14 de abril de 2020

Uma Lenda Chinesa

 

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Autor: Albrecht Haushofer

Adaptação em português e versos de Ruth Salles

Desenho de aluna do 9° ano da Escola Municipal Araucária – Camanducaia MG

NOTAS

Esta peça foi apresentada pela primeira vez em Gottingen, cidade universitária da Alemanha. Seu autor, o doutor Albrecht Haushofer, nasceu em Munique, a 7 de Janeiro de 1903. Tendo exercido o cargo de professor de Geopolítica na Universidade de Berlim, era considerado pessoa de espírito aberto para o mundo e grande conhecedor da cultura de povos antigos, sendo especialmente sensível à cultura oriental. Paralelamente a esta peça, escreveu trabalhos científicos e dramas políticos. Condenado pelo governo nazista foi morto em Berlim no dia 23 de Abril de 1945. A primeira edição desta peça, “Uma Lenda Chinesa”, saiu justamente no dia do quarto aniversário de sua morte. Os versos em português foram escritos graças à tradução em prosa de Eleonore Pollklaesner (Lori), professora da classe. Essa tradução, por sua vez, foi feita a partir de uma adaptação já realizada pela professora Vally Bauer-Zuber, para uma classe de 8º ano.

A música da primeira canção é chinesa, apenas levemente modificada por causa dos versos em português. As outras eu as escrevi na escala pentatônica, com ajuda da professora Mechthild Vargas (Meca). Os arranjos para orquestra ficaram a cargo do professor de música que se ocupou da peça, Luiz Fernando Netto A.S. Sahd. De seu álbum de músicas chinesas, que ele gentilmente nos emprestou, é que tiramos a música da primeira canção.

Ainda cabe dizer que esta versão da peça de Albrecht Haushofer em português é ligeiramente menor que a adaptação de Vally Bauer-Zuber, e que a peça digitada em 2018 ainda passou por uma diminuição e mudança de alguns versos em prosa.

Ruth Salles

PERSONAGENS

– Monge
– Discípulo do Templo
– Lavrador
– Pintor
– Taberneiro
– Funcionário da Corte
– Poeta Li
– 1ª Pérola da Corte
– Moça
– 2ª Pérola da Corte
– 1º Barqueiro
– 3ª Pérola da Corte
– 2º Barqueiro
– Grande Khan dos mongóis
– 3º Barqueiro
– Chefe dos Guerrilheiros chineses
– Arauto
– Censor Kung
– Guerrilheiros chineses
– Imperador
– Servidores da corte
– Imperatriz, sua mãe
– Dignitários
– Mestre de cerimônia
– Homens armados da Corte
– Ministro da Corte
– Homens armados mongóis
– Grande Chanceler
– Aldeões

 

CENA I

Uma taberna aberta, circundada por árvores, num lugar onde o canal imperial forma um alargamento. É noite. Lampiões iluminam a taberna, e lampiões iluminam os barcos que passam. Em volta de uma mesa estão sentados o monge, o lavrador, o taberneiro, o poeta e a moça. O poeta toca uma flauta. A moça escuta a seu lado.

ARAUTO (visto só da cintura para cima remando a barca):
Abri passagem para o Censor Kung!
Ó homens, ele vai até Pequim.
Ante o trono do céu dará conselhos
em benefício da Terra Amarela.

(Os homens, menos o poeta, levantam-se)

POETA: Por que vos importais com o Censor? Olhai o fruto que caiu da árvore! Só uma semente vale muitos homens!

(O poeta apanha o grão e o observa. A barca do arauto passa devagar.)

ARAUTO: Abri passagem para o Censor Kung!
Ó homens, ele vai até Pequim.
Ante o trono do céu dará conselhos
em benefício da Terra Amarela.

TABERNEIRO (ao arauto): Os filhos desta terra então imploram que o sábio Kung veja nossa penúria!

ARAUTO: O Censor sabe, ouviu o que disseste.
Ele já se cobriu de seda negra.

(A barca do arauto continua passando e vai sumindo.)

POETA: A semente de um fruto pouco pesa, e toda a vida passa através dela. No menor grão está contido o mundo. (Joga o grão longe.)

POETA (à moça): O grão, um passarinho o apanhou. Ele canta, querida, estás ouvindo? É muito raro ele cantar à noite. A voz flutua lá nas nuvens altas, de onde nos anuncia a boa chuva, e a boa chuva traz o novo fruto.

(Passa uma grande barca fechada e forrada de preto.)

LAVRADOR: (atirando-se de joelhos): Ó Censor Kung, tem compaixão de nós! A terra já está seca há tanto tempo! Foi-se a colheita que nutre nossos filhos. Os homens não respeitam mais as leis. Os bárbaros já surgem das estepes. Tu tens de nos ouvir, ó sábio Pai! O Imperador já não nos ouve mais.

MONGE: Sossegai, pois o velho Pai já sabe!

POETA: (tornando-se atento): Ele escutou. Eu vejo-o pensativo. Vai apresentar-se ante o trono imperial. Um grão de areia no vasto mundo, como todos nós. (A barca do Censor desaparece.) Apaga a luz! Assim, no vinho claro, veremos desenhada a velha lua! O reflexo de um mundo beberemos!

(Apagam-se os lampiões, os homens se sentam.)

POETA (canta): “Nuvem de prata que a lua abraça
tal como um véu de amor…
Campo de prata suspenso n’água
a esperar pela flor…”

(Interrompe-se; toca um pouco a flauta. A moça olha-o, quieta.)

LAVRADOR: (para o taberneiro): Qual a última vez em que o Censor foi visto passar aqui?

TABERNEIRO: Exatamente há um ano. Com certeza, hoje o Imperador o chamou.

MONGE: E a seda negra e o seu silêncio mostram-vos o caminho.

POETA: Não sabemos os passos, muito menos o caminho!

MONGE: Não acha os passos quem não tem caminho!

POETA: Quem o procura perde-se no mundo!

MONGE: Quem não se perde… nunca encontra a meta!

POETA: Ora… Aproveitai as dádivas do mundo! (recosta para trás e bebe.)

MONGE: Hoje, no Império da Terra Amarela, só o Censor está autorizado a se dirigir ao Supremo Filho do Céu e a lhe dizer a verdade como ele a considera. Ninguém mais pode estar ali presente. O Supremo só deve acreditar no Censor.

TABERNEIRO: Quando um funcionário oprime seus subalternos, quando um general não paga o soldo às tropas, quando um ministro rouba seu Tesouro, e um príncipe se torna um assassino, quando o povo já nem se atreve a nada…

LAVRADOR: É então que o Censor pode falar?

MONGE: Ele tem de falar! É necessário!

TABERNEIRO: Esse, que dá um basta à injustiça, deve ser bem feliz!

POETA: És muito tolo! O que ele tem de ser é insensível!

MONGE: Não é fácil chegar a esse alto cargo.

LAVRADOR: É preciso ter muita abnegação.

TABERNEIRO: Quem chega a ser Censor aos sessenta anos – pois mais jovem ele não pode ser – se tem esposa, filhos, bens, irmãos, não pode olhá-los como sendo seus!

LAVRADOR: Quem sustenta o Censor?

TABERNEIRO: Ah, é o Estado. Dá-lhe vestes e dá-lhe chá e arroz.

LAVRADOR: Quem escolhe o Censor? O Imperador?

TABERNEIRO: Não! Aos setenta anos ele abdica e passa o cargo. Escolhe seu herdeiro entre poucas pessoas bem testadas, que ainda passam por derradeira prova: um voto de silêncio por um ano.

MOÇA: Que significa aquela seda negra?

TABERNEIRO (inseguro): Acho que é uma audiência especial ante o Filho do Céu.
Moça: Mas que acontece quando o Filho do Céu não se convence ante o sábio conselho?

TABERNEIRO Se o Supremo não escuta o conselho do Censor, nem quando os dignitários testemunham, um extremo dever resta ao Censor: pôr fim à vida nessa mesma noite.

MONGE: E, com a seda negra, ele anuncia que já está mergulhado em sua morte.

