convívio com outros homens.(1)

Sabemos que no mundo contemporâneo o homem precisa estar predisposto a aprender durante toda a vida, e por isso é essencial que sua educação lhe conceda este estímulo. No entanto, um cuidado fundamental da Pedagogia Waldorf é que cada estímulo chegue à criança no momento mais adequado, em função de seu desenvolvimento e de sua prontidão natural para aproveitá-lo da maneira mais espontânea, eficiente e sadia. O desenvolvimento humano tem suas necessidades, etapas e momentos próprios, assim como uma planta, que não vai crescer mais rápido se for puxada pelas folhas.

 

O primeiro setênio

“O sublime e grandioso na contemplação das crianças é o fato de que estas acreditam na moral do mundo, acreditando com isso que se possa imitar o mundo.”                                                                                Rudolf Steiner

Foto: Escola Waldorf Casa Amarela

O momento do nascimento significa a união definitiva entre o corpo e os elementos anímicos e espirituais do novo indivíduo. Ao nascer, tudo na criança pequena está relacionado com seu corpo e suas forças vitais, e suas capacidades anímicas de querer e sentir estão profundamente integradas. Sua consciência é bem reduzida e sua vontade muito forte. Quando um bebê chora e esperneia por estar com fome, seu sentir está agindo em uníssono com seu querer, sua vontade de agir. Primeiro a criança quer conhecer o próprio corpo, e depois o mundo externo que a rodeia. Inconscientemente ela vai aos poucos tomando posse do seu corpo e adquirindo mais habilidade e destreza.

Assim, nos primeiros anos de vida, esse querer da criança, que brota de suas mais profundas necessidades, é a porta de entrada para o aprendizado, o que a própria criança nos mostra através de suas reações. Quando ela imita, ou tenta imitar, o que o pai ou a mãe está fazendo, está nos mostrando que é este o caminho para seu desenvolvimento nesta fase. Frans Carlgren e Arne Klingborg, nos esclarecem que “para a criança a imitação é tão importante quanto a respiração. A criança inspira as impressões sensoriais, e a imitação segue como a expiração”.(1)

Embora não guardemos lembrança consciente dos 3 primeiros anos de nossas vidas, trata-se de uma fase fundamental para nossa formação, pois neste período as impressões sensoriais da criança têm um efeito plasmador direto sobre suas forças vitais e seu corpo. Sofremos então grande influência do ambiente em que vivemos e das pessoas com quem convivemos, enquanto desenvolvemos as capacidades fundamentais de andar, falar e pensar.

Ao final do primeiro ano de vida, a criança adquire a posição ereta e aprende a andar, conquistando o espaço físico na sua verticalidade, com suas 3 dimensões: em cima e em baixo, direita e esquerda, na frente e atrás. A partir deste momento se inicia uma nova fase, que é o aprendizado da língua. A criança aprende a ouvir e a falar e com o domínio da língua conquista o espaço social, entre o Eu e o próximo. Com a conquista do espaço social começa então a desenvolver o pensar, e se percebe então como indivíduo.

O perceber da criança é um processo ativo, a partir de seu interesse pelo mundo exterior. Para a impressão se transformar em percepção é posto em atividade, a partir de seu interior, algo que a leva ao encontro da impressão exterior. Uma criança com deficiência intelectual recebe do exterior o mesmo número de impressões que uma criança normal, porém não demonstra possuir, ou tem em escala reduzida, o interesse ativo pelo mundo externo. Lievegoed considera que “este interesse ativo ainda resulta, na criança pequena, de uma necessidade, e não de uma vontade consciente, como é possível em idade mais avançada.”(2)

