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peça de M. Francis
baseada na epopéia de Torquato Tasso
tradução de Artur de Azevedo
adaptación de Ruth Salles
NOTA
A epopéia “Jerusalém Libertada”, de Torquato Tasso (século XVI), conta episódios da primeira cruzada romanceados pelo autor, como ele mesmo confessa no início, pedindo perdão à musa “se, por entre os relatos verdadeiros, / ponho nas folhas algum outro encanto”. Esta peça foi baseada nela. A cruzada em que Jerusalém foi libertada, em 1099, pregada pelo papa Urbano II, faz parte dos movimentos da cristandade para se libertar do poderio muçulmano. Antes, os muçulmanos permitiam aos peregrinos livre acesso aos lugares santos, mas com a tomada de Jerusalém pelos turcos seldjúcidas, vindos do Turquestão e com um fanatismo rígido, todo acesso foi vedado. Nessa época, a Igreja de Roma tinha seu tanto de mundanismo, o que causou a reação de personagens humildes e fervorosos, como Pedro o Eremita e São Bernardo, que também estimularam a ida a Jerusalém. Em seu ardente entusiasmo, os cruzados – assim chamados por causa da grande cruz que traziam pintada na armadura e no escudo – na verdade sonhavam com Jerusalém como uma Roma nova, mais cristã. O espírito cristão, porém, foi derrubado pela própria crueza dos combates. No entanto, os peregrinos, ao conhecerem os gregos, viram que havia outros cristãos, os ortodoxos, e também conheceram mais tarde, muçulmanos generosos, de alto nível espiritual.
Além disso, levaram para a Europa conceitos diferentes de cultura e arte, técnicas novas no plantio de cereais, além de algodão, musselina, divã, almofada (palavras de origem árabe) e o costume de fazer bazares (outra palavra de origem árabe). Também aprenderam a lidar com tarifas, impostos, e viram comunidades com critérios estatais, o que não existia ainda na Europa. Toda essa peregrinação de oeste para leste, apesar do horror das campanhas guerreiras e da posterior retomada de Jerusalém pelos muçulmanos, ampliou a visão dos cristãos e levou de leste para oeste um grande tesouro de cultura e arte. A pedido da professora da classe, Angela Mazur Chiessi, criei mais personagens femininas: três tecelãs do tempo, uma do Passado, outra do Presente e outra do Futuro, que abrem e fecham a peça; também criei uma aia para a sarracena Sadira e tomei a liberdade de mudar os nomes de algumas personagens muçulmanas da peça para nomes realmente de origem árabe, turca e persa. Esta é a segunda adaptação que faço desta peça, atualizando mais a linguagem e diminuindo os trechos em versos, a pedido da professora. A primeira adaptação foi feita em 1989, a pedido da professora Tiseko Yamagushi. Quanto à música, fiz duas sugestões de música árabe e música medieval francesa, mas deixo a escolha a critério do professor de música. A oração cantada que fiz para a cena 2 do Primeiro Ato é optativa. Por isso, deixei a letra só no fim da peça.
ruth salles
CARACTERES
Godofredo de Bulhões (duque)
Balduíno, seu irmão
Roberto da Normandia
Gernando (príncipe, filho do rei da Noruega; pode fazer depois o papel de Ajib)
3 Oficiais de Gernando
Tancredo
Pajem de Tancredo
Guelfo (conde)
Reinaldo, seu sobrinho
Francolim, escudeiro de Reinaldo
Três escudeiros cristãos
Ser celestial (pode fazer também o papel de Pedro o eremita)
Pedro, o eremita
Aladino, chefe sarraceno, rei de Jerusalém
Ajib e Omar, seus oficiais
Três escudeiros muçulmanos
Escravo de Aladino
Suleyman, sarraceno
Ismeno, mago sarraceno
Zadig, seu mudo
3 Seres das sombras (podem ser representados também pelas 3 tecelãs)
Tecelã do Passado
Tecelã do Presente
Tecelã do Futuro
Tamara, sarracena de origem persa
Sadira, sarracena de origem turca
Nuray, aia de Sadira (velha)
3 servas do reino das sombras
INTRODUÇÃO AO PRIMEIRO ATO
(Godofredo está na frente, a um canto, vestido como cruzado, olhando para longe, como personagem representativa da Cruzada. As tecelãs entram e falam, ora lendo em suas rendas, ora erguendo o rosto para o público, de início sem ver Godofredo, que permanece todo o tempo imóvel.)
TRÊS TECELÃS (entram tecendo e falam umas com as outras):
– Irmãs,
em nossa renda, todo o destino está escrito,
desde sempre até o infinito…
TECELÃ DO PRESENTE (adianta-se, tece e depois fala):
– O tempo Presente é o que vou tecendo…
E teço o que está acontecendo…
TECELÃ DO PASSADO (adianta-se, lê em sua renda e depois fala):
– Eu teci o Passado… Teci o que se passou
com quem para leste peregrinou…
TECELÃ DO FUTURO (adianta-se, pega a agulha para tecer, depois fala):
– Eu tecerei o Futuro.
Vou clarear o escuro
do que está para acontecer
a toda espécie de ser…
TRÊS TECELÃS (ao descobrirem a figura de Godofredo):
– Eis o Cruzado!
TECELÃ DO PRESENTE (a Godofredo):
– Cruzado! Teu peito encerra
o mais fervoroso ardor,
pois queres livrar a terra
onde andou Nosso Senhor.
Já que partes para a guerra,
seja Deus teu protetor!
TECELÃ DO PASSADO (a Godofredo):
– Tua coragem revoa,
te leva à terra bendita,
pois em teu ouvido ecoa
a voz de Pedro, o eremita.
Ela ressoa e ressoa
em tua fé infinita.
TECELÃ DO FUTURO (a Godofredo):
– Godofredo de Bulhões,
tu serás sempre lembrado
por todos os corações
que estiverem a teu lado.
Sucesso e decepções
tomarás por igualados,
e cumpre tuas missões
em Jerusalém, cruzado!
PRIMER ACTO
Escena 1
Noite de luar. Antigo cemitério de judeus nas cercanias de Jerusalém.
Godofredo, Gernando, Tancredo, Guelfo, Reinaldo, Balduíno, Roberto; depois, Aladino, Suleyman; Ismeno, seres das sombras; Sadira.
(Godofredo, a princípio impaciente, vê enfim chegarem seus seis companheiros.)
GODOFREDO (expandindo a preocupação): – Finalmente chegastes! (a seu irmão): – Francamente, Balduíno, que demora! Este antigo cemitério de judeus é um lugar perigoso.
BALDUÍNO: – Não há nada a temer aqui, meu irmão. Além disso, como vimos, a esta hora todos dormem em Jerusalém, não é mesmo, Roberto?
ROBERTO DA NORMANDIA: – De qualquer modo, sejamos cautelosos. Mas, que nos queres dizer, Godofredo?
GODOFREDO: – Sois meus principais, e tenho notado em vós menos ímpeto para a luta. Que vos sucede? Afinal, já fomos vitoriosos em Antioquia e em Niceia.
BALDUÍNO: – Estás enganado, Godofredo. Não descansaremos enquanto não libertarmos Jerusalém.
GERNANDO: – Só é preciso considerar que aqui o rei Aladino está mais firme em seu trono do que todos nós pensávamos.
TANCREDO: – O que Gernando diz é verdade. O Egito mandou reforços para Aladino. E Suleyman, o rei de Niceia, para se vingar da derrota, uniu, lá da Líbia, tribos árabes divididas e está agora com Aladino.
REINALDO (rindo e brincando): – Sei bem o que te preocupa, Tancredo… Ontem, na fonte, conheceste Tamara, a bela guerreira muçulmana, e teu coração está oprimido de paixão…
TANCREDO (zangado): – Ora, cala-te, Reinaldo!
GODOFREDO: – Então é por isso, Tancredo, que agora desprezas a luta?
TANCREDO: – De modo algum! Estou pronto para ir até o fim nesta campanha.
GUELFO (senta-se no chão): – Quando eram os árabes que dominavam a Palestina, eles permitiam que os cristãos visitassem os lugares santos, embora pagando um tributo. Mas agora, que o domínio é dos turcos, os peregrinos têm sido tratados com crueldade e correm mesmo risco de vida.
GERNANDO (senta-se também): – Guelfo tem razão. Os turcos incendeiam sempre as terras que alguns cristãos possuem aqui.
GODOFREDO: – Amigos… Se deixamos nossos lares e expusemos a vida aos perigos desta guerra em lugar tão distante, não foi para ganhar fama ou possuir terras. Foi para recuperar Jerusalém, o solo sagrado onde Cristo pisou!
REINALDO (senta-se): – Bem falado, chefe! Os sarracenos, sejam árabes, persas ou turcos, têm em Meca sua cidade santa. Nós também temos direito à nossa!