POETA (à moça): Estás contente, ouvindo o que faltava?
“No mundo da sombra,
caminha uma sombra,
numa trilha escura,
para a meta escura.”

Tu sonhas com o caminho do Censor?

(A moça levanta-se numa agitação visionária. O monge e o poeta observam-na assustados.)

Moça: Eu vejo o Imperador, em seu salão, sentado no seu trono de mármore…

POETA: (em voz baixa, impressionado): Tu vês o Imperador?

MOÇA (assustada e visionária ao mesmo tempo): Sim, eu o vejo com seu traje de seda de ouro escuro, o cetro de trovão e aquele cálice da flor de lótus… Não! Não quero ver! Falai agora, para que eu esqueça esta visão!

MONGE: (calmo e com a maior ênfase, ao mesmo tempo): Essa visão jamais esquecerás!

ARAUTO (passando lentamente pelo canal):

A Imperatriz da púrpura da tarde,
a quem coube o cuidado maternal
com o Filho do Céu, Suprema Alteza,
avisa o povo da Terra Amarela:
O grande sábio, o grande Censor Kung
anunciou-lhe que, para deter
a miséria do Império, é necessário
o seguinte milagre: se uma moça
passou pela profunda correnteza
do amor e preservou sua pureza
no coração, então toda a miséria
tão grande poderá ser transformada.
À Imperatriz da púrpura da tarde
também foi dado ainda este conselho:
que torne o povo todo sabedor
deste aviso. E o aviso já foi dado.
(O arauto segue adiante.)

TABERNEIRO: Quem quer que espere que um milagre desses aconteça só pode ser um bobo.

POETA: E vai esperar em vão.

LAVRADOR: Nossa Terra Amarela há de livrar-se da miséria!

MONGE: Então rezai! Rezai para que esse milagre se produza!

POETA: E tu, moça?

MOÇA (baixinho): Eu só sei do que eu preciso.

 

CENA II

A taberna, de manhã cedo. O monge está sozinho, em profunda meditação. Aparece a moça, sem ver o monge.)

MOÇA (ao poeta, que dorme): Ainda queria uma palavra tua, que fosse suave, para a despedida. Mas preciso apressar-me. Ouço vozes na luz suave. Um ruído! Bate um remo. Lá vem a barca que me levará.

1º BARQUEIRO: (cantando, de início sem ser visto):
“Sabemos da noite, sabemos do dia,
pois sempre vogamos no mesmo caminho…
As águas diluem cuidados vazios…”
(Passa devagar uma barca coberta.)

MOÇA: Ele canta… – Barqueiro, ó barqueiro! Há para mim, a bordo, um lugarzinho? Tu me levas para a cidade grande?

1º BARQUEIRO: (parando por um momento):
Aqui viaja o negociante Sung.
O barco está repleto de tecidos
para a corte imperial. Não temos tempo
para pegar qualquer desconhecida.
(A barca se afasta, e o barqueiro ainda canta.)
“Sabemos da noite, sabemos do dia,
pois sempre vogamos no mesmo caminho…
As águas diluem cuidados vazios…” (some ao longe)

2º BARQUEIRO: (do outro lado, retomando a canção):

“Eu sei de onde venho, aonde vou não sei, não…
Na troca dos dias perdi a noção…”

MOÇA (enquanto a segunda barca passa lentamente.): Se tens um coração, barqueiro, ouve-me! Há para mim, a bordo, um lugarzinho? Tu me levas para a cidade grande?

2º BARQUEIRO: Neste barco, vai o Capitão Tcheng
buscar o soldo para suas tropas,
que estão à espera longe, nas fronteiras
dos bárbaros cruéis. Não temos tempo
para pegar qualquer desconhecida.

MOÇA (chegando mais perto): Ó barqueiro, eu te imploro que me leves!

2º BARQUEIRO (segue adiante, dando uma risada):
Virei buscar-te se esperares muito! (canta):
“Eu sei de onde venho, aonde vou não sei, não…
Na troca dos dias perdi a noção…” (A voz se perde ao longe)

MOÇA: O sol subiu… Preciso achar um meio.

(Aproxima-se a barca do arauto.)

ARAUTO: A Imperatriz da púrpura da tarde,
a quem coube o cuidado maternal
com o Filho do Céu…

MOÇA(interrompendo-o): Leva-me! Leva-me! Conduze-me à cidade imperial!

ARAUTO: Quem ousa interromper esta mensagem
da Imperatriz…?

MONGE (que observara os últimos acontecimentos sem ser notado e se aproxima da moça): Arauto! Para teu barco!

ARAUTO: Ó monge!
Quem és tu, para que essa moça indigna,
mulher do povo, tenha tua ajuda?

MONGE (erguendo seu bordão): Se tu reconheceres este símbolo da flor de lótus de botão aberto, saberás respeitar este pedido, mesmo sem entender qual a razão.

ARAUTO: (reverente): És mensageiro das montanhas do templo?

MONGE: Abre lugar no barco, e não demores no rumo da cidade imperial.

MOÇA: Como te agradecer?

MONGE: Com o silêncio.

ARAUTO (à moça): Entra logo!
(A moça entra no barco e se volta mais uma vez, com um gesto de sofrimento.)

MOÇA (ao monge, ajoelhando-se): Dá-me a bênção para seguir viagem!

MONGE (aproxima-se e ergue o bordão, em cuja ponta brilha levemente uma flor de lótus de botão aberto): Em teu caminho, o que te parecer estar perdido, nunca perderás.

(A barca se põe em movimento.)

ARAUTO: (tornando-se invisível, a voz sumindo):
A Imperatriz da púrpura da tarde,
a quem coube o cuidado maternal
com o Filho do Céu, Suprema Alteza,
avisa o povo da Terra Amarela…

(Ouvem-se as vozes do taberneiro e do poeta, que em seguida aparecem.)

POETA: Estás mentindo!

TABERNEIRO: Eu falo do que eu vi! Ela te abandonou!

POETA: Some daqui, antes que eu cometa uma violência! (Joga-se no banco.)

MONGE (baixinho e decisivo): “No menor grão está contido o mundo!”

POETA (irritado): Quem foi que disse isso? (Cai em si.)

MONGE: “Não sabemos os passos, muito menos o caminho!”

POETA: Quem disse isso? Foste tu. Eu posso me lembrar muito bem.

MONGE: Não te lembras dessas palavras só por ti sentidas, e por ti formuladas e sofridas?

POETA: Eu só lembro que tenho de segui-las!

MONGE: Sabes então para onde?

POETA: Oh, não! Como vou viver, se não achar o seu caminho?

MONGE: Achar o teu caminho! O vento sussurrava: “Não sabemos os passos, muito menos o caminho.” Quem estava a teu lado foi chamado… e tu dormiste…

POETA: Mas agora acordo, e nada encontro além de um mundo morto… Sai, eu te peço! E deixa-me sozinho! (Cala-se)

MONGE: Mas antes de atender ao teu pedido, ouve: quando passar essa tua cegueira, talvez eu possa conduzir-te num trechinho. Tu me encontras daqui a sete dias, no caminho de volta para os montes do templo.

(O poeta não se move. O monge sai.)

1º BARQUEIRO: (cantando ao longe):
“Sabemos da noite, sabemos do dia,
pois sempre vogamos no mesmo caminho…
As águas diluem cuidados vazios…”

(O poeta escuta, inerte.)

 

CENA III

Salão de audiência do palácio imperial. O Imperador está sentado no trono dos dragões, imóvel, com os olhos semicerrados. A seu lado, nos degraus do trono, está o Mestre-de-Cerimônia.

IMPERADOR: Eu quero ficar sozinho! Sai, Mestre-de-Cerimônia!

(O Mestre-de-Cerimônia vai sair, quando soa o gongo.)

Mestre-de-Cerimônia: (com profunda reverência): A Imperatriz da púrpura da tarde…

IMPERADOR (para si mesmo): Não se escapa do cuidado maternal! Eu não quero
vê-la agora. Estou em devaneio. (pela segunda vez, soa o gongo.) Outra vez este som? A Imperatriz tem poder de anunciar-se uma vez só.