Devido ao fato de que, nesta fase, tudo no corpo da criança está em formação, as influências que emanam do meio ambiente social exercem efeitos profundos sobre sua organização física e psíquica, efeitos que a influenciarão durante toda vida adulta. Neste sentido é interessante considerar os casos estudados de crianças que na primeira infância foram criadas isoladas e convivendo mais com animais do que com humanos. Estas crianças, quando encontradas, praticamente não falavam, não sabiam sorrir e tinham adquiridos os hábitos e a posturas dos animais com os quais conviviam. Uma criança só consegue aprender a andar ereta se houver outro ser humano que ande, para ensiná-la. Isso ilustra muito bem a que ponto pode chegar o impacto do ambiente sobre a formação de um ser humano, e demonstra que sem convívio humano não há humanidade e não há indivíduo. Para Malson (apud Luca Rischbieter) a conclusão é clara: “Será preciso admitir que os homens não são homens fora do ambiente social, visto que aquilo que consideramos ser próprio deles, como o riso ou o sorriso, jamais ilumina o rosto das crianças isoladas”. Segundo Craemer, “todo ser humano nasce com a semente do riso, mas para que ela germine, precisa ser ‘regada’ pelo amor de outro ser humano”.(3)

Nesta fase, consideramos que toda educação é uma educação física, pois toda educação anímico espiritual na criança é fisicamente atuante. A falta de cuidados nesta fase da vida da criança, pode gerar distúrbios em sua saúde, no futuro, através de enfermidades metabólicas, gastrointestinais e nervosas. Como a criança não tem o intelecto desenvolvido, ela não consegue elevar a um nível de consciência o que recebe do mundo e elaborar alguma coisa. Assim, o que ela recebe do mundo se incorpora rapidamente à sua constituição orgânica. Até a troca dos dentes, a criança está realmente configurando seu organismo, e o mais importante é que ela se sinta confiante dentro de sua corporalidade. Ela precisa conseguir correr, saltar, escalar, equilibrar-se e sentir-se bem em seu corpo.

“Exatamente do mesmo modo como o falar surge do andar, do apalpar, do movimento humano, o pensar surge depois, a partir da fala. E é necessário que, durante a orientação auxiliar para o andar, embebamos tudo em amor; que durante o aprendizado da fala – pelo fato de a criança imitar interiormente o que se realiza ao seu redor – nos dediquemos a mais sólida veracidade; e que, assim, façamos predominar a clareza em nosso pensar ao redor da criança, para que esta, sendo integralmente um órgão sensório, reproduza internamente, no organismo físico, também o elemento espiritual com o qual possa extrair da fala um pensar correto”.(4) Rudolf Steiner

No que diz respeito ao impacto da educação na saúde futura da criança, é importante considerarmos
algumas polaridades entre a criança e o idoso, no quadro abaixo:

O recém-nascido e o idoso

Recém-nascido Idoso
Vitalidade máxima Vitalidade baixa
Corpo mole, elástico, plasmável Corpo ressecado, duro
Corpo com mais água Corpo com menos água
Fortes funções vitais e vegetativas Funções vitais e vegetativas reduzidas e sujeitas a estados patológicos
Consciência, intelecto e outras qualidades psíquicas fracas Consciência e intelecto muito fortes (desde que não prejudicados pela fraqueza física)

 Fonte: Lanz 2009, pg 17 – Organização nossa

Existe um cuidado muito grande na Pedagogia Waldorf para não “envelhecer” as crianças. Ao analisarmos o quadro acima, lembramos que a vida está diretamente vinculada à água, assim como já vimos que a mineralização é o oposto da vida. Nosso envelhecimento é a derrota de nossas forças vitais e vegetativas para as forças mineralizantes, que vão ressecando e enrijecendo nosso organismo, e essa redução de nossas funções vitais ocorre paralelamente ao aumento de nossa consciência e ao fortalecimento de nosso intelecto. Estudos antroposóficos, cujo detalhamento extrapola o objetivo deste trabalho, indicam que, quando a educação acelera o processo de intelectualização da criança, está consumindo forças vitais que farão falta na vida adulta. Falaremos um pouco mais sobre a relação da educação com a saúde no capítulo sobre Educação, Saúde e Estilo da Vida.