GODOFREDO: – Meu bravo Reinaldo, é isso mesmo! E, vós todos, tende ânimo! Amanhã é o momento decisivo. Devemos levantar acampamento ao raiar do dia. E que nossa marcha seja rápida, para chegarmos de surpresa à porta leste da cidade!
ROBERTO (também sentado, em voz baixa): – Silêncio… Alguém se aproxima…
REINALDO (levanta-se, olhando ao longe): – São sarracenos!
GODOFREDO: – Vamos embora depressa, companheiros! E que Deus nos dê a vitória! (todos os sete saem por um lado)
SULEYMAN (entra pelo outro lado, seguido de Aladino): – Este é o local que nos foi indicado, mas não há ninguém aqui, senhor.
ALADINO (olhando em volta): – Que lugar soturno e assustador, Suleyman…
SULEYMAN: – Se tivesses ouvido meu conselho, não terias vindo. És Aladino, o rei de Jerusalém, e deixas furtivamente teu palácio no meio da noite, para comparecer a uma entrevista combinada numa mensagem anônima!
ALADINO: – Mas pensa nas palavras estranhas que ela continha: “Esta noite, quando a lua tiver percorrido três quartos de sua carreira, vai ao antigo cemitério dos judeus; ali eu te darei os meios de triunfar do exército de Godofredo.”
SULEYMAN: – Ora, só há um meio de vencer Godofredo e seu exército: é combatê-lo com todas as nossas forças. Minha espada fará mais por ti do que esse ser misterioso que aqui vieste procurar.
ALADINO: – Cala-te, Suleyman. Tudo me diz que esse homem é daqueles que submetem a natureza à força de sua magia.
SULEYMAN: – Mas esse ente sobre-humano demora bastante; decerto pensou que virias sozinho e não ousa exercer em minha presença sua arte mentirosa.
ISMENO (surge súbita e misteriosamente): – Enganas-te, Suleyman. Estou aqui.
SULEYMAN (ergue a espada): – Fala, quem és tu? Responde ou morre!
ALADINO: – Espera, Suleyman!
ISMENO: – O gládio desse insensato vai quebrar-se em sua mão.
SULEYMAN (exasperado com o tom irônico de Ismeno): – És um impostor!…
(Arremete contra ele, quer feri-lo, mas sua espada se parte.)
ISMENO (rindo satanicamente): – Humilha-te, Suleyman, e compreende que existe um poder superior ao do homem. (a Aladino): – Aladino, fizeste bem em confiar em minha mensagem, porque desta entrevista depende teu triunfo ou tua ruína. Em vão tentarias a sorte nos combates; em vão tuas tropas, reunidas às de Suleyman, lutariam contra os soldados do Cristo. A vitória estava reservada para Godofredo; mais alguns dias, e Jerusalém cairia em poder dos cristãos.
SULEYMAN: – E que podes tu, sozinho, contra um exército inteiro?
ISMENO: – Que posso? À minha voz, aliam-se a mim os que têm, assim como eu, poderes mágicos. E, pela força dos meus encantamentos, abrem-se os mundos invisíveis, e disponho como quiser dos seres das sombras, como se fossem meus escravos.
SULEYMAN: – E que provas nos darás desse poder?
ISMENO: – Pois bem, olha! (toca uma buzina, que trazia presa à cintura)
SERES DAS SOMBRAS (surgem e evoluem em cena gritando): – Uh… uh… uh…
ALADINO (olhando as evoluções dos seres): – Que terrível espetáculo!
SERES DAS SOMBRAS (saem exclamando): – Ismeno!… Grande é o teu poder!…
SULEYMAN: (com desdém): – São seres das sombras. E o outro ser humano, de que falaste, que teria poderes mágicos também? Onde está ele?
ISMENO: – Onde está ela, deve-se dizer. É uma mulher, cheia de juventude e beleza. Que ela apareça, pois! (surge uma fumaça, à qual Ismeno se dirige):
– Fumo do grande mistério, ajuda-me a trazer aqui Sadira!
SADIRA (surge da fumaça e fala pausadamente): – Sou Sadira, sobrinha de Idraorte, governador de Damasco. O rei das trevas disse a ele que me mandasse aqui para te ajudar.
ISMENO (também pausada e solenemente): – Sadira, tu que tens, sob a aparência delicada, um pensamento forte, ouve o plano que será triunfante com tua ajuda!
SADIRA (no mesmo tom): – Estou pronta. Fala!
ALADINO: – Que prodígio!!
SULEYMAN: – Perdoa-me, Ismeno, teu poder é infinito.
ISMENO: – Sadira, terás o poder de inspirar amor ardente a todos que te contemplarem. Os corações mais ferrenhos não poderão resistir à tua beleza; cada um dos teus adoradores se julgará o único preferido por ti, e tu não amarás a nenhum deles.
SADIRA: – Sedução e indiferença…
ISMENO: – Mas não te deixes cativar por homem algum; porque, se cederes ao amor, tu te tornarás uma mulher como as outras e estarás exposta a todos os males que pesam sobre a humanidade.
SADIRA: – E que devo fazer?
ISMENO: – Ir ao acampamento de Godofredo. Ali, diante de teus encantos, os principais hão de romper seus juramentos e desobedecer à voz de seu chefe. Um só, talvez, te resista: será Reinaldo. Esse jovem e valente guerreiro, o terror de nossos soldados, é o mais perigoso de todos os defensores da cruz. Se ele escapa às tuas ciladas, estaremos irremediavelmente perdidos!
SADIRA: – Como todos os outros, Reinaldo sucumbirá.
ISMENO (bate-lhe com uma varinha mágica): – Sadira! Que a terra e o reino das sombras se submetam à tua voz!
(Trovão. Os seres das sombras reaparecem e evoluem em cena.)
SERES DAS SOMBRAS: – Uuuuh… Sadira, irmã! Nós te rendemos homenagem!…
escena 2
O acampamento dos cristãos, com tendas dos lados, se possível.
Pedro, o eremita; Godofredo, Balduíno, Roberto, Gernando e seus 3 oficiais, Tancredo e seu pajem, Guelfo, Reinaldo, seu escudeiro Francolim e mais 3 escudeiros; Ismeno; depois, Sadira e sua aia Nuray; mais tarde, o Ser celestial.
(Os cristãos estão ajoelhados, de cada lado do acampamento. No centro, Pedro, o eremita os abençoa. Eles tocam com a testa no chão, depois se erguem. Após a bênção, dizem sua fala ou cantam a oração, que está no fim da peça.)
PEDRO, O EREMITA (abençoa): – Cavaleiros de Cristo! Que Deus vos socorra!
CORO DE CRISTÃOS (erguendo a cabeça): – Ó Senhor, dá-nos coragem!
PEDRO, O EREMITA (entrega a Godofredo a bandeira com a cruz): – Godofredo de Bulhões, nobre chefe deste valoroso exército, meus olhos ainda verão este sinal redentor brilhar sobre os muros de Jerusalém.
GODOFREDO (já de pé): – Jerusalém é para nós cidade santa, escolhida por Cristo para morrer na cruz, ser sepultado e ressuscitar após três dias.
CORO DE CRISTÃOS (só os chefes, já de pé): – Suportaremos o que vier. Não queremos honras fáceis e bem sabemos que muitos vão aqui perder a vida.
CORO DE CRISTÃOS (mais os oficiais, escudeiros e pajem): – Mas, se morrermos onde o corpo de Cristo foi sepultado, teremos fim feliz. Não choreis nossa morte!
GODOFREDO (após um instante de silêncio): – Soldados, aparelhai as armas para amanhã! Jerusalém não cairá ao primeiro assalto. Suleyman, nosso inimigo implacável, já vencido uma vez por nós em Niceia, nos fará pagar caro por sua derrota. Nossas tropas, além disso, precisam de repouso.
(Pedro, o eremita, os oficiais, escudeiros e pajem entram nas tendas, menos Francolim, que sai. Godofredo, em cena imóvel, parece dar ordens aos principais.)
ISMENO: – Aqui, torno-me invisível, e ninguém me ouve. (pausa) – Valentes soldados, que acreditais serdes já nossos dominadores, antes de uma hora tereis desprezado vosso general e profanado vossa bandeira, porque a inveja, o ciúme, o ódio e a revolta formam o cortejo de Sadira, e Sadira já pisa vosso acampamento.
GODOFREDO: – Reinaldo, Gernando, e tu, Tancredo, segui-me! Vamos apressar nossos preparativos; é preciso que as máquinas de guerra derrubem os baluartes que Suleyman tentará defender. (Godofredo e os outros vão sair, mas ouvem-se vozes e uma trombeta avisando de algo repentino) – Que significa este grande alvoroço? – Reinaldo, chama teu escudeiro. Ele saiu por aí. Há de saber o que acontece.