Mestre-de-Cerimônia: O que o segundo gongo lhe anuncia é a presença do sábio Censor Kung ao Supremo.
(Pela terceira vez, soa o gongo.)
IMPERADOR: E o terceiro?

Mestre-de-Cerimônia: Impede que haja testemunhas deste encontro.
(Ele sai, abre-se uma porta, e o Censor entra. O Supremo fica de pé.)

IMPERADOR: O Censor Kung!

CENSOR: Transcorreu um ano
desde que foi pedida uma audiência.
E, quando mais um ano se passar,
o Conselho do Império ouvirá as queixas
que a miséria me obriga a revelar!

IMPERADOR: E de nós o que exiges, Censor Kung?

CENSOR: É exigido o caminho do dever:
que o Imperador seja o mediador
entre os homens e a grande Lei eterna;
jamais buscar o seu próprio interesse.

IMPERADOR: Não busquei pompa, nem riqueza ou glória…

CENSOR: Buscaste o mais funesto para o Império:
o entorpecimento em devaneios!

IMPERADOR: Tu proíbes então minha vontade?

CENSOR: Ouve, Filho do Céu: só quando o último
de teus súditos dorme em segurança,
teu sono é permitido. Evita sempre
os devaneios no entorpecimento!

IMPERADOR: É tudo?

CENSOR: Sim. Pois muito bem! Agora,
o Censor já falou, Filho do Céu.
Sabes onde me achar, se for preciso!
(O Censor faz uma reverência e sai.)