O mundo é bom

Nos jardins de infância Waldorf, a principal mensagem que se busca passar para as crianças no primeiro setênio é que o mundo é bom. O ambiente para as crianças deve ser muito tranquilo e amoroso, e o comportamento do professor precisa ser digno de ser imitado pelas crianças.

A criança pequena se caracteriza por estar totalmente aberta ao mundo. Tudo que vem dele ela aceita com confiança ilimitada, sem resistência anímica, e em sua ingenuidade ela vivencia o bem e o mal indistintamente. Conforme observa Lievegoed, “é pela imitação que ela aprende as coisas, adequadas ou impróprias, que constituem o comportamento humano. É por uma imitação mais sutil que ela cria o fundamento para sua moralidade futura”.(5)

Esta abertura a influências externas não tem paralelo em nenhuma outra fase da vida. A criança quer imitar, e é pela imitação que ela vai aprender o que é bom e o que é ruim. De forma inconsciente, absorve as impressões que percebe ao seu redor, e desta maneira forma seu modo de falar e de se comportar. Ela é permeável às mais diversas influências do ambiente e, como um grande órgão sensório, percebe todo o clima emotivo que a circunda, inclusive os sentimentos e o caráter das pessoas com quem convive.

Esta atitude já nasce com a criança. Ela não deve tê-la aprendido com os adultos, pois em nosso mundo é notável a presença da desconfiança, da insegurança e do medo.Segundo Luíza Lameirão “a imitação, portanto, é a primeira forma de aprendizado que o ser humano já traz consigo, por ainda estar imerso no mundo de onde proveio. Podemos dizer que a imitação é uma memória corporal que é vivida na inconsciência ou na semiconsciência”.(6) Assim, toda criança, em seu impulso de atuar neste mundo onde ela chegou, parte do pressuposto que ele é moral, digno de ser imitado.

“Antes da troca dos dentes a criança ainda está inserida no passado, ainda está preenchida por aquela dedicação que se desenvolve no mundo espiritual. Por isso é que também se entrega a seu mundo ambiente ao imitar as pessoas. Qual é, pois, o impulso fundamental, a disposição básica ainda totalmente inconsciente da criança até a troca dos dentes? É uma disposição muito bela, que também deve ser cultivada – aquela que parte da suposição, da suposição inconsciente de que o mundo inteiro é moral”.(8)   Rudolf Steiner

Assim, segundo a Pedagogia Waldorf, a primeira pergunta que um educador infantil deve se fazer é: Sou uma pessoa digna de ser imitada? Sou amoroso, compreensivo e paciente com as crianças? Tenho entusiasmo e dedicação pelo que faço? Sou coerente em minhas atitudes? Nesta fase, não é o que dizemos à criança que ela assimila, mas como nos comportamos diante dela. A forma pura e dedicada como a criança pequena se entrega ao mundo equivale à devoção de um homem religioso. Esta veneração natural pelo mundo que a cerca é que devemos aproveitar para mostrar à criança, sempre através de imagens, que “o mundo é bom”, e criar espaços para que possa explorá-lo em suas fantasias e brincadeiras.

 

Segundo setênio

O que de mais belo se pode proporcionar à criança na escola, para a vida mais tarde, é a ideia mais variada e abrangente possível do homem.                                      Rudolf Steiner

Vimos que, do ponto de vista da Pedagogia Waldorf, no primeiro setênio a “porta de entrada” para a educação é o querer da criança, e que seu aprendizado acontece, basicamente, por imitação. Já no segundo setênio, esta entrada se faz através do sentir, pois nesta fase o aprendizado efetivo ocorre a partir da vivência dos conteúdos. Depois da troca dos dentes, época que coincide com o início do ensino fundamental, a criança passa a dispor de novas faculdades. Enquanto no primeiro setênio, as representações mentais que a criança fazia quando ouvia uma história, duravam apenas enquanto a história era contada, agora passam a agir de forma mais constante, e passam a constituir o fundamento para a memória da criança(9). Nesta fase a criança está muito receptiva para imagens, e qualquer matéria deve ser apresentada primeiro sob a forma de imagens. A criança evolui durante este período em direção a um pensar cada vez mais abstrato, mas a transformação das imagens e fenômenos em conceitos e regras deve processar-se aos poucos.