REINALDO: – Francolim!!
(Os soldados saem das tendas e ficam de prontidão. Francolim entra correndo.)
GODOFREDO: – Que aconteceu? Aladino ataca nossas trincheiras?
FRANCOLIM (meio sem fôlego, de tanto correr): – Graças… ao céu…, senhor…, o sarraceno não pensa em nós; no entanto…, o pessoal sai das tendas, chefes e soldados se acotovelam… para admirar uma jovem estrangeira que acaba de chegar. (consigo mesmo) – Céus, como corri!
GODOFREDO: – Uma mulher?
FRANCOLIM: – Sim, senhor!… E, por São Lucas, meu patrono, ela é a flor das obras de Deus!… Uma princesa coberta de jóias da cabeça aos pés! Está pedindo para falar ao general dos cristãos; mas todo mundo quer vê-la, falar com ela…; a multidão cada vez aumenta mais ao seu redor!
GODOFREDO: – Quem será essa estrangeira?
GERNANDO: – Senhor, eu servirei de guia a ela até aqui. (ele sai)
FRANCOLIM (aos guerreiros; rumor de vozes lá fora): – Não estais ouvindo essas aclamações? É um delírio, um entusiasmo dos meus pecados. Eu mesmo estava um pouco tonto. Essa princesa tem um olhar que amarrota a alma da gente.
GODOFREDO (ouvindo gritos): – Agora ouço gritos de terror.
REINALDO (olhando ao longe): – A multidão espantou os cavalos que puxam o carro da jovem. Eles dispararam e correm em direção a um abismo!
TODOS (menos Godofredo): – Vamos lá depressa!
ISMENO (sempre invisível e sem ser ouvido): – Godofredo, foi só Sadira aparecer, e ficaste só. Ao teu valor e à proteção divina que te cerca, eu oponho uma mulher, e tu serás vencido.
(Ao som de aclamações de fora, os guerreiros voltam à cena à frente de Sadira, que entra pela mão de Gernando e seguida de sua aia Nuray.)
GERNANDO: – Senhora, não sei se confundo o terreno com o celeste, pois o céu te veste de mais luz do que a nenhum outro ser mortal. Explica-me, pois, quem és, para que eu te conheça e te ofereça minha adoração.
SADIRA (altiva): – Senhor, não tenho esse mérito excessivo, nem me cabem tais louvores. Sou mortal, sim. (volta-se para Reinaldo): – Senhor cavaleiro, tu nos salvaste a vida, lançando mão da brida de meus cavalos, que iriam despedaçar o carro. Posso saber o nome do meu generoso salvador?
REINALDO: – Sou Reinaldo, senhora. (guia-a até Godofredo) Apresento-te nosso general.
SADIRA (inclina-se diante de Godofredo): – Estrangeira e fugitiva, senhor, venho com minha aia Nuray implorar asilo e proteção. Embora nascida na religião que pretendes aniquilar, ouso solicitar teu auxílio em minha desgraça.
GODOFREDO: – A desgraça, senhora, tem sempre direito à nossa proteção. Que pode fazer por ti o general dos cristãos? Fala!
NURAY (enquanto Sadira silencia, fingindo timidez): – Quando souberes quem é minha senhora, adivinharás que socorro te pede. Ela é Sadira, filha do rei de Damasco. Seus pais morreram quando ela era ainda criança, deixando o reino entregue nas mãos de um tio. Este viu-a crescer e projetou o casamento dela com seu filho, homem vil e grosseiro. (fala indignadamente) Diante da recusa de Sadira, seu primo usurpou o trono e nos expulsou, ameaçando-nos de morte. O povo de Damasco, entretanto, suporta com impaciência o jugo de seu primo e chama-a em altos brados para tomar as armas.
SADIRA (fala modestamente): – Eu, pobre mulher que sou, não posso assumir a liderança de meu povo e combater com ele. Senhor, dá-me alguns de teus guerreiros… O terror marchará adiante deles, e eu serei vencedora. (vai-se animando) Um guarda de Damasco prometeu abrir para mim uma porta secreta e introduzir-me à noite no palácio. Disse-me que a empresa terá bom êxito se eu conseguir socorro, pois todos conhecem o valor dos cavaleiros cristãos.
GODOFREDO: – Senhora, eu te daria o que pedes, se nosso primeiro dever não fosse libertar o povo de Deus e hastear nestas muralhas o pendão de Cristo.
1º OFICIAL DE GERNANDO: – Senhor, não se esquiva ao serviço de Deus aquele que ampara uma inocente donzela.
GODOFREDO (ao oficial): – Silêncio! (a Sadira): – Senhora, não vou assumir o peso de minha recusa sozinho. O Conselho, reunido, vai decidir.
2º OFICIAL DE GERNANDO: – É dever de cavaleiro socorrer uma dama.
GODOFREDO (ao oficial): – Silêncio! (a Sadira): – Até que a resposta do Conselho seja conhecida, esta tenda, que pertence a Reinaldo, será para ti um asilo seguro. Em pouco tempo terás nossa decisão. (ele sai)
3º OFICIAL DE GERNANDO: – Que não se diga na França que fugimos aos riscos de uma obra justa.
REINALDO: – Sossegai, companheiros. Vamos ao Conselho e respeitemos o resultado, seja ele qual for.
(Reinaldo sai; todos os outros o seguem lançando a Sadira olhares de interesse e amor. Sadira se reclina nas almofadas da tenda de Reinaldo, com Nuray a seus pés. Ismeno, que estava escondido, vem ficar ao lado dela.)
ISMENO: – Sadira, a conquista de Jerusalém não é mais o principal pensamento desses cavaleiros. Estou satisfeitíssimo com minha obra! (esfrega as mãos)
SADIRA: – Que é muito imperfeita: pois, para quê tenho tantos poderes se também tenho toda a fraqueza de uma mulher? (suspira)
NURAY: – Reinaldo mal respondeu a teu agradecimento, e isso feriu-te, não foi?
ISMENO (severo): – Sadira, acautela-te, já disse. Que o amor não se apodere de teu coração, pois assim que pronunciares “eu amo” todo o teu poder se dissipará.
SADIRA: – Não há o que temer, mestre. Terei cuidado. Governar os homens, os elementos e até o próprio reino das sombras, esse é o meu poder. Não vou trocá-lo pelo amor de um homem.
ISMENO: – Muito bem. Assim farás mais por Aladino do que Suleyman com todo o seu exército. Zadig, meu demônio particular, que pode tomar todas as formas, está também no acampamento dos cristãos, semeando discórdias. – Cristãos! Nem chegareis a ver o túmulo de Cristo, que viestes libertar!
FRANCOLIM (entra falando sozinho): – Francolim, Francolim… Meu amo, quando grita por mim, é só por esse apelido horrível. Meu nome é Franco, nome forte, nome leal! Francolim… Francolim é uma perdiz, um tipo de galináceo sem futuro… (vê de repente Sadira) Oh! Lá está aquela deusa dos meus pecados…
ISMENO (ocultando-se): – Sadira, quem é aquele homem?
FRANCOLIM (consigo mesmo): – Que estranho… Agora que estou na frente dela, minha língua parece que grudou no céu da boca…
SADIRA (a Francolim): – Que queres tu conosco?
FRANCOLIM (com um joelho em terra): – Eu… sim… Deixa-me falar-te de joelhos, senhora princesa… mas não olhes para mim! Nos teus olhos há qualquer coisa que faz um coração pegar fogo. Senhora princesa, pediste ao nosso general alguns cavaleiros que fossem expulsar teu primo, esse que fez a barbaridade de te destronar. Sou um simples escudeiro, real senhora, mas deixarei ao desamparo o acampamento dos cristãos por tua causa. Aceita-me como um de teus defensores. Desprezarei até meu próprio amo…
SADIRA (interrompe-o): – E quem é teu amo?
FRANCOLIM: – É Reinaldo. Somos da mesma terra. Senhora, de hoje em diante, serei valente e corajoso, lutarei contra teus inimigos, matarei teu bárbaro primo, só porque desejo ser o escudeiro da bela Sadira…
SADIRA: – Aceito teus serviços.
FRANCOLIM: – Muito obrigado, senhora minha! (à parte, com as mãos e a cabeça voltadas para o céu): – Que minha alma se cuide!
GERNANDO (entra com seus oficiais): – Bela Sadira, não deves esperar nada de Godofredo. Ele recusa o socorro que imploraste.
SADIRA: – Recusa?!!
GERNANDO: – Mas nós enfrentaremos sua proibição. Eu, Gernando, filho do rei da Noruega e voluntário neste exército, posso romper os laços que nos ligavam e oferecer minha espada à princesa de Damasco.
OFICIAIS DE GERNANDO: – Nós te acompanhamos.
SADIRA: – Nobres cavaleiros, mas que dirá vosso general?