CENA IV
Pavilhão no jardim do palácio imperial. Vista para um lago com ponte em arco, trecho dos muros do palácio ao fundo. Luminosidade do anoitecer. Imperatriz e Ministro da Corte.
Imperatriz: Ministro da Corte, dá-me notícias do que vai acontecer hoje. Tenho a impressão de que o céu vai mudar de cor e ficar de um vermelho nunca visto, como se o fogo nos ameaçasse.
Ministro: Imperatriz, ainda há pouco fui informado que, de madrugada, às portas da cidade imperial, foi detida uma moça que tentava entrar sem passaporte especial. Ela quis soltar-se, e o barulho atraiu o Capitão, que veio interrogá-la, e ela contou que o arauto imperial é que a trouxera em sua barca até a cidade, a mandado de um monge.
Imperatriz: Terás de ver se é verdadeira a história contada pela moça!
Ministro: Não me atrevo. Pois o Filho do Céu ordenou-me hoje mesmo que não deixe mulher alguma aproximar-se dele sem que ele, antes, veja seu retrato.
Imperatriz (em voz baixa): Assim, ele não deixa mais a vida impressionar seus sentimentos, apenas sua imagem…
Ministro: Mas eu posso fazer com que se pinte o seu retrato.
(Soa o gongo lá fora. A Imperatriz responde com outro soar de gongo.)
Imperatriz: Cuida então para que isso seja feito!
(Mestre-de-Cerimônia e Grande Chanceler entram e se aproximam.)
Imperatriz: Sim, Grande Chanceler?
Grande Chanceler: O Vice-rei das províncias do Oeste comunica: nem a grande muralha nos protege. O exército mongol rompe da estepe, entra com seus cavalos em nossas terras, depois que o Grande Khan mandou mensagens ao Supremo, por mais de um emissário (olhando de relance para o Ministro) lembrando ao reino da Terra Amarela que há tratados entre ele e nós, que ao vir a grande seca asseguram provisões para o povo dessa raça. Os homens passam fome, e se apoderam do que podem, mas o Imperador se negou a receber essa notícia, e veementemente rejeitou com ódio o mensageiro…
Imperatriz (acenando com a cabeça): Sim, vai em paz! Tomara que possamos
minorar tal desgraça, Chanceler. (Ele se retira.)
Mestre-de-Cerimônia: Imperatriz! É preciso que saibas de outro caso: quando o Censor deixou o Imperador, este fechou seu rosto para o mundo e se trancou nos aposentos íntimos. Chegando a hora em que ele deveria entoar orações em benefício da Terra Amarela, foi em vão que o grande sino soou lá no templo.
Imperatriz: Oh, e que fizeste? Que fizeste?
Mestre-de-Cerimônia: Nós arrombamos a dourada porta ilegalmente.
Imperatriz: Tiveste esta audácia?… Que terrível desgraça recairá sobre nós!
Mestre-de-Cerimônia: Se o Imperador não pronunciar a prece para o bem de nossa terra, tudo estará perdido.
Imperatriz: É preciso que nos venha uma mensagem do Templo da Montanha!
(Com um gesto de mão da Imperatriz, os dois homens saem.) Pode ser que uma fagulha da verdade desça da altura em que se encontra e brilhe para nós!
CENA V
O interior de um aposento de nobre e sóbria simplicidade no Templo das Provações. A entrada principal é através de cortinas pesadas e fechadas. A entrada lateral não é visível. Dos arranjos sacros, na penumbra, há pouca coisa. O Censor está em calmo recolhimento. O discípulo do Templo entra.
Censor: Que acontece que vens interromper
o meu recolhimento?
Discípulo: Censor Kung,
a Imperatriz da púrpura da tarde
enviou o Ministro do Supremo
para saudar-te.
Censor: Manda-o embora,
se não puder apresentar o selo
do próprio Imperador, como sinal
de que sua vontade o enviou.
Discípulo: Mas ele representa o Imperador!
Censor (firme): Manda-o embora. Tens outra mensagem?
Discípulo: Um mendigo chegou pedindo esmola.
Veste um traje de monge, e é um velho.
Censor: Nada tenho de bens para doar-lhe…
Porém repartiremos nosso chá.
Vai buscá-lo!
Discípulo (espantado): O mendigo?
Censor: Sim!
Discípulo: E como
vou dizer ao Ministro que se vá,
se a um mendigo posso dar entrada?
Censor: Pois pergunta ao ministro se ele sofre
como sofre o mendigo, sem seu chá.
(O discípulo faz uma reverência e se retira. Longa pausa. Nisto se abrem as cortinas pesadas, e o monge se aproxima. O Censor o cumprimenta sem se erguer, com um gesto calmo.)
Bem-vindo, irmão! Fica à vontade! Senta-te
e serve-te do chá.
Monge (senta-se, serve-se e fala baixinho):
Venho em nome de quem gerou o lótus…
Censor: Bem vindo, irmão!
Monge: Tu não me reconheces?
Censor (erguendo o rosto, com os olhos semicerrados):
A voz soa como algo familiar. Mas, muitas vozes,
passaram pela vida do Censor.
Monge: Então o visitante não lhe deve
falar senão como se fosse em sonho.
Censor: Nada, em sonho, é proibido.
Monge: Era uma vez
– no Império da Terra Amarela,
distante das cidades,
um velho sábio que, aos seus discípulos,
ensinava como levar a vida
sem precisar depois arrepender-se.
Já quase não falava, de tão velho.
Apenas os guiava e se alegrava,
quando alcançavam o conhecimento.
No fim de sua vida, ali restara
só um pequeno grupo liderado
por dois da mesma idade, muito amigos.
Censor: Adiante! Sonha mais!
Monge: Aspiravam os dois sair do mundo
das aparências: porém um ficava
esperto à luz do sol, enquanto o outro
buscava estrelas sem que fosse noite;
Porém um dia o Mestre faleceu;
e logo os dois amigos perceberam
que seguiriam rumos separados:
um quis servir no cargo em que a justiça
luta com os vícios do poder. O outro
entre o ser e o não ser seguiu buscando
pelo Grande Sentido; e enfim passou
pelos portais da Iluminação…
Censor: O cargo de Censor requer que o sonho
não afete o rigor de sua missão;
mas ele é grato a quem, mesmo tão tarde,
toma o rumo da participação!
Monge (levantando-se):
E o sonho chega até o portal da vida:
o fim saúda o início.
(O Censor também se levantara. Ele e o Monge dão-se as mãos e ficam em silêncio.)
CENA VI
Vestíbulo aberto no ateliê do pintor da corte. O pintor faz um sinal. Aparece um servidor.
Pintor: As moças podem vir!
(O servidor sai. Três “pérolas da corte” e a moça são introduzidos pelo funcionário da corte e vários Servidores. As três “pérolas” estão suntuosamente vestidas; a moça, com simplicidade.)
Pintor: A divisão do Cerimonial da Imperatriz já considerou válidos todos os
atestados?
(O funcionário da corte faz uma profunda reverência.)
Pintor: Pois então valorizemos a beleza, para que o Supremo Filho do Céu já possa, de antemão, se alegrar com os retratos!
(O funcionário da corte e os servidores saem.)
Pintor (às jovens): Vinde ficar mais perto da luz para que eu ressalte o brilho de vossos traços! Não sabeis o quanto vossa felicidade depende dos retratos feitos
por mim?
Três Pérolas: Agradecemos profundamente.
Pintor (indicando uma porta lateral): Naquela sala achareis adornos engastados com pedras preciosas! Ide por esta porta!
(Destacando-se das outras, a moça se aproxima silenciosamente.)
Pintor (à moça): És muito bela, mas tão quieta… e vestida com tanta simplicidade…
Moça: eu não dou valor a tais artifícios, Deve bastar que pintes os meus traços tal como a própria vida os desenhou.
Pintor (aproximando-se, encantado): Tal como a própria vida os desenhou? Não sabes o que exiges do pintor! Se exiges que te pinte como és, então preciso saber mais sobre tua natureza.
Moça (recuando): Oh… deixa-me…
Pintor: Tu não amaste nunca? (ele a agarra)
Moça: Não! Afasta-te! Minha vida tem só uma missão: livrar o império da desgraça atual…
Pintor: Pequena visionária! Talvez creias que serás escolhida. E eu te digo: o que aquele emissário da montanha anunciou é uma grande mentira! Posso livrar-te dessa consagração!
Moça (repelindo-o): Não sinto que haja amor algum em ti…
(O pintor aproxima-se mais. A moça lhe dá um forte empurrão e se liberta.)
Moça: Eu gritarei agora mesmo, e alguém vai ouvir!
Pintor (soltando-a): Teimosa! Muito bem: o Imperador verá o retrato de tua repulsa! E ficarás esperando e esperando…
 (O pintor sai com movimentos rápidos. A moça se apoia com alívio no parapeito do vestíbulo e, após alguns instantes em que olha para o jardim lá fora, começa a cantar baixinho para si mesma.)
Moça: “Nuvem de prata que a lua abraça
tal como um véu de amor…
Campo de prata suspenso n’água
a esperar pela flor…”
CENA VII
A taberna no canal imperial. Dia claro. Vários aldeões. O taberneiro, ainda levemente embriagado, sentado num canto. Logo após o início da cena, um grupo de guerrilheiros barulhentos invade o local. A barca do arauto passa.