“Se inocularmos na criança de nove a dez anos conceitos destinados a estar presentes no homem aos trinta, quarenta anos, então lhe inoculamos cadáveres conceituais, pois o conceito não vive junto com o homem enquanto este se desenvolve. Devemos oferecer à criança conceitos que no decorrer de sua vida possam transformar-se […] Agindo assim, estaremos inoculando na criança conceitos vivos. Portanto, na Pedagogia Waldorf, durante o segundo setênio, evitam-se as definições e conceitos decorados e trabalha-se com a caracterização”.(10)  Rudolf Steiner

Assim, o planejamento do ensino fundamental na Pedagogia Waldorf é feito traçando um caminho que leve da imagem ao conceito, da percepção à compreensão. Esta evolução em direção à conceituação deve acompanhar o desenvolvimento das potencialidades do aluno, de forma que seu interesse pela aula seja sempre mantido. Primeiro ele deve compreender os aspectos gerais, para mais tarde compreender as particularidades e as relações entre elas, e então ser capaz de elaborar sínteses através de seu pensamento. Assim, todos os conteúdos trabalhados a partir de imagens e vivências pelas crianças pequenas, serão elaborados novamente quando elas forem maiores, em termos conceituais e científicos. Esta visão de longo prazo permeia o planejamento do currículo, e a aprendizagem deve ter sempre a experiência como ponto de partida.

Jon McAlice afirma que “a passagem da imagem ao conceito, tal como se refere a Pedagogia Waldorf, é a base de desenvolvimento de um pensar que, livre de preconceitos, procura descobrir o mundo”(11). Se tentarmos nos lembrar de fatos marcantes que ocorreram na escola, em nossa infância, vamos perceber que o que nos marcou foram aqueles que nos tocaram pela emoção, pelo sentimento. Portanto, nesta fase, a principal “porta de entrada” para o aprendizado é a vivência emocional dos conteúdos, pois a criança aqui ainda não se relaciona naturalmente com uma abordagem puramente intelectual. Posteriormente, a memória fortalece-se através do uso da imaginação, e pode recriar o que havia sido percebido pelos sentidos e transformá-lo em termos conceituais.

Lanz também afirma que a conceituação precoce, na criança, é uma das causas da massificação da sociedade. Quanto menos se desenvolve a capacidade de abstrair, para se chegar ao conceito, mais se aceitam as ideias prontas. Numa crítica direta à educação convencional, o autor sustenta que “conceitos prontos, não digeridos, são uma das causas da massificação, pois não houve o esforço abstraidor individual da criança para chegar à meta final do conceito partindo das suas vivências de situações concretas”.(12)

A visão antropológica, que embasa a Pedagogia Waldorf, considera que o desenvolvimento humano evolui da inconsciência total do recém-nascido à consciência total do jovem de 21 anos, passando por uma época de “semiconsciência” que coincide com a do ensino fundamental, quando, por intermédio do adulto, a criança deve ter uma vivência subjetiva do mundo, a partir de suas próprias emoções, sentimentos e pensamentos.

O mundo é belo

A expectativa da criança saudável, no segundo setênio, é a de que o mundo seja belo. Seu grande entusiasmo natural deixa isso muito claro. Cabe ao educador o grande desafio de apresentar à criança um mundo digno de sua admiração, de forma artística e criativa, e com base em uma autoridade carinhosa. Esta autoridade, baseada no respeito e na admiração, deverá ser o esteio da educação em todo o segundo setênio. Enquanto a criança, no primeiro setênio, estava totalmente aberta para as influências do mundo a seu redor, a partir da troca dos dentes e até por volta dos 9 anos, ela passa a dispor de uma barreira entre seu mundo interior e o exterior, coberta pelo véu colorido de sua própria fantasia, de onde ela administra suas relações. O mundo exterior já não entra mais livremente, ele precisa conquistar a criança.