GERNANDO: – Que nos importa? Não somos mais seus soldados, somos teus escravos. (ajoelham-se aos pés de Sadira)
ISMENO (à parte, a Sadira): – Esta é a primeira vitória.
SADIRA (à parte, a Ismeno): – Mas é Reinaldo que quero ver aos meus pés.
ISMENO (à parte, a Sadira): – Ei-lo!
REINALDO (entra, enquanto Francolim se esconde atrás da tenda): – Que está acontecendo aqui? Os soldados de Cristo aos pés desta mulher? Guerreiros, por meu intermédio, Godofredo vos ordena que renuncieis a esse plano insensato.
GERNANDO: – Pois bem! Dize-lhe que Gernando e seus oficiais não o reconhecem mais como chefe e se dedicaram à causa da princesa de Damasco.
REINALDO: – Estais todos loucos? (a Gernando, que puxa a espada): – Ah, sacas da espada? Pois eu também usarei a minha!
(Os oficiais de Gernando querem lançar-se contra Reinaldo. Gernando o impede.)
GERNANDO: – Ide com Sadira! Bastarei eu só para castigar este orgulhoso!
(Os oficiais saem, conduzindo Sadira e Nuray para fora. Francolim vai atrás, na ponta dos pés. Ismeno sai, invisível. Gernando cai logo aos golpes de Reinaldo.)
TANCREDO (entra): – Que fizeste, Reinaldo?
REINALDO: – Puni o insolente, o amotinado.
TANCREDO (zangado): – Foste muito imprudente! Não pensaste que agora os oficiais de Gernando irão matar-te?
REINALDO: – Já enfrentei a morte mil vezes nos combates com os infiéis.
TANCREDO: – Mas não deves recebê-la de um braço cristão. Reinaldo, eu não te daria um conselho que fosse contrário à honra: em nome de Godofredo, de Guelfo teu tio, de todos os teus companheiros, não afrontes o furor dos oficiais de Gernando. Parte! Afasta-te deste acampamento, do qual és a melhor espada e o melhor coração… Serás chamado assim que for preciso vencer.
REINALDO (indignado): – Eu, fugir dos oficiais de Gernando? Impossível!
TANCREDO: – Assim é preciso. (ouvem-se gritos fora) Eles vêm vindo aí! Em nome de Deus, Reinaldo, parte! Tu não deves morrer aqui. Tu serás necessário para nos conduzir à vitória. Vai! Eu fico, para proteger tua retirada. (Reinaldo sai.)
OFICIAIS DE GERNANDO (vendo-o caído): – Gernando!
1º OFICIAL: – Onde está Reinaldo? Ele se atreveu a atacar o príncipe da Noruega. Cometeu um crime sem perdão e deve ser punido. É réu de morte!
TANCREDO: – Reinaldo partiu.
3º OFICIAL: – Justiça! Godofredo tem de mostrar justiça. Morte a Reinaldo!
SER CELESTIAL (impõe seu escudo aos soldados, que se ajoelham): – Que não haja desavença entre irmãos. Todos vós sois indispensáveis à missão de Godofredo: a libertação de Jerusalém. Acalmai-vos e pensai no bem comum! (sai)
2º OFICIAL: – Que grande poder é esse que se aproximou de nós?
1º OFICIAL: – Não sei… Vamos embora, companheiros. (saem carregando Gernando, pelo lado por onde saiu Sadira. Tancredo sai pelo outro lado.)
SEGUNDO ACTO
Jardim diante da porta do palácio de Sadira
Três servas vindas do reino das sombras; Francolim; Sadira, Nuray e Zadig, o mudo; Rinaldo; seres das sombras, Tancredo, Tamara, o Pajem.
1ª SERVA: – Então está resolvido que voltaremos para o reino das sombras?
2ª SERVA: – Infelizmente. Sadira renuncia a triunfar de Reinaldo e resolveu retirar-se deste lugar encantador e nos enviar para os abismos.
3ª SERVA: – Ah, mas tão cedo?
2ª SERVA: – Só nos resta um dia. Mas, enquanto Sadira chora e se enraivece em seu palácio, nós, neste jardim delicioso, bebamos nosso vinho e dancemos!
(As três bebem de suas taças e começam a dançar. Dança das servas.)
1ª SERVA (ao cessarem a música e a dança): – Quem vem vindo ali?
2ª SERVA (olhando ao longe): – É Francolim. Um dos cristãos que seguiram Sadira, e o único também que ela não entregou ao cruel Aladino.
3ª SERVA: – O pobre rapaz é tão simplório… Sadira fez bem em reservá-lo para nosso divertimento. Lança-nos olhares tão lânguidos, suspiros tão ternos… (ri)
1ª SERVA (ao ver Francolim chegar): – Aproxima-te, nobilíssimo escudeiro, e aceita esta taça de vinho! (entrega-lhe a taça)
FRANCOLIM (à parte): – Ai, meus santos! Outra vez a tentação! (bebe)
2ª SERVA: – Queres mais, Francolim?
FRANCOLIM (com as mãos na cabeça, reclama): – Francolim, Francolim… Raios! Onde foi parar meu nobre nome? A culpa toda é do meu amo. Que sina!
2ª SERVA (oferecendo mais vinho): – Eu perguntei se queres mais.
FRANCOLIM: – Não… nada… Pode subir-me à cabeça e, com a fornalha que tenho aqui no coração, eu poderia andar tonto por aí e…
3ª SERVA (rindo): – Decididamente, estás apaixonado.
FRANCOLIM (suspira): – Sim… Ó Ásia! Teu sol é de gelo em comparação com os olhos de Sadira.
1ª SERVA: – O quê? É Sadira que tu amas?
FRANCOLIM (enlevado): – É ela… sois vós… sois todas vós… Sim, eu amo a todas. Se ainda fosse uma depois da outra… Mas, que posso fazer?
2ª SERVA: – Ora, vamos, deixa disso. Agora, escuta! Não tens nada de novo para nos contar?
FRANCOLIM (batendo com a mão na testa): – Sim, sim! Ainda bem que me lembraste. A rainha Sadira não vai mais partir. Depois de conversar com Zadig, seu mudo, ficou louca de alegria. Oh! Ali vem ela, com sua formosura… ai…
SADIRA (chega, com Nuray e Zadig): – Meu triunfo está próximo! Soube que Reinaldo, o invencível Reinaldo, se aproxima de meu jardim. Com certeza, dentro de alguns minutos serei senhora de sua sorte. Que a alegria reine entre nós!
1ª SERVA: – Viva Sadira!
2ª SERVA: – Viva nossa rainha vencedora!
3ª SERVA: – Viva a feiticeira do amor!
FRANCOLIM: – Minha soberana, aqueles terríveis seres monstruosos, que guardam o palácio, vão com certeza impedir a entrada de Reinaldo.
SADIRA: – Não. Zadig cuidou para que nada disso aconteça.
FRANCOLIM (coça a cabeça): – Ah, sim… Zadig… esse endiabrado mudo que o senhor Ismeno deixou aqui quando partiu para Jerusalém. A propósito, rogo-te, excelsa rainha, que digas a esse Zadig que me deixe em paz. Quando me entrego à minha natural melancolia… zás!… ele se escarrancha em meus ombros e…
(Zadig faz que vai atacá-lo, Francolim começa a fugir; nisto, Zadig olha ao longe e, por meio de gestos expressivos, avisa Sadira que Reinaldo vem chegando.)
SADIRA: – Já é Reinaldo que chega? (Zadig acena que sim)
FRANCOLIM (olhando de lugar mais alto): – É ele… Reconheço-o pelo capacete.
SADIRA (consigo mesma): – Que estranho… Sinto uma agitação que não consigo definir. Deve ser o medo de que Reinaldo me escape que me faz tremer assim. (para todos): – Afastemo-nos, todos nós. Vamos deixá-lo sozinho por instantes.
(Saem. Zadig cruza os braços de Francolim atrás e sai correndo com ele, que vai indo de costas, aos trambolhões.)
REINALDO (chega, dá alguns passos e pára): – Não vejo ninguém… E se for uma cilada? A mensagem que recebi dizia assim: “Reinaldo, entra no jardim desse palácio. Lá gemem, cativos, os guerreiros cristãos que abandonaram Godofredo para seguir a bandeira de Sadira.” Será uma mensagem falsa? Bom, esperemos que apareça alguém, amigo ou inimigo. (tira o capacete e se recosta na relva) Que jardim maravilhoso! Estou morto de cansaço…
(Reinaldo reclina a cabeça na relva e aos poucos adormece: ouvem-se os sons de uma música suave, e entram as três servas, que evoluem em cena e falam.)
1ª SERVA (entra com as outras duas): – Olhem! (ri) Reinaldo deitou-se na relva… e adormeceu.