Arauto: Ordem do Vice-rei: todos os barcos
devem já ser levados para o sul,
a fim de que o inimigo não os tome!
(A barca some. Movimento de pessoas.)
Chefe dos Guerrilheiros: Para fora, covardes! Hoje valem só aqueles que usam  armas! (ao taberneiro): Anda! Desce á adega e traz o melhor vinho!
Guerrilheiros: E não perguntes com o que pagaremos! Tudo grátis!
(O local se esvazia. Só o poeta permanece sentado.)
Taberneiro: A casa é vossa! Meu vinho tem boa fama!
Chefe: Ótimo! Porque se nossas línguas não se satisfizerem, nossos punhos falam… e onde há lutas só vencem os mais jovens!
Taberneiro: Não duvideis. Ficareis satisfeitos com meu vinho!
(O taberneiro se retira.)
Guerrilheiros (uns e outros): Aqui é bem melhor que estar em casa… E morrer de estudar para os exames… E dar ouvidos aos mais velhos. Eles pensam que ter cabelos brancos lhes dá o direito de mandar em nós! Já houve tantos saques… Pois então também nós precisamos saquear… (Começam a cantar.)
“E quando voltarmos da grande batalha,
cobertos de ricos despojos dourados,
quem não se alegrar com a nossa vitória
nós vamos deixar de cabeça quebrada!
A vida, só nossa, só nossa será!
Só nossa a vitória!”
(O taberneiro volta com o vinho.)
Chefe: Êh! Viva! Traz as jarras! Enche as taças!
(Tendo servido os guerrilheiros, o taberneiro se retrai no canto.)
Guerrilheiros (tontos): Rolem, rolem muitos goles do bom vinho! Os cuidados vão-se embora a cada trago!
(Eles bebem. A barca do arauto aparece de novo.)
Arauto: Cessai todo ruído! Do contrário,
sofrereis o castigo imperial!
Ordens de Vice-rei: todas as pontes
que vão da margem esquerda do canal
para a direita, devem ser destruídas.
Pois já que a terra a oeste do canal
não consegue deter os inimigos,
que se proteja o leste da invasão!
(A barca do arauto desaparece.)
Taberneiro: As mais próximas pontes ficam a 100 metros daqui!
Lavrador (chegando apressado): As aldeias mais próximas a oeste já estão queimando, e os bárbaros vêm vindo a galope!
Chefe: Para as pontes!
Guerrilheiros: Vamos tocar fogo nelas! Depois voltaremos! Teu vinho era bom. Muito obrigado!  (Saem correndo.)
Lavrador (para o taberneiro, apontando para o poeta): Que será que houve com ele? Estará bêbado?
Taberneiro (sem prestar atenção, fala com o chefe dos guerrilheiros): E quando vais pagar pelo meu melhor barril?
Chefe: Quem vai pagar? Fomos convidados! (Sai atrás de seus homens.)
Taberneiro (cerrando os punhos, assim que eles saem da vista): O raio que te parta e a todo bando! Ladrões! Vou tratar de enterrar o ouro que ainda me resta. (Ele sai.)
Lavrador (ficando a sós com o poeta): Levanta-te, anda! Temos de fugir!
Poeta: Pois vai!
Lavrador: Não vou deixar-te aqui sozinho!
Poeta: Não te preocupes! A ponte está queimando… E se tudo precisaria queimar, aldeias e cidades, para que os tolos deste mundo compreendessem…
Lavrador: Acho mesmo que ele perdeu o juízo…
Poeta: Sai!
Lavrador: Se não queres vir, que os bons espíritos possam guardar-te!
(Sai o lavrador, o poeta pega uma jarra e bebe. No fundo, vê-se ao longe o brilho rubro das chamas.)
Poeta: Sim, os bons espíritos!
“Sobre as águas e os montes e as casas,
nuvens rubras a refulgir!
O fogo mortal farfalha as asas!
Só resta rir bem alto! Rir!”
(Atira a jarra longe e cai no chão. No fundo atraca uma barca. Desce o monge. A barca espera. O monge se encaminha devagar até o poeta.)
Monge: Partiu-se a jarra… mas não se perdeu o juízo, que será guiado da feroz ilusão para o silêncio…
Poeta (com o olhar perdido): O mundo se tornou vermelho… Vai-te embora… E deixa-me chorar…
Monge: O teu tempo chegou. Levanta e segue-me!
(O poeta se ergue devagar.)
As montanhas do templo não se queimam.
E, ao voltares, verás a vida cega
florescer, renascer da cinza fria!
(Os dois, devagar, sobem na barca.)
CENA VIII
Pavilhão no jardim do palácio imperial. O Imperador e a Imperatriz. O Ministro da Corte e o Mestre-de-Cerimônia.
Imperador: Em hora tão sinistra, foi preciso pedir o conselho do Censor?
Mestre-de-Cerimônia: Sim.  E somente o selo imperial pôde fazer com que ele abandonasse o templo e seu silêncio.
Imperador: Mas não basta lembrar o Chanceler?
Ministro: O Chanceler morreu de um mal súbito.
Mestre-de-Cerimônia: (baixinho, para a Imperatriz): Dizem que ele morreu envenenado…
Imperatriz: Envenenado?
Ministro: (percebendo a observação): Isso é boato… Ninguém tinha motivo para envenená-lo. O luto é grande por ele…
Mestre-de-Cerimônia: Supremo, para o bem da corte, não podemos evitar a vinda do Censor.
Imperador: Pois fala!
Mestre-de-Cerimônia: Desde que os bandos de bárbaros mongóis atravessaram os desfiladeiros, invadindo a planície do oeste, e sitiaram as sólidas muralhas da cidade, foi preciso que reconhecêssemos o grande mal que resulta da miséria. O Grande Khan nos oferece a paz, mas por um preço bem pesado e duro para as províncias da fronteira. Se rejeitarmos essa paz, a guerra se propaga!
Ministro: Vamos ouvir o conselho do Censor.
Imperador: Então o Censor pode entrar. (O Ministro vai para um lado e dá um sinal. O Imperador se dirige ao Mestre-de-Cerimônia.) Enquanto isso, prepara o  salão grande, para a delegação ser recebida!
Imperador (à Imperatriz): Vamos espremer de suas rugas toda a sabedoria!
Imperatriz: Se abusarmos do conselho do Censor, o céu nos tira sua benção!
Ministro: O Censor!…
Censor (entra):      Filho do céu! Imperatriz suprema!
O Censor recebeu em seus umbrais
o chamado da dor de todo o reino.
Imperador: Em caso grave, nós pedimos conselhos.
Censor: Antes de ouvir a imperial palavra,
permite-me dizer-te…(Aponta para o Ministro.)
                        … que este homem
deve ser sem demora encarcerado,
acusado de inumeráveis crimes.
O que eu quis evitar aconteceu!
Em minhas mãos veio parar a herança
do Chanceler, as provas que mandou
colher tarde demais.
Imperador:  Pois o Ministro
só sai quando por nós for demitido!
Ministro: De pérfidas calúnias saberei
defender-me de todas as maneiras!
Censor: O ouvido imperial já registrou:
“de todas as maneiras!” Pois que seja!
Sou todo ouvidos para ouvir agora
o que o reino em desgraça força a ouvir.
Imperador:  Já sabes a extensão dessa desgraça?
Que o inimigo nos prepara um rápido
ataque contra o Império?
Censor: Sim, já sei!
Imperador:  O Grande Khan nos oferece a paz.
Não sabemos dizer se há dignidade
nessa oferta.
Censor: Que ele queira concedê-la,
é o que julgo ser mais importante.
A metade da terra foi saqueada.
Das dezoito províncias restam dez.
Que exige ele?
Imperador: (ao Ministro): Lê sua proposta!
Ministro: Primeiro, exige ele, em três províncias,
um espaço para seu próprio clã.
Em segundo lugar, exige ele
tributo em mantimentos de ano em ano.
Em terceiro, o direito de manter
tropas em sete das cidades grandes.
Porém se compromete a proteger
todo o oeste e o norte deste Império.
Por fim, como sinal de confiança,
quer levar desta corte, como esposa,
uma moça, da escolha imperial,
cuja origem lhe seja conhecida,
e que lhe agrade.
Imperador: (para o Censor, após uma pausa):
Então, que me aconselhas?
Censor: Como vitorioso, o Khan exige pouco.
É homem de visão e alto porte.
Imperador:  Mas o Censor deve evitar louvar
aquele que saqueia o nosso reino.
Censor: Mas se ele foi premido para a luta
porque os tratados foram violados,
prova ser comedido na vitória;
merece concedermos o que pede.
Ministro: E aconselhas a paz?
Censor: E tu, a guerra?
Temos recursos para fazer guerra?
Filho do Céu, hás de reconhecer
que faltarão os meios para a guerra,
já que os meios de paz tu não usaste.
Ministro: Como ousas?
Censor: Se o inimigo lembra
tratados que deviam vigorar,
negar a alguém o que lhe é de direito,
é chamar contra si a violência.
Ministro: Poderia eu lembrar, Filho do Céu,
um ponto que o Censor deixou passar?
A escolha de uma esposa! Ele não vê
o vergonhoso escárnio que reside
em usar o Supremo para isso?
Censor: Obrigado. Abriste nossos olhos
para ver tua mais profunda infâmia.
Tentas envenenar o único meio
de reconciliação? Caso aconteça
teres tu a razão, então seria
bem lastimável para nossa terra
aceitar uma paz com o Grande Khan.
Ministro: Agora já sabemos o que é
que o Censor aconselha…
Imperador (com voz cortante): E agradecemos
seu amigável modo de pensar!
(ao Censor): Eu te dispenso.
Censor: Quem menos necessita
de um agradecimento é o Censor…