Lievegoed afirma que a criança “sente-se atraída pelas pessoas que pintam em palavras as imagens conceituais e cuja voz acariciante e enaltecedora é capaz de narrar uma história verdadeiramente bela”. Considera também que “para a criança, os problemas de seu reino infantil são extremamente sérios, constituindo um treino para a verdadeira vida posterior. Assim como a criança pequena precisa de material para exercitar suas mãos, a criança em idade escolar precisa de material de exercício para toda a sua vida anímica, e não exclusivamente para o departamento do intelecto (ênfases do autor).”(13)

A criança no segundo setênio possui uma grande alegria e quer que o mundo lhe seja apresentado de forma lúdica e viva. A principal característica da fase entre os 7 e os 9 anos de idade é a grande disposição para aprender, sem a necessidade de emitir julgamentos. Nesta fase as crianças têm boa memória, muita capacidade de imaginação, gostam de atividades com repetições rítmicas e de narrativas que suscitem a fantasia.

Durante os 7 e 8 anos de idade, a criança ainda não separa seu “eu” do mundo. Ela se sente una com ele. É a partir dos 9 anos que ela começa a se perceber um “eu” separado de seu meio ambiente, e isso causa uma profunda mudança em seu comportamento. Torna-se mais insegura, revoltada e crítica, e pouco imaginativa. Começa inconscientemente a questionar a autoridade do professor. Antes, ela poderia amá-lo incondicionalmente, mas agora precisa conquistar um respeito genuíno em sua capacidade de lhe apresentar o mundo, e em sua força ética e moral. Passerini esclarece que:

“Nesta época ocorre a objetivação do sentir, traduzindo-se na vivência, primeiro esporádica, depois mais intensa, da solidão, a qual se estende até a puberdade. Perde-se o paraíso e, com ele, a ingenuidade. Ela enxerga o mundo como Adão e Eva, expulsos do Éden, vendo-o pela primeira vez (ênfases da autora)”.(14)   Sueli Passerini

Quanto mais essa perda é sentida pela criança, mais importante é o professor se tornar um centro de referência para ela. Por volta dos 10 anos, quando a criança já está mais adaptada à sua própria individualidade, começa uma fase mais harmoniosa que deverá durar até os 12 anos. Ela está muito ativa e interessada. Sua inclinação à crítica aumenta e seu respeito e veneração pelo adulto, e pelo professor, dependerá da autoridade moral destes. A falta de ter figuras humanas em quem depositar seu respeito faz com que o jovem vá em busca de seus ideais nos heróis fantásticos e fictícios, principalmente nos videogames, na televisão e no cinema. Lanz acredita que até os 14 anos o jovem é um idealista. “Eles esperam encontrar ideais e vê-los realizados; em primeiro lugar, ideais humanos. Se deixarmos de corresponder a esse idealismo por esquecimento, ignorância ou cinismo, algo será definitivamente destruído na alma do jovem.”(15) Antes da puberdade, a moral não deve ser ensinada de forma abstrata, a partir de preceitos teóricos; deve ser vivenciada. O bem deve agradar e o mal deve repugnar.

Outra característica importante da criança nesta época é sua maior capacidade de raciocínio, sua intelectualidade, que precisa então ser orientada e alimentada pelo professor. Com a proximidade da puberdade, os jovens perdem a graciosidade, e o prazer de se opor cresce.