2ª SERVA: – Portanto, cederá ao feitiço de nossa irmã. (para a 3ª): – Vai, vai… sorrateiramente… (diz essa palavra bem devagar)
3ª SERVA (faz cair pétalas de flores na cabeça de Reinaldo):
– Flor dormideira,
flor dormideira,
faz dormir Reinaldo
desta maneira…
TRÊS SERVAS (cantarolam e evoluem girando): – Nan-nan-nan, nan-nan-nan…
SADIRA (entra): – Pronto. O encanto surtiu efeito. Retirem-se agora. (as servas saem e Sadira fala consigo mesma, avançando com o punhal na mão): – Que ele não mais desperte! (arremete contra Reinaldo, mas de repente pára) Mas que perturbação é esta que se apossa de mim? Minha mão treme e não vibra o golpe! Devo compadecer-me dele, de um inimigo poderoso? Se o deixo viver, os cristãos, triunfantes, reinarão em Jerusalém! Que ele morra, pois! Mas, que ideia é esta? Sim, longe de mim este punhal. (joga fora o punhal) Sua morte não me basta! Rejeitou-me… Resistiu aos meus atrativos. Pois bem, que meus encantamentos o forcem a sentir amor por mim, e que meu ódio seja o prêmio de seu amor. (senta-se ao pé de Reinaldo e enxuga-lhe a testa com seu véu.)
REINALDO (desperta estremunhado e nem vê Sadira): – Ah, mas que sonho maravilhoso, que sonho misterioso e mágico… Parecia que aqui, perto de mim, havia uma mulher jovem e bela… Tudo ilusão. (nisto, ele vê Sadira) Será que estou ainda sob a influência do sonho?
SADIRA: – Reinaldo, não é um sonho. Não me reconheces? Sou Sadira.
RINALDO: – Sadira? Tu?
SADIRA: – Sempre injusto e cruel comigo.
REINALDO: – Não, não, Sadira! Caluniaram-te! Tua voz é tão doce e tão suave… Não podes enganar a quem te ama.
SADIRA (consigo mesma): – Já me pertence!
REINALDO (erguendo-se): – Ah, Deus não pode ter escondido um coração pérfido sob as formas de um anjo… Tu te calas?… Deixa-me ler em teus olhos, nesse espelho da alma… Mas, por que os abaixas?
SADIRA (sem olhar em seus olhos): – Meu belo cavaleiro, na sala dos festins tudo está preparado para homenagear o grande guerreiro Reinaldo. Entra comigo. (chama Zadig e lhe fala à parte): – Não deixes que Francolim seja visto por seu amo Reinaldo. (Zadig inclina-se e sai; Sadira dirige-se a Reinaldo): – Esse que viste é meu pajem. Podemos contar com sua discrição.
REINALDO: – Ele tem, então, muitos segredos para guardar?
SADIRA (com intenção na voz): – Talvez…
(Assim que os dois entram pela porta do palácio, Francolim corre pelo jardim perseguido por Zadig, sumindo pelo outro lado. Surgem os seres das sombras, que se agrupam no fundo da cena, parecendo querer atacar um inimigo comum. Com efeito, logo chegam a guerreira Tamara, com Tancredo e seu pajem. As servas das sombras entram pela frente e observam, falando.)
1ª SERVA: – Olhai! Chegou a guerreira Tâmara, com Tancredo e seu pajem!
2ª SERVA: – E Tancredo traz com ele um escudo inquebrantável, brilhante como um espelho, e um cetro de ouro!
3ª SERVA: – Aaahhh… Esse cetro tem o poder de aniquilar os encantamentos de Sadira e de libertar Reinaldo!
1ª SERVA: – E o pajem traz uma espada, uma espada para Reinaldo! Oh, socorro!
(Elas evoluem e saem. Os seres das sombras arremetem contra os três guerreiros em terríveis evoluções. Tancredo mostra-lhes o cetro, e logo eles somem rugindo.)
TAMARA (quando a cena se acalma): – O palácio é este. Daqui por diante seguirás sozinho com teu pajem.
TANCREDO: – Não sei como te agradecer, bela Tamara, por me teres guiado até aqui. Sei que vieste da Pérsia, onde lutaste, e do Egito, onde cresceste, mas dize-me por que, ajudando-me nesta busca, agiste em favor de um guerreiro cristão e em prejuízo da princesa de Damasco, uma infiel como tu?
TAMARA: – Para mim, audacioso Tancredo, os infiéis sois vós, os cristãos.
TANCREDO: – Perdoa a linguagem do guerreiro, mas responde à minha pergunta.
TAMARA (um pouco sem jeito): – Ajudo-te porque… me desagrada uma mulher que usa encantamentos para cativar um homem. A sinceridade e o amor valem muito mais.
TANCREDO (sorrindo): – Mas atendeste tão depressa à aflição de um guerreiro cristão…
TAMARA (mais atrapalhada): – Ora… é por seres um homem de bem … assim como Reinaldo…
TANCREDO: – Mas Reinaldo é guerreiro famoso e, estando livre de Sadira, será um perigo para teu exército.
TAMARA: – Também temos guerreiros famosos!
TANCREDO: – Tu, inclusive.
TAMARA: – Bem… Continua tua busca. Adeus! Logo nos encontraremos lutando em campos opostos, como inimigos.
TANCREDO: – Sim, infelizmente… Mas quem sabe, depois da guerra terminada, poderemos nos encontrar sem armas na mão, como amigos.
TAMARA: – Quem sabe, cristão… Mas, adeus! Alá te guarde.
TANCREDO: – E que Deus te proteja. Adeus! (ela sai)
(Do outro lado da cena estava postado discretamente o pajem de Tancredo, que acena para ele, chamando-o.)
TANCREDO (ao pajem): – Agora, que estou certo de tua discrição, posso revelar-te tudo. Esta noite um eremita veio procurar-me em minha tenda e disse: “Tancredo, teu amigo, o invencível Reinaldo, caiu em poder de Sadira. Escravo de um amor louco, ele esquecerá seu dever mais sagrado, a causa dos cristãos; cabe a ti a missão de libertá-lo e de conduzi-lo de volta ao exército de Godofredo, que sem ele jamais entrará na cidade santa.” Depois, esse misterioso protetor deu-me este cetro de ouro, que afastou todos os obstáculos que encontramos. Deu-me também este escudo, que é o espelho em que Reinaldo há de recuperar sua energia e seu amor pela empresa de Godofredo, que é libertar Jerusalém. E ainda me entregou a espada que trazes para ser dada ao próprio Reinaldo.
PAJEM: – Sim… Mas quase te perdeste no caminho. Se não fosse a nobre guerreira infiel…
TANCREDO: – É verdade. E pensar que vamos lutar em campos opostos… Mas depois… tu verás, há de haver um depois para nós dois!
PAJEM: – Alguém se aproxima, não estás ouvindo?
TANCREDO: – É ele! É Reinaldo! (Tancredo e o pajem se afastam um pouco)
REINALDO (desarmado e coroado de flores): – Faltava-me o ar dentro do palácio. Tinha necessidade de respirar um pouco, neste jardim. Mas ainda aqui a imagem de Sadira está diante de meus olhos!
TANCREDO (consigo mesmo): – Insensato!
REINALDO (vê Tancredo, mas custa a reconhecê-lo): – Céus! Um cavaleiro! Armas!… Parece Tancredo!!
TANCREDO (aproxima-se): – Sim, é Tancredo, que vem dizer a Reinaldo que ele esquece seu dever, para ficar aos pés de uma mulher.
REINALDO: – Se tu visses Sadira, havias de me perdoar, amigo.
TANCREDO: – Não, não. Minha amizade não pode ver com indulgência tua criminosa fraqueza. Olha-te neste espelho da verdade. (apresenta-lhe o escudo; Reinaldo perturba-se, e Tancredo persiste empunhando o escudo) Por que tens flores na cabeça em vez do capacete dos combates? Por que grinaldas em vez de espada? Mal posso crer que és Reinaldo, o mais firme apoio da causa de Godofredo.
REINALDO (põe as mãos na cabeça, caindo em si): – Tancredo!!
TANCREDO: – Reinaldo, o exército clama por tua volta. Nosso general te perdoa. A vitória te espera nos muros da cidade santa. Vem!
REINALDO (totalmente desperto, afinal): – Sim, vamos! Dá-me uma espada!
(Tancredo lhe passa o escudo, e o pajem lhe entrega a espada.)
TANCREDO: – Finalmente eu te reconheço, Reinaldo.
REINALDO: – Mas, partamos logo. Fujamos deste lugar, testemunha de minha fraqueza!
SADIRA (aparece, chamando): – Reinaldo! Vais partir?
REINALDO: – Sim, é preciso, um motivo sagrado me chama.
SADIRA: – Mas… e teu amor? Juraste jamais deixar-me…
REINALDO: – Sadira, o dever ordena-me que parta.