(Enquanto o Censor sai vagarosamente, entra o Mestre-de-Cerimônia.)
Imperador (ao Mestre-de-Cerimônia):
Está pronto o salão da recepção?
Então vamos deliberar a paz.
Ministro: Quanto ao último ponto…
Imperador: Há pouco tempo,
mostraram-me o retrato de uma moça.
Agora sei com que finalidade
o acaso a mandou! O Grande Khan
que se alegre depois com a nossa escolha.
CENA IX
Sala de audiência no palácio imperial. O trono está velado por uma cortina de seda dourada, e tão escondido quanto o aceso lateral a ele. No primeiro plano, estão o Mestre-de-Cerimônia e o Ministro da corte.
Mestre-de-Cerimônia: Por que estás mal humorado justamente hoje?
Ministro: Porque o Imperador ofertou ao Grande Khan uma mulher, com ódio, por lhe desagradar o seu retrato. Verás os danos que nos vai trazer esse procedimento.
(Primeiro soar do gongo)
(Os dois saem por lados diferentes. Novo soar de gongo. Por entradas diferentes, entram primeiramente filas de homens armados; e depois, com roupagens de diversas cores, filas de dignitários; e formam, dos lados do salão, muralhas vivas. Música abafada acompanha o desfile. Terminada a formação, um sinal grave, aliado a um movimento atrás da cortina, deixa transparecer que atrás dela o Imperador tomou lugar no trono. Após um novo soar do gongo, aparecem, de um lado e logo após do outro, primeiro o Grande Khan em companhia do Mestre-de-Cerimônia e, depois, a moça, agora esposa do Grande Khan, com o rosto velado, em companhia do Ministro da Corte. Eles se dirigem, um atrás do outro, para o trono. Poucos passos antes de o Grande Khan alcançar os primeiros degraus dianteiros do trono, abre-se a cortina. O Imperador torna-se visível. O Ministro da corte e o Mestre-de-Cerimônia, um de cada lado, dão um passo para trás. O Imperador se levanta. O Grande Khan faz uma reverência, sem perceber que sua companheira, em vez de atender a um aceno do Ministro da corte para se colocar a seu lado, ajoelhara-se diante do Imperador, permanecendo nessa posição, quase sem poder ser vista pelo Imperador. Este desce os degraus do trono e para diante do último degrau, em frente ao Grande Khan.)
Imperador: Tu vieste firmar do próprio punho nosso tratado…
Grande Khan: Nele declarei o meu desejo.
Imperador: Nós o respeitamos. Nós, soberanos de uma antiga terra, nós, que herdamos de muitos ancestrais uma vida de paz, sabemos quanto uma guerra destrói. Por isso temos a esperança de que estes novos laços sejam de bênção para todo o povo. Neste sentido, sede bem vindos!
Grande Khan: Senhor do Trono dos Dragões dourados! Nós sentimos que o povo desta Terra Amarela, pode nos ensinar muito. Mas uma coisa, não: como manter um juramento feito. Por isso acreditamos que devemos, com toda a nossa força, proteger o grande Império que hoje nos recebe.
Imperador: Que possa então a paz ser duradoura! (Faz uma reverência.)
Grande Khan: Porém resta-me ainda algo a fazer… Este príncipe te agradece o presente que lhe trouxe tanta felicidade. (Vira-se e fala à sua jovem princesa [a
moça] que está ajoelhada.) Por que ainda estás ajoelhada? Levanta o rosto e ajuda-me a externar os agradecimentos ao Supremo Filho do Céu, que foi quem fez a escolha!
Princesa (levanta): Eu não sabia, Altíssimo Senhor, porque fui escolhida… Nunca viste meu rosto verdadeiro. Só o retrato que o pintor fez. (ela ergue o véu.)
Imperador: Teu rosto verdadeiro? Oh! Infame fraude! O retrato que me mostraram era totalmente diferente!
Grande Khan: Que foi que aconteceu?
(O Imperador, em seu alvoroço, dá um passo para trás, tropeça nos degraus do trono e cai.)
Princesa: O Imperador caiu!
(Ajoelha-se novamente. Todos ficam assustados, enquanto o Imperador permanece imóvel. O primeiro a tomar providência é o Grande Khan.)
Grande Khan: Vinde ajudar!
(O Ministro e o Mestre-de-Cerimônia aproximam-se rapidamente e o ajudam.)
Imperador (baixinho): A moça…
Ministro (muito agitado, para o Grande Khan): Ó Senhor, nobre príncipe, se queres minorar o infortúnio deste dia, peço que deixes este recinto…
Grande Khan (atento, mas sem querer demonstrar suspeita): Nosso costume exige que prestemos auxílio em caso de acidente. Mas seguiremos os costumes desta corte. Esperamos que o Imperador se recupere logo.
Imperador: Vós todos… Ide…
(O Mestre-de-Cerimônia dá um sinal, e todos saem em ordem, devagar. Fica somente uma sentinela ao fundo.)
Grande Khan (levantando sua esposa, a moça): Estás chorando… Compreendo que estejas comovida. Mas agora já não estás sob seu domínio. Estás hoje ao meu lado, e minha mão sempre há de proteger-te!
(Saem os dois em companhia do Ministro da Corte. O Mestre-de-Cerimônia ajuda o Imperador a se erguer.)
Imperador: Dei ao Grande Khan a moça mais bela! Aquela que meus olhos nunca viram… Que todos saiam!  (Sobe os degraus do trono com esforço.) Que tragam aqui o Ministro! E que a Justiça alcance os culpados! Trazei o pintor algemado! Já!
(Alguns guardas saem. O Imperador se deixa cair no trono.)
Mestre-de-Cerimônia: Talvez tenha havido um engano infeliz, Filho Do Céu, uma terrível coincidência… mas sem culpa…
Imperador: Quem cometeu este engano, tem culpa. Houve má fé.
Ministro (retorna e se lança ao chão): Misericórdia, ó Supremo! Também fui enganado! Deixa-me perseguir esse crime até as últimas pistas…
Imperador: E, ao mesmo tempo, apagar as tuas próprias! Nós mesmos verificaremos isto!
Imperatriz (entrando, com movimentos rápidos): Que aconteceu, meu filho? Estás ferido?
Imperador: Mais gravemente, Alteza, do que diz o boato que te alcançou tão rápido. Mas curar-me não está no poder da arte médica.
(O pintor da corte é trazido, algemado.)
Imperatriz: Que há com ele?
Imperador (sem prestar atenção à pergunta): Ah! Em tua cara eu leio a tua culpa! (O Imperador se levanta.)
Pintor: Filho do céu, escuta-me! O Ministro…
Imperador: Nada ouvirei de ti! Levai-o! Já!
Pintor (enquanto é puxado para fora, e apontando o Ministro): Em tudo eu fui apenas o instrumento… Foi ele quem levou toda a vantagem.
Ministro (entre dentes): Mentiroso!
Imperador (ao Mestre-de-Cerimônia): Informa-me a respeito do que ele disser!
(O Mestre-de-Cerimônia segue o pintor. O Imperador desce lentamente os degraus do trono em direção ao Ministro, sem olhar para a Imperatriz, que recua para um lado, espantada.)
Ministro (erguendo-se um pouco): Supremo, deixa-me expiar essa culpa com um golpe de ousadia! A paz foi concluída – isto é verdade – com um Grande Khan que ainda está com vida… Um Grande Khan sem vida muda tudo…
Imperador: Como, que queres dizer com isso?
Ministro: Enquanto o Grande Khan estiver dentro dos nossos muros, como hóspede, será bastante fácil transformar o Grande Khan num mudo Grande Khan.
Imperatriz (com preocupação crescente, observa a fisionomia do Imperador): Eu imploro ao meu filho imperial, não prestar ouvido a tais conselhos. A paz foi feita. Temos de mantê-la por honra e segurança.
(O Imperador e a Imperatriz permanecem um diante do outro, numa agitação muda, até que, subitamente, o Imperador se volta com um movimento brusco e se afasta com grandes passadas para o fundo.)
Ministro (em voz baixa, para a Imperatriz): A Suprema Alteza talvez não esteja  ciente do que se trata aqui…
Imperatriz: Eu sei o suficiente!
Ministro: E sabe a Imperatriz que aquela escolha para a noiva do inimigo, por um acaso de especial perfídia, recaiu sobre a moça que nos foi mandada pelo monge?
Imperatriz: (assustada): Nada me informaram sobre isso…
Ministro: E o monge sumiu-se de uma vez…
Imperador (voltando para a frente): A decisão já foi tomada. Que morra o Grande Khan!
Imperatriz: Oh! Mas a desgraça há de cair então sobre nós todos!
Imperador: (ao Ministro): Levanta e vai! Mesmo que tenhas culpa, eu te perdoo, assim que nos prestares tal serviço.
(O Ministro da Corte se levanta e sai com uma profunda reverência.)
Imperatriz (com a mais intensa emoção): Ah, meu filho! Meu filho!
Imperador: Neste caso, o Filho do Céu tem livre arbítrio!
CENA X
Um rochedo saliente na floresta montanhosa, com ampla vista dando, de um lado, para altos picos, do outro, para vales profundos e planícies longínquas. Nuvens passam a meia altura pela paisagem. Um caminho, orlado de lanternas nas pedras, leva, por entre grossas árvores, até os grandes portais do templo. Atrás deles, no alto, vê-se um grande sino de bronze. O monge e o poeta, subindo da floresta, alcançam o cume. O poeta anda até a beirada externa da saliência e para.