“A profunda transformação interna que aparece como acompanhamento da puberdade física lança suas sombras à frente, mas também sua luz: há forças de entendimento e senso de responsabilidade, que o professor só precisa estimular, para ver surgir a beleza e a força desta etapa da vida! Solidão e autêntica amizade, egocentrismo e interesse abnegado por tudo, amor e morte – até então nas profundezas desconhecidas do sentimento – tornam-se experiências totalmente pessoais. Os sentimentos independentes despertam, transformam a relação com o próprio corpo, com o ambiente, com as ideias e ideologias; reflete-se tanto no interesse pelo mundo e na capacidade de amar, como também na necessidade de examinar causas e efeitos e de proferir julgamentos.”(16) Carlgren e Kingborg

O segundo setênio culmina com a puberdade, período de profundas transformações, tanto físicas, quanto emocionais e intelectuais. As professoras Cristina Ábalos, Dora Garcia e Vilma Paschoa afirmam que há uma gradativa perda da harmonia corporal, e uma grande energia se manifesta, principalmente nos meninos, que precisam de atividades apropriadas para lhe dar vazão. As meninas, por sua vez, mostram uma instabilidade em suas vivências sentimentais. Ao mesmo tempo, os jovens começam a querer conquistar o mundo, vivenciar o próprio poder, o que pode levar a projetos mirabolantes e irrealizáveis. Também querem saber como o mundo funciona e buscam compreender tudo a partir da razão e da lógica. Para lidar com todas estas transformações, a tarefa do educador é conduzir o jovem para a autonomia de julgamento, torná-lo capaz de julgar a realidade, para não ficar indefeso e sujeito a toda espécie de influências exteriores.(17)

 

Terceiro setênio

Neste período, que se inicia na adolescência e vai até a maioridade, a “porta de entrada” da educação é o pensar. O jovem agora quer realmente saber o que o professor conhece de cada assunto, e quer conquistar o mundo das ideias. Torna-se impiedosamente crítico e tem prazer em pôr em dúvida as opiniões dos outros e questionar seus motivos. Assim, o princípio da autoridade, que foi a tônica durante o segundo setênio, deixa de ter, portanto, qualquer valor durante o terceiro. Ao contrário, ao forçar qualquer autoridade sem possuir uma razão justa para isso, o professor provoca uma atitude de revolta.

O mundo é verdadeiro

Enquanto no primeiro setênio, na Pedagogia Waldorf, a mensagem da educação deve ser a de que o “mundo é bom”, e no segundo setênio, de que o “mundo é belo”, no terceiro setênio deve ser a de que “o mundo é verdadeiro”. É o período de algumas desilusões, quando o jovem percebe defeitos em pessoas onde antes não os notava, pois agora quer o mundo verdadeiro. A falta de compreensão e o fosso que se abre entre as gerações provêm, muitas vezes, da dificuldade que os adultos têm para corresponder à imagem ideal que os jovens inconscientemente deles fizeram. Sobre o terceiro setênio, Melanie Guerra, Alfredo Rheingantz e José Maiolino explicam:

“Neste período da vida e da aprendizagem, o julgamento próprio alavanca o espírito crítico, mudando as relações do jovem consigo mesmo e com o mundo. A revolta contra a autoridade e os valores existentes ganha força. A Pedagogia Waldorf estabelece fundamentos importantes para essa fase do desenvolvimento humano. O respeito à individualidade ajuda a transpor os aparentes abismos de incompreensão entre as gerações. Do 9º ao 12º anos cabe aos alunos assumir o compromisso do próprio aprendizado. Liberdade deve rimar com responsabilidade […] O princípio pedagógico fundamental aqui é o reconhecimento das qualidades do educador, especialmente sua capacidade intelectual e integridade moral”.(18)

Se a educação deste jovem tiver evoluído harmoniosamente, ele terá condição de enfrentar com mais equilíbrio esta fase turbulenta da puberdade, de vivenciar o mundo com uma atitude consciente e positiva, e aprender a pensar de forma autônoma através de uma compreensão científica. Segundo a Pedagogia Waldorf, é importante que seu pensar e sua consciência não tenham sido deturpados nos setênios anteriores, forçados a um amadurecimento precoce.