SADIRA: – Não!! Não partirás! (com força, aos seres das sombras): – Vinde em meu auxílio, seres das sombras! (nenhum dos seres aparece)
TANCREDO (arrasta Reinaldo): – Vem, não tenhas receio. Contra nós seu poder agora é nulo.
SADIRA (grita): – O reino das sombras recusa-me seu apoio! Meu poder foi vencido!… (vendo que Reinaldo se afasta) Reinaldo, não partas! (corre em sua direção) Espera, que ao menos por um instante eu possa falar-te! Não vês que meu sofrimento não é fingido? (cai de joelhos) Ai de mim! Caí no laço que te armei. Sim, eu te amo!
TANCREDO: – Vamos, amigo. Não devemos continuar aqui por mais tempo.
REINALDO (com pena): – Sadira!
SADIRA: – Se vais mesmo partir, deixa-me seguir-te como escrava. Desviarei os golpes do inimigo, morrerei por ti! Reinaldo, piedade, responde!
REINALDO: – Sadira, meu coração também sofre; mas é preciso que nos separemos.
SADIRA (ergue-se e diz com força): – Pois bem, seguirei teus passos não como apaixonada, não como escrava, mas como inimiga implacável!
REINALDO: – Tancredo, partamos depressa!
TANCREDO: – Segue-me , então. (saem os dois e o pajem)
FRANCOLIM (surge correndo): – Ai, este mudo, este Zadig me mata! (vê Reinaldo): – Meu amo, socorro, espera por mim! (mas Zadig o segura e o arrasta para fora)
SADIRA (chama alto): – Zadig! (este reaparece depressa) Zadig, estou de novo com o poder do reino das sombras. Vai buscar os seres infernais! (Zadig sai e volta com as servas e os seres das sombras) Que nenhum vestígio deste palácio sobreviva ao meu amor. Derrubai tudo! (ela sai, seguida de Zadig)
(As servas e os seres das sombras evoluem ao redor, murmurando “uh, uh”, enquanto se ouvem ruídos fortes, e a escuridão vai tomando conta de tudo.)
TERCEIRO ATO
Escena 1
Sala do palácio de Aladino. À esquerda e à direita uma porta. No fundo, uma larga janela dando para a cidade e deixando ver os zimbórios das mesquitas.
Aladino e seu escravo; os oficiais Ajib e Omar; Ismeno, Suleyman, Sadira, Nuray.
(Aladino está recostados em coxins. O escravo o abana com um grande leque. Ajib e Omar aguardam suas ordens.)
ALADINO: – Que se aproximem os meus oficiais Ajib e Omar! (os três se aproximam): – Tu, Ajib, previne ao poderosíssimo Ismeno que redobre de esforços, para que surta bom efeito o novo encantamento que ele me prepara em seu misterioso laboratório; não o perturbes, pois de seu trabalho talvez dependa a salvação do meu império. (Ajib sai; Aladino dirige-se a Omar): – Tu, Omar, vai dizer a Suleyman que eu quero vê-lo antes da hora do combate. (Omar sai)
ISMENO (entra): – Aqui estou, Aladino. Tem esperança. Godofredo quer dar o último assalto à cidade; mas amanhã vai ser erguido um baluarte novo e invencível, porque não será obra dos homens.
ALADINO: – Ismeno, qual o tesouro que te posso dar, para manifestar minha gratidão?
ISMENO: – A recompensa há de ser o sucesso do meu empreendimento! Aladino, eu te sirvo porque desafiei o Deus dos cristãos, desafiei sua onipotência. As armas que me pediste para Suleyman estão prontas. Coberto com elas, ele pode desafiar os mais valentes cavaleiros; todas as espadas se quebrarão contra esse aço mágico.
ALADINO: – Obrigado, Ismeno. Depois de ti, Suleyman é meu apoio mais seguro e mais fiel! Ele me pediu a liberdade dos cristãos que Sadira nos entregou por traição, disse ele. Eu não podia aprovar esse ato de generosidade, que aumentaria o número de meus inimigos. Suleyman, então desafiou para um combate singular os mais valentes cavaleiros cristãos. Se ele triunfar, os prisioneiros continuarão escravos; se não triunfar, esses cristãos serão libertados. Foi para que eles não pudessem escapar que te pedi essas armas. Quero ver o que farão esses heróis, esses defensores da cruz!
ISMENO: – Aí vem Suleyman.
SULEYMAN (inclina-se diante de Aladino): – Senhor, dei as ordens referentes ao combate singular. Vamos mostrar todo o nosso poder. Guelfo foi escolhido pelo general cristão para assistir ao combate; os principais chefes cristãos estão impacientes por transpor nossas portas. Veem-se já suas bandeiras, e ouve-se o som de suas fanfarras.
ALADINO: – O desfecho desta luta é fácil de prever. Serás vencedor, meu Suleyman. Mas… a couraça que trazes me parece fraca. Por minha ordem, Ismeno mandou fazer outra. Com essa é que te quero ver revestido.
SULEYMAN: – Agradeço-te, senhor. Mas, se a mão de Ismeno tocou nessa armadura, ela não pode ser usada num combate leal.
ALADINO: – Recusas?
SULEYMAN: – Senhor, só posso dever a vitória à minha coragem, não a armas mágicas. Mais vale uma nobre derrota que semelhante triunfo.
ALADINO: – E quais são teus adversários? Guelfo enviou seus nomes?
SULEYMAN: – Enviou. Meus adversários são Roberto da Normandia, Balduíno, irmão de Godofredo, e Tancredo.
SADIRA (aparece ao fundo, velada, seguida de Nuray): – Reinaldo será também teu adversário, Suleyman.
TODOS: – Reinaldo?!
SADIRA: – Sim, ele se libertou dos laços que o prendiam.
ISMENO: – Sadira!!
SADIRA: – Sim, mestre. Não sou mais a bela e poderosa Sadira, que governava os homens e o reino das sombras.
ISMENO: – Agora, nada mais posso fazer por ti. Eu te avisei.
NURAY: – Senhor, não a abandones! Ela veio apenas te pedir vingança.
SADIRA: – Sim! É como diz Nuray, minha boa aia. Prometo meu amor e minha mão a quem me vingar de Reinaldo.
SULEYMAN: – E eu te ofereço meu braço. Ele te vingará.
ALADINO: – Só espero que Reinaldo chegue a tempo para o combate singular.
SULEYMAN: – Há de chegar. Bela Sadira, consente em assistir à luta! Tua presença redobrará minha coragem. Quero punir Reinaldo debaixo de teus olhos.
ALADINO: – Sim, minha filha, ficarás a meu lado. Tua beleza fará de ti a rainha do dia.
SULEYMAN (depois que soam as fanfarras): – Chegou enfim o momento decisivo!
escena 2
O campo em que se deve travar o combate singular. À esquerda, entre dois postes ou estacas onde flutuam os estandartes do crescente, ficam Suleyman e mais guerreiros sarracenos. À direita, o mesmo arranjo, com as bandeiras da cruz, para os cavaleiros cristãos. Ao fundo, um pavilhão ou palanque onde se sentarão Aladino e sua corte e mais Guelfo, representando os cristãos. Dos lados, nas pontas, lugar para os escudeiros dos 6 guerreiros e para os prisioneiros cristãos, que são Francolim e os oficiais de Gernando, que estão sentados a um canto, de cabeça baixa.
Aladino, Ismeno, Sadira, Nuray, Omar, Guelfo; Suleyman, Ajib, Tamara; 3 escudeiros muçulmanos; Balduíno, Tancredo, Roberto; 3 escudeiros cristãos; 3 oficiais de Gernando, Francolim; Reinaldo.
(Os muçulmanos já estão todos em seus lugares e mais os prisioneiros cristãos. Ao toque da fanfarra, entram Guelfo, que se dirige ao pavilhão de Aladino, e mais os 3 escudeiros cristãos com as armas e os três combatentes cristãos: Balduíno deverá lutar com Suleyman; Tancredo, com Tamara; Roberto, com Ajib.)
ALADINO (recebendo Guelfo): – Guelfo, teu nome e a fama de teu valor chegaram até meus ouvidos. Teu general escolheu dignamente seu representante para este momento. Amanhã, nossas cimitarras vão, talvez, embeber-se em vosso sangue; hoje, porém, deixamos de ser inimigos. Vem ocupar o lugar que te está reservado!
(Guelfo se inclina e se senta ao lado de Aladino. Todos os guerreiros se posicionam e recebem as armas de seus escudeiros.)
OMAR (levanta-se e proclama): – Cada combatente deve tocar o escudo do adversário com o punho da espada. Se Suleyman, Ajib e Tamara vencerem, os prisioneiros cristãos se tornarão seus escravos; caso contrário, eles serão libertados. A bela Sadira ofertará a coroa ao vencedor. E agora, como árbitro desta justa, afirmo que nenhum destes combatentes muçulmanos chamou em seu auxílio sortilégios ou malefícios. Praça, praça aos justadores!