Poeta: Como é radioso o mundo visto deste lugar tão alto! Descansemos!
Monge: Aqui, o descanso se oferece a todos nós. O guarda do portal recebeu ordem de só deixar passar aqui aquele que olha do alto da pedra para o mundo e, por livre vontade, dá-lhe as costas.
Poeta: Eu não sabia mais como o sol brilha! Deixa-me aqui saboreando um pouco a luz da vida!
Monge: A sombra segue a luz sempre que o espírito se encarna na matéria, assim como a respiração, que entra e sai.
Poeta: Parece que faz tempo que não respiro assim tão plenamente!
Monge: Guiei-te até estas alturas. Aprendeste as preces e o caminho da paz. O primeiro degrau tu já conheces. Mas nunca o mundo te chamou de volta! O velho da montanha escolheu bem, quando ele ergueu aqui, há muitos séculos, estes Portais da Iluminação.
Poeta: E aquele que transpõe estes portais recebe o dom do esquecimento?
Monge: Há uma grande diferença entre esquecer e superar. Aqui neste umbrais, nós separamos quem procura esquecer por pouco tempo de quem procura mesmo superar. Para este, uma vez transposto o umbral, voltar atrás é transformar-se em fórmula sem sentido algum. Quem busca iluminar o ser superior ficará longe do tempo e do espaço.
Poeta: E nunca poderá voltar ao rico mundo com seus sofrimentos? O ser superior reflete-se nele e se renova…
Monge (após longo silêncio): Aqui em cima supera-se a matéria. Eu te deixo sozinho. Se sentiste para onde é preciso seguir, então acha o caminho!
Poeta: E tu?
Monge: Adeus!
Poeta: Não mais os meus anseios te buscarão na paz desta montanha…
Monge: De todos os irmãos que aqui habitam, só o abade pode, com as vestes de um monge, ir pelo mundo, e usar a intuição para sanar o que for permitido, sem que saibam quem é. Na caminhada, leva o bordão que o velho da montanha usava quando se afastou dos homens…
(O monge levanta seu bordão com um gesto calmo. O botão de lótus brilha primeiro imperceptivelmente e, depois, nitidamente, enquanto o monge faz um suave gesto de bênção na direção do poeta.)
Poeta: Então és tu aquele que é chamado, por todo o povo da Terra Amarela, grande Sábio do Templo da Montanha, Pai de toda Clemência…
(O poeta ajoelha-se)
Monge: Filho, adeus! Quando todos os sinos ressoarem, é que a partida do abade está sendo anunciada…
(O monge desaparece no portal. O grande sino começa a soar. Enquanto o poeta permanece em silenciosa devoção, o coro dos sinos do templo aumenta pouco a pouco.)
CENA XI
Interior de um aposento do Templo das Provações. O Censor, tranquilamente sentado. Perto dele, uma mesa baixa, onde há documentos. Repique de sinos. O discípulo do templo entra.
Censor: Porque o grande sino, em tom solene,
tange agora neste local sagrado,
tirando-me de um sonho luminoso?
Discípulo: Então não sabes?
Censor: Como deveria,
se eu estava profundamente imerso
no iluminado sono da consciência?
 Discípulo: O som dos sinos atravessa o espaço
desta Terra Amarela. Vem dos vales
que dos montes do templo se avizinham.
É com todos os tons que eles ressoam
no momento em que um santo se transforma.
E na Terra Amarela todos rezam.
(O som dos sinos vai-se perdendo.)
Censor (para si mesmo):
O irmão achou a meta antes de mim.
(Ouve-se um barulho repentino a certa distância.)
Que barulho será este lá fora?
Ainda fazem barulho… mais barulho…
(O barulho aumenta. Gritos distantes. Sinais de alarme.)
Sons de luta bem dentro da cidade…
(O Censor se levanta e se dirige à entrada. O discípulo irrompe por ali adentro.)
Porque tremes?
Discípulo: Já tomam os palácios
de assalto! E o Grande Khan dizem ter sido
assassinado! E um bando de mongóis
agora estão vingando sua morte…
Eu te suplico, salva tua vida!
Censor: (tranquila e gravemente):
Não, filho, não! Quando o Filho do Céu
comete assassinatos, o Censor
chegou à sua hora derradeira!
Vê o selo do meu cargo! E vê meu traje
de seda negra!
Discípulo: (lançando-se aos seus pés): Oh, Senhor!
Censor: Ouviste o que ordenei! Depois podes cuidar
de tua vida! (para si mesmo) E o meu fim chegou!
(O discípulo sai pelo lado, enquanto o Mestre-de-Cerimônia entra ao mesmo tempo de frente, com passos apressados, deixando atrás a cortina aberta de par em par.)
Censor (ao Mestre-de-Cerimônia):
O Grande Khan foi morto?
Mestre-de-Cerimônia: Oh, não… apenas
levemente ferido. Sua esposa
jogou-se de permeio bem na hora,
evitando o punhal, que a ele apenas
feriu no ombro.
Censor: E o criminoso?
Mestre-de-Cerimônia:
Preso.
Disse que estava a soldo do Ministro,
que tudo planejara. E os mongóis
assaltaram então portais e muros.
Nem mesmo o Grande Khan pôde detê-los.
O Ministro da corte já morreu
de morte merecida.
Censor: O Imperador?
Mestre-de-Cerimônia:
Ordenou a defesa do interior
do palácio, e mandou-me à tua presença
para trazer-te um último pedido:
se queres convencer o Grande Khan…
Censor (aponta-lhe a porta de saída):
Mesmo que eu o quisesse, agora é tarde!
Olha as chamas! E há gritos de vitória!
Se o ataque se deu só porque o próprio
Imperador tornou isso possível,
por tal ato, ele até merece a morte!
E isso vale também para o Censor,
porque não foi capaz de defender
o direito!
(Afasta-se novamente da entrada. O discípulo retorna.)
Discípulo: Ó senhor, tu me pediste
este teu selo e o teu traje de gala…
 Censor: Eu vou vesti-lo, a fim de receber minha última hora.
Mestre-de-Cerimônia:
Vou tentar
servir no meu oficio, sendo o caso
de estar no trono o próprio Grande Khan.
Censor: Os tempos se cumpriram… Talvez possas
servir no novo Império…
(O Mestre-de-Cerimônia sai. As cortinas se fecham atrás dele. O Censor volta para o interior do aposento. Repara no discípulo, cuja presença ele esquecera e diz a ele:)
Ainda esperas…
Busca aquele que cura os teus doentes
e dize-lhe quem foi que te enviou!
E ele então te entregará um frasco
de cristal. Traz o frasco sem abri-lo.
Pois disso é que depende tua vida!
(O discípulo sai.)
Censor: Bárbaros não precisam de Censor.
Se destroem o Império, possa o templo
guardar o patrimônio dos antigos
conhecimentos.
(Ocupa-se em trancar os rolos de documentos. Toques militares nas proximidades. O Censor fica à escuta.)
Os bárbaros proclamam a vitória…
E, se devem considerar sagrados
os umbrais deste templo, ainda posso
me colocar à porta, em frente às lanças!
(Veste a roupa preta e toma na mão o grande selo. Abrem-se as cortinas de par em par. De cada lado aparecem homens armados que param respeitosamente, enquanto uma figura feminina se encaminha lentamente até o Censor. Atrás dela, fecham-se as cortinas. O Censor e a jovem princesa [a moça] ficam um diante do outro, em silêncio.)
Princesa: Que o digno e sábio Pai possa ceder
um pouco de seu tempo para mim
e para esta delegação que trago!
Censor: Tu és…
Princesa: A esposa de quem recebeu,
não por destino mas por culpa alheia,
uma herança que nunca procurou.
Censor: E o Filho do Céu…
Princesa: Morreu lutando.
Está vazio o trono dos dragões.
Meu esposo pergunta se não pode
encontrar-se com alguém da antiga casa,
que se disponha a conduzir o povo,
como fizeram seus antepassados.
Ele ouviu falar muito de teu cargo.
Censor: Que poderá saber um Grande Khan
a respeito do cargo de um Censor?
Se entendes qual a meta do Censor,
sabes o que anuncia a seda negra:
o Censor paga pelo maior crime,
ao fracassar na meta do alto cargo!
Princesa: Não deve, então sobreviver o cargo
tão alto, de Censor, para servir
num sentido supremo, e não apenas
num antigo direito?
Censor: O mais alto
direito do Censor é o banimento
que ele mesmo se impõe à sua vida.
Pois eu não sirvo para o Império novo,
por não saber, sequer, salvar o antigo.
Princesa: Se minha voz não consegue mudar
teus pensamentos, chamo voz mais forte!
(Ajoelha-se)
Sublime deusa da misericórdia!
Se somos fracos, tu então concede-nos
um sinal que nos mostre tua vontade,
pois tu deves reinar sobre a justiça!
(O Censor comtempla, contido, a oração da moça. Enquanto isso, torna a entrar o discípulo pela porta lateral, a princípio sem ser visto. Com o movimento da cortina, entra luz no recinto. Um raio oblíquo do sol da tarde ilumina a estátua da deusa Kuan-in, que até então estava oculta por total escuridão.)
Censor: Levanta teu olhar! A própria deusa
abençoa sorrindo o teu pedido.