Todo trabalho de educação escolar, de acordo com a opinião de Lanz, deve culminar com a formação de jovens com um pensar dirigido por um querer sereno, um querer domado por um discernimento inteligente, tudo isso permeado com sentimentos fortes, mas não egoístas. O ideal que o educador deve almejar é que, “em vez de sair da escola com a cabeça cheia de informações e com o coração cheio de tédio, o adolescente deve ser formado no sentido de desejar, com todas as fibras de sua personalidade, dar uma contribuição para o progresso do mundo”.(19)

Segue um resumo feito por Lievegoed sobre as fases do desenvolvimento humano, segundo a visão antropológica que embasa a Pedagogia Waldorf:

1) Primeiro setênio: A relação mais importante com o mundo exterior acontece de fora para dentro, mas as experiências adquiridas nesta época ainda não são centralizadas no eu.

2) Segundo setênio: A criança é uma unidade fechada. Partindo do eu como centro, suas forças atuam até a periferia do seu pequeno reino. O mundo exterior já não entra mais sem entraves; apenas deixa impressões no limite desse reino, que são absorvidas somente depois de passar por um “processo de assimilação”.

3) Terceiro setênio: A direção principal é de dentro para fora. O mundo exterior precisa ser conquistado e transformado.

4) Maioridade: Somente agora é que o mundo exterior volta a penetrar em seu interior, pois o ser humano se abre para ele novamente, e a direção unilateral da atividade entra em equilíbrio. É isso que conduz à experiência de vida.(20)

 

Gráfico – O sentido das relações entre o ser humano e o mundo

 

Bibliografia

  1. LANZ, Rudolf. Pedagogia Waldorf, 1990, p. 34.
  2. CARLGREN, Frans e KLINGBORG, Arne. Educação para a Liberdade – a Pedagogia de Rudolf Steiner. 2006, p. 25.
  3. LIEVEGOED, Bernard. Desvendando o Crescimento. 1994, p. 38.
  4. CRAEMER, Ute, co-autora de ‘Transformar é Possível’ e autora de ‘Crianças entre Luz e Sombras’, Ed. Monte Azul, professora Waldorf, fundadora da Associação Monte Azul e da Aliança pela Infância do Brasil.
  5. STEINER, Rudolf. Andar, Falar, Pensar. 2007, p. 19.
  6. LIEVEGOED, Bernard. Desvendando o Crescimento. 1994, p. 13.
  7. LAMEIRÃO, Luiza Tannuri. Criança brincando! Quem a educa? 2007, p. 12.
  8. STEINER, Rudolf. A Arte da Educação I. 2007, p. 113.
  9. BIEKARCK, Peter. Vídeo Coleção Grande Educadores. 2009
  10. STEINER, Rudolf. A Arte da Educação I. 2007, p. 111.
  11. MCALICE, Jon e GÖBEL, Nana, et al. Pedagogia Waldorf – UNESCO, 1994, p. 32
  12. LANZ, Rudolf. A Pedagogia Waldorf. 1990, p. 54
  13. LIEVEGOED, Bernard. Desvendando o Crescimento. 1994, p. 64.
  14. PASSERINI, Sueli Pecci. O Fio de Ariadne: Um Caminho para a Narração de Histórias. 1998, p. 58.
  15. LANZ, Rudolf. A Pedagogia Waldorf. 1990, p. 46.
  16. CARLGREN, Frans e KLINGBORG, Arne. Educação para a Liberdade – a Pedagogia de Rudolf Steiner. 2006, p. 138.
  17. SALLES, Ruth. Teatro na Escola – vol.5. Orientações pedagógicas de Cristina M. B. Ábalos, Dora R. Zorsetto Garcia e Vilma L. Furtado Paschoa. 2007, p. 15.
  18. GUERRA, Melanie e RHEINGANTZ, Alfredo e MAIOLINO, José (orgs). A Pedagogia Waldorf – 50 Anos no Brasil: 2006, p. 26.
  19. LANZ, Rudolf. A Pedagogia Waldorf. 1990, p. 50.
  20. LIEVEGOED, Bernard. Desvendando o Crescimento. 1994. p.15.

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