(Os combatentes tocam os escudos dos adversários com o punho da espada, depois se colocam em posição de combate. Soam as fanfarras, e a luta começa. Os cristãos são aos poucos derrubados. Enquanto seus escudeiros os auxiliam, os muçulmanos soltam exclamações de entusiasmo.)
AJIB: – Caíram os cristãos! Os sarracenos são os vencedores!
SULEYMAN: – Para sua glória, basta-lhes dizer que lutaram conosco!
OMAR (levanta-se): – Se ninguém mais se apresenta, vamos declarar Suleyman vencedor.
TAMARA (ouve-se um toque de corneta ao longe): – Aguardai! Avisto um novo combatente!
ALADINO (erguendo-se): – Onde está, que não o vejo? Ah, sim, acaba de chegar.
(Surge um cavaleiro desconhecido, com a viseira do capacete abaixada. Ele se dirige a Suleyman e toca seu escudo com a ponta da espada.)
OMAR (ao desconhecido): – Tocaste seu escudo com a ponta da espada. É o combate sem tréguas que pretendes?
(O desconhecido faz sinal afirmativo. Um toque de fanfarra, e a luta começa. Vendo que Suleyman vai ser vencido e morto, Ismeno se levanta.)
ISMENO (exclama): – Guerreiros de Aladino, consentireis que Suleyman sucumba aos golpes de Reinaldo?
TODOS: – Reinaldo?!!
(Ajib e os 3 escudeiros colocam-se entre Suleyman e Reinaldo. Tamara fica de lado. Perturbação e desordem. Reinaldo ergue a viseira.)
REINALDO: – Sim, sou Reinaldo, e percebo que já não lutais com lealdade!
SADIRA (ergue-se): – Oh, sim, é Reinaldo! Ele vos ofende. Não o castigareis, então, por sua audácia?
ISMENO (exclama): – Morte! Morte a Reinaldo!
OS SARRACENOS (menos Tamara): – Morte a Reinaldo!
OS CAVALEIROS CRISTÃOS (já de pé e refeitos da derrota): – Às armas! Defendamos nosso irmão! (põem-se ao lado de Reinaldo)
GUELFO (ergue-se): – Aladino, eu te responsabilizo pelo sangue que vai correr!
SULEYMAN: – Parai! Isso é desonra para mim! Esta luta seria uma traição! Para trás, para trás! As leis deste combate valem tanto para ele como para mim. (para Reinaldo): – Aqui me tens, Reinaldo. Exiges minha vida? Dispõe dela como quiseres. És o vencedor! (aos prisioneiros, soltando suas mãos): – Cristãos, sois livres! Ajoelhai aos pés do vencedor!
REINALDO: – Suleyman, aceito a liberdade de meus irmãos; foi para isso que combati. Agora, deixa-me apertar tua mão. Cabe ao vencido a honra deste dia. Tua derrota foi um triunfo. (Os dois se apertam as mãos)
FRANCOLIM (corre com os outros prisioneiros cristãos para se ajoelhar diante de Reinaldo): – Ah, Reinaldo, meu querido amo, eu agora lhe devo minha vida! E confesso que escapei de boa!
GUELFO (dirigindo-se a Reinaldo): – Reinaldo, Godofredo te espera, e todo o exército anseia por tua volta. Vamos! (inclina-se diante de Aladino): – Ainda havemos de nos encontrar.
REINALDO (saindo com os outros cristãos): – Vamos!
SADIRA (ergue-se e fala consigo mesma): – Reinaldo, depois da espada, o punhal; depois de Suleyman, Sadira!
QUARTO ATO
Escena 1
O acampamento dos cristãos
Godofredo; Guelfo e os 3 oficiais de Gernando; Roberto, Balduíno, Tancredo e seu pajem; Reinaldo; depois, Francolim e os 3 escudeiros; por fim, o Ser celestial.
(Godofredo aguarda Guelfo que vem chegando, seguido dos oficiais de Gernando e de Roberto, Balduíno, Tancredo e seu pajem, todos cansados; após alguns instantes, chega Reinaldo, com passo firme.)
REINALDO (chega abrindo os braços): – Então, amigos… Aqui estou novamente com meus irmãos de armas!
ROBERTO: – Estamos felizes por tê-lo de volta, Reinaldo.
BALDUÍNO: – Tua espada nos fez imensa falta.
REINALDO (dirige-se a Godofredo): – Senhor, permite que eu te renda as homenagens devidas… (quer ajoelhar-se)
GODOFREDO (erguendo-o vivamente): – Reinaldo! É de coração que saúdo a tua volta. Teu lugar não é a meus pés, mas sim em meus braços. (abraçam-se)
GUELFO: – Reinaldo, és o nosso mais firme sustentáculo!
REINALDO: – Que dizes, meu tio? Eu, o mais firme sustentáculo deste exército? E os vencedores de Niceia e Antioquia? O nobre e bravo Guelfo, o valoroso Tancredo e tantos outros? Podem existir entre nós primeiros e últimos? Não! Estamos todos animados da mesma coragem. É só os clarins soarem, e enfrentaremos o mais forte dos perigos, chefes e soldados!
GODOFREDO: – Tens razão. Agora, queria que soubesses que em tua ausência construímos nossas máquinas de guerra. Tudo está pronto para um assalto geral. E amanhã, ao nascer do sol, estaremos nos baluartes de Jerusalém. (ao ouvir um toque de corneta): – Que foi isso? Que sucedeu?
1º ESCUDEIRO (entra correndo): – Fogo!!
TODOS: – Fogo?!
1º ESCUDEIRO: – Fogo em nossas máquinas de guerra!
GODOFREDO (exclama): – Corramos todos para lá!!
FRANCOLIM (entra apressado, sem capacete, com o cabelo arrepiado): – Não é preciso, meu general. O fogo já está extinto. Só perdemos dois ou três pequenos aríetes. Mas, se o socorro de uma mulher não tivesse chegado a tempo, teria tudo voado pelos ares! (gestos)
TANCREDO (em tom apaixonado): – Uma mulher?…
REINALDO: – Só pode ter sido Tamara! A bela Tamara!
FRANCOLIM: – É ela, sim. Uma valente guerreira. Mas vós ainda não sabeis da outra desgraça que nos acontece.
REINALDO: – Que desgraça, Vafrino?
FRANCOLIM (atrapalhado): – Nem sei como dizer. Vós não acreditareis em mim…
REINALDO: – Fala logo, homem!
FRANCOLIM: – É que, agorinha mesmo, depois do incêndio, apareceram milhares de árvores grossas, como se tivessem cem anos. E há monstros horríveis, que urram e devoram todos que pretendem entrar nessa floresta enfeitiçada, onde, como vedes, perdi meu capacete.
REINALDO: – Ora, Francolim, isso não passa de invenção tua!
FRANCOLIM (olhando para os outros): – Eu não disse?
2º ESCUDEIRO (entra, muito sério): – Não há mais esperança, senhores, não há mais esperança! Agora nossos inimigos estão ao abrigo de nossos golpes.
GODOFREDO: – Como? Por que?
3º ESCUDEIRO (entra): – Senhores, ainda há pouco, num instante, uma espessa floresta levantou-se entre os inimigos e nós… Impossível transpor esse baluarte impenetrável, que é obra do reino das sombras! Por toda parte, a cada passo, seres horríveis arremetem contra nós e nos impedem a passagem!
FRANCOLIM: – Eu não disse? E vá alguém querer passar numa floresta assim… Foi muito generoso o demônio ao me levar o capacete e me deixar a cabeça no lugar. Devo-lhe essa fineza. Vão-se os anéis… mas ficam os dedos!
2º ESCUDEIRO: – Tentamos, de início, afrontar o perigo, mas depois decidimos abandonar uma empresa superior às nossas forças.
3º ESCUDEIRO: – Senhores, nenhum de nós, por valente que seja, poderia atravessar uma selva dessas. Está muito bem guardada, como se o próprio rei do reino das sombras residisse nela.
FRANCOLIM: – Tens razão. E não tem o menor juízo quem se atrever a ouvir seus trovões e uivos.
REINALDO (a Godofredo): – Senhor, fantasmas não me aterrorizam. Entrarei nessa floresta, nem que todo o inferno esteja lá para impedir minha marcha.
TANCREDO: – Eu te acompanho, Reinaldo!
OS OUTROS CHEFES: – Vamos todos juntos!
(Nesse momento, meio encoberto por um véu transparente, surge o Ser celestial. Os guerreiros, espantados, recuam, num silêncio respeitoso.)