(A princesa se volta para a estátua da deusa. Entrementes, o Censor chama o discípulo para dentro com um aceno.)
Muito obrigado. Nós não precisamos,
nesta hora, do frasco de cristal.
(Põe o frasco de cristal no armário debaixo da estátua da deusa, e se volta para a princesa, que se ergue. Enquanto o discípulo do templo deixa a entrada lateral e se extingue a luz sobre a estátua da deusa, abrem-se de par em par as cortinas da entrada principal. O Grande Khan está na soleira. A princesa corre ao seu encontro.)
O chamado foi feito! Estou a postos!
(Com passos pausados, o Censor vai ao encontro do Grande Khan e da princesa.)
CENA XII
A taberna no canal imperial, o lavrador, o taberneiro, aldeões e barqueiros às mesas. Claridade diurna. Por fim, o poeta, sozinho, um pouco afastado.)
Lavrador (pensativo): Se recordarmos o ano que passou… O Imperador, morto; o Grande Khan dos mongóis como novo soberano no trono dos dragões… O Censor Kung, cuja morte já era comentada, coordena os direitos junto ao trono…  A guerra acabou… A colheita foi salva…
Taberneiro: Precisamos ser gratos!
Lavrador: É verdade! Ainda lembras o dia em que nós todos tínhamos de fugir? O fogo em volta, os mortos lá na ponte… E agora estamos sentados em tua taberna sossegados…
Barqueiro: Naqueles dias, não passou por aqui um velho monge?
Poeta: Que estás dizendo dele?
Barqueiro: Eu só queria saber que fim levou.
Poeta: Hum… Um ser superior cruza conosco amistosamente, e nem notamos… Perguntamos então que fim levou…
Barqueiro: E aquela moça, sabeis o que se deu com ela?
Poeta (calmo): Não sei. Se ainda vive, pode ser que se lembre de nós, como alguém que recorda os bons momentos… Não me esqueci dessa moça, e a verdade é que: o que deixamos torna-se algo profundamente nosso; o que agarramos foge pelos dedos.
Arauto: (primeiro sem ser visto, passa pelo canal):
Para a barca dourada, abri caminho!
A Imperatriz da nova aurora rósea
mandou por todo o Império mensageiros
que procurassem o poeta Li,
cujas canções levaram alegria
aos seus ouvidos. Foi anunciado
também à Imperatriz que tal poeta
está escondido nesta região.
(Os presentes levantam-se de um salto.)
Poeta: Oh, não sacrifiqueis a minha paz! Deixai que a barca siga!
Lavrador: Se te buscam, vão encontrar-te! Gente demais conhece tuas canções!
Poeta: Mas que sabe essa gente das razões que me movem?
Taberneiro (que fora até o canal): O poeta reside em nosso meio!
Arauto: (fazendo parar a barca):
Para a barca dourada, abri caminho!
(A barca do arauto desvia para o lado, enquanto, no meio do canal, surge outra barca, dourada e toda ornamentada. Ela para. Desce dela o Mestre-de-Cerimônia seguido de dois servidores. As pessoas presentes formam um círculo atencioso. O taberneiro, com uma profunda reverência, aponta para o poeta.)
Mestre-de-Cerimônia: (encaminhando-se para o poeta):
És tu o poeta Li, cujo renome,
nesta Terra Amarela, não ecoa
só em pobres casebres, mas também
em palácios?
Poeta (em voz baixa):      Sobre isso nada sei…
Mestre-de-Cer.:   Quem criou as canções que nós ouvimos
os barqueiros cantarem sobre as águas,
lavradores no campo, e agora até
comovem os ouvidos da princesa…
Poeta: Às vezes uma voz me sobrevém…
De onde ela vem, que será feito dela…
Isso eu não sei…
Mestre-de-Cer.:  Tu és modesto. Ouve:
a Imperatriz da nova aurora rósea,
que com tuas canções frequentemente
se alegrou, cumprimenta-te e envia-te
um presente que vem acompanhado
de preciosos sinais de sua mão.
(Os dois servidores entregam ao poeta um estojo de charão vermelho e um rolo lacrado.)
Além disso, acrescenta esta mensagem:
Sabendo bem que a vida palaciana
não te agrada, desiste do desejo
de te ver nesta corte, mas te pede
que em qualquer parte deste vasto reino
te consideres sempre como hóspede
do Imperador. És livre para ir
até onde teus passos te levarem.
E eu saúdo-te em meu próprio nome. (inclina-se)
Poeta: Como externar meus agradecimentos
em palavras? Eu sou um homem pobre,
mas quem sabe ao casal imperial
darei graças por meio de um poema.
(O Mestre-de-Cerimônia torna a subir na barca. O povo o segue até a margem. A barca do arauto se colocara à frente e parte vagarosamente.)
Arauto: Para a barca dourada, abri caminho!
(A barca do arauto se perde de vista. O poeta fica só, na frente da cena.)
Para a barca dourada, abri caminho!
(A voz vai-se perdendo. Vagarosamente, também a barca do Mestre-de-Cerimônia se põe em movimento.)
Poeta: Qual será o presente imperial? (Abre o estojo.) Uma flauta de ouro… (Põe a flauta na boca e toca algumas notas.) Que lindo som! Ah, faz tanto tempo que eu me privei do claro som da flauta por ser aparentado com a tristeza. Agora ele ressoa para mim como livre de todos os pesares.
(Ele toca de novo. Entrementes, a barca do Mestre-de-Cerimônia se perde de vista. O povo ainda a olha da margem.)
Poeta: Que pode ainda a Imperatriz querer dizer-me neste rolo?
(Abre o rolo lacrado, solta uma pequena folha e lê):
“Nuvem de prata que a lua abraça
tal como um véu de amor…
Campo de prata suspenso n’água
a esperar pela flor…”
(À medida que lê, o poeta reconhece seus versos.)
Poeta: Foi esta a última canção, antes…
(Ele fica em total silêncio, perdido em sonhos. Nem vê as pessoas que estavam na margem e que voltam à taberna.)
Lavrador: Ele já não nos vê…
Barqueiro: E nem nos ouve!
Poeta: Pedi vinho para todos… o tanto que quiserdes! Só vos peço uma coisa: esquecei-me!
(O barqueiro abana a cabeça. O poeta continua a tocar a flauta.)
Poeta (começa a cantarolar baixinho, para si mesmo)::
“Minha cantiga suave segue,
água caída rolando leve.
Desliza lisa pela soleira,
não deixa queixas em sua esteira.
Lá dentro sonha o sábio sol…
Lá fora, longe, o rouxinol…”
(Prossegue improvisando na flauta.)
Taberneiro: Ele canta e verseja novamente…
Poeta:         “Branca escada vem descendo,
branca pérola imperial.
Lilás branco vai pendendo,
pavão branco em seu umbral.
Lótus branco, resplendendo,
ressurgiu no manancial.
Branca escada vem descendo,
a senhora imperial…”
Taberneiro: Parecem versos dedicados à jovem Imperatriz.
(A barca do arauto passa novamente.)
Arauto: Abri passagem para o Censor Kung!
Toda a Terra Amarela, ao seu chamado,
se inclina para o céu, de novo em paz.
Abri passagem para o Censor Kung.
Do sereno repouso vai em busca
nos bosques luminosos da montanha…
Abri passagem para o Censor Kung!
(A barca passa.)
Taberneiro: Saudemos o Censor! Com o melhor vinho, bebamos à sua saúde!
(As pessoas se levantam e se reúnem na margem.)
Arauto: (de longe):
Abri passagem para o Censor Kung!
(Aparece a barca do Censor. Ela está aberta e forrada de seda branca. O Censor, num assento elevado, como que dorme tranquilo. Devagar e sem rumor, a barca passa.)
Lavrador (ajoelhando-se): Que a obra do Censor seja louvada!
Taberneiro (ergue sua caneca): Ao grande Censor Kung, que trouxe a paz!
Todos presentes (menos o poeta): Salve o Censor!
Poeta (que se dirigira a um ponto mais elevado): Parai com vossos brindes em voz tão alta! Não percebestes que a morte já se uniu a ele? Ajoelhai-vos todos!
(O povo se ajoelha. A barca do Censor se perde de vista. O poeta recita):
“Não somos todos iguais às flautas – sopro fluindo –
Só quando um ser por nós perpassa – um ser divino…”
(Enquanto o poeta, como que perdido em sonhos, deixa ecoar nas pessoas suas últimas palavras, a peça chega ao fim.)
F I M

 

Sobre a escolha e envio da peça

Para escolher uma peça com objetivo pedagógico, estude bem que tipo de vivência seria mais importante para fortalecer o amadurecimento de seus alunos. Será um drama ou uma comédia, por exemplo. No caso de um musical, é importante que a classe seja musical, que a maioria dos alunos toquem instrumentos e/ou cantem. Analise também o número de personagens da peça para ver se é adequado ao número de alunos.

Enviamos o texto completo em PDF de uma peça gratuitamente, para escolas Waldorf e escolas públicas, assim como as respectivas partituras musicais, se houver. Acima disso, cobramos uma colaboração de R$ 50,00 por peça. Para outras instituições condições a combinar.

A escola deve solicitar pelo email [email protected], informando o nome da instituição, endereço completo, dados para contato e nome do responsável pelo trabalho.

 

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