SER CELESTIAL: – Guerreiros, vosso valor nada pode contra o encantamento da floresta! Mas escutai o que o céu vos revela… No centro da floresta há uma ponte suspensa sobre um abismo sem fundo. Se a ponte desmoronar sob o peso de um só cristão, a floresta desaparece!… (o Ser celestial sai)
GODOFREDO: – Amigos, Deus ainda não nos desamparou, mas é preciso que um de nós se sacrifique.
REINALDO: – Invoco para mim a honra de morrer, abrindo o caminho da vitória para meus irmãos.
TANCREDO (vivamente): – E que será de nós, insensato, sem tua espada?
GUELFO: – Amigos, estou velho, este braço está cansado. De pouco vos pode servir meu auxílio nos combates. Sou eu que devo morrer.
REINALDO: – Não! A sorte decidirá por nós.
TODOS: – Sim! A sorte! A sorte!
REINALDO: – Façamos de nossas espadas um feixe coberto com esta bandeira sagrada. Godofredo, nosso chefe, escolherá ao acaso uma delas. Aquele a quem ela pertencer atravessará a ponte da salvação.
(Cobertas as espadas, com os punhos para cima, Balduíno as segura. Uma delas é puxada por Godofredo.)
GODOFREDO (após instantes de atenção e silêncio): – É a espada de Reinaldo.
REINALDO (Godofredo lhe passa a espada): – É a minha! Cristãos, rogai por mim!
(Reinaldo precipita-se para fora; todos os demais se ajoelham. Escurece a cena.)
escena 2
A floresta, já perto da ponte
Sadira e Ismeno; Reinaldo; o Ser celestial; Zadig e os seres das sombras; Godofredo, Balduíno, Roberto, Tancredo e seu pajem, Guelfo, os 3 escudeiros, Francolim; coro de outras personagens; Pedro o eremita.
SADIRA (entra com Ismeno): – Por piedade, Ismeno, ajuda-me na vingança contra o pérfido que me abandonou. Pensei, erradamente, que poderia puni-lo sozinha, pobre de mim, já sem força e sem poder… Ismeno, dispõe de minha alma, de minha vida, mas vinga-me!
ISMENO: – Odeias tanto a Reinaldo?
SADIRA: – Se o odeio? O infame!
ISMENO: – Não me é dado atentar contra a vida de Reinaldo. Mas… uma mulher…
SADIRA: – Recusas teu auxílio?
ISMENO: – Não! Consinto em te servir. Ouve bem! Durante alguns momentos, mas só durante alguns momentos, terás o poder de dispor da vida de teu pérfido Reinaldo. Esta floresta, obra de meu poder, é o terror e o espanto do exército de Godofredo. Alguns de seus soldados quiseram abrir uma passagem, mas recuaram, gelados de pavor, pois seres horríveis surgem das entranhas da terra. O presunçoso Reinaldo tomou a si o encargo de atravessar a floresta. O temerário! Mas agora… (exclama): – Zadig! (Zadig aparece) Zadig, que todo o encantamento cesse diante de Reinaldo. Quero que ele chegue livremente até aqui. Vai! (Zadig acena que sim e sai correndo)
SADIRA: – Desta vez terei coragem. Este punhal não cairá de minha mão.
ISMENO (examina o punhal): – Este punhal… hum… este ferro flexível de nada servirá contra a armadura de teu inimigo. (dá-lhe outro punhal) Este punhal mágico, sim. Penetrará até o coração de Reinaldo.
SADIRA (recebe o punhal mágico e se inclina): – Obrigada, mestre.
ISMENO: – Mas, reflete bem: só tens alguns momentos. Quando ouvires o som de uma trompa, Reinaldo estará a salvo de tua vingança e de teus golpes. (sai)
SADIRA (consigo mesma): – Eu te avisei, Reinaldo: depois de Suleyman, Sadira! Ah, ele vem chegando! (esconde-se)
REINALDO (consigo mesmo, entrando): – Aqueles tímidos escudeiros disseram que esta floresta era inacessível. Ora, não foi preciso mais que uma pequena luta para dispersar alguns seres das sombras. Quem poderei temer agora?
SADIRA (apresentando-se): – Eu, Reinaldo!
(Ela arremete contra ele, mas a mão do Ser celestial, que está velado portanto invisível, sai do véu e põe entre os dois um escudo, contra o qual o punhal de Sadira se despedaça. o escudo e a mão somem em seguida dentro do véu.)
REINALDO: – Sadira! Não serás antes algum espírito infernal se apresentando sob tuas formas e teu traje?
SADIRA: – Não! Sou Sadira, tua inimiga. Sadira, que te teria morto se não fosse esse escudo misterioso que te protegeu. (fala à parte para Ismeno): – Ismeno, Ismeno, como me enganaste!
REINALDO: – Querias matar-me… Querias punir-me por escolher o dever em vez de teu amor. Mas eu não podia ficar a teu lado. Longe de ti, porém, daria minha vida sem pezar… porque eu te amava, Sadira, porque eu te amo!
SADIRA: – Mentira!
REINALDO: – Meu próprio Deus ordenou que eu sacrificasse meu amor pela vitória desta causa maior. E eu obedeci, porque assim é preciso.
SADIRA (recua, espantada): – Tu me amas, então?
REINALDO: – Sim, mas que ironia… A morte, que me destinavas, vim buscá-la aqui. Foi revelado que no meio da floresta há uma ponte suspensa sobre um abismo. No entanto, o encantamento cessa se a ponte desabar ao peso de um só cristão, e a floresta desaparece com seus seres horríveis. Só assim nosso exército poderá entrar na cidade santa. (passa o braço pelos seus ombros amorosamente e aponta) A ponte deve ser aquela, e o cristão sorteado para passar por ela fui eu! (dirige-se para lá)
SADIRA: – Oh, não, não morrerás, Reinaldo! Ou vou contigo, morreremos juntos. (ele a empurra) Ah… ele me foge…
(Os seres das sombras surgem e impedem a passagem de Reinaldo, que se dirigia para a ponte. Zadig se distingue pela agilidade e força.)
SERES DAS SOMBRAS (evoluem gritando): – Uh… uh…uh… uh…
REINALDO (puxa da espada e luta): – Para trás! Para trás! (os seres recuam)
ISMENO (surge no alto de um rochedo): – Então, covardes satélites do reino das sombras! Vós vos deixareis vencer por um reles mortal?
(Os seres então cerram fileiras, gritam de novo e repelem Reinaldo. Nesse momento, o Ser celestial aparece sobre a floresta com o escudo. Os seres das sombras se dispersam imediatamente e deixam a passagem livre para Reinaldo, que se precipita para a ponte.)
SADIRA (exclama): – Reinaldo, espera! Um último adeus! Reinaldo! Por ti eu me entrego ao teu Deus. Teu Deus é também o meu. Sou cristã agora, cristã, ouviste?
REINALDO (estarrecido): – Sadira!
(Ele a abraça. Depois, sem lhe dar tempo, Sadira corre para a ponte, fora de cena, que desaparece com ela no abismo, num estrondo. Um trovão fulmina Ismeno, que também some no abismo com os seres das sombras. Escuridão ao fundo. A floresta desaparece. Godofredo chega e, depois, todos os companheiros cristãos. Luz só sobre os que estão em cena.)
REINALDO: – Sadira! Oh, meu Deus, Sadira sacrificou-se como cristã… Não, não é possível. Ela também me amava. Ah, que preço tão duro paguei por este amor. Tu deste a vida por mim, Sadira! Quem ama é capaz disso. Foi o que fizeste.
GODOFREDO (pondo a mão no ombro de Reinaldo): – Ela fez mais que isso, amigo, pois deu a vida por todos nós.
GUELFO (chega, aflito): – Reinaldo, mas estás vivo!
REINALDO: – Tio… (abraça-o)
FRANCOLIM: – Ah, meu amo, meu precioso amo! Pode me chamar de Francolim para sempre (ajoelha-se a seus pés. Reinaldo pousa a mão em sua cabeça.)
GODOFREDO: – Vamos ao ataque, companheiros!
TANCREDO: – Reinaldo, tua missão te aguarda. Libertemos Jerusalém!
TODOS (saindo): – Avante!!
(Ao fundo, que agora clareia, liso, vão surgindo os outros intérpretes da peça, revestidos de túnicas coloridas, formando um coro.)
CORO:
– Godofredo avança!
Godofredo sai!
Seguido dos seus,
Godofredo vai.
Godofredo vence
e a barreira cai!
A Terra Santa vai sendo tomada,
e Jerusalém, libertada!
FRANCOLIM (entra correndo por um lado e sai pelo outro gritando): – Vitóóóriaaa!!
(À frente, entram as 3 tecelãs, tecendo suas teias e lendo nelas.)
TECELÃ DO PRESENTE:
– Nossa irmã, nosso tecido
é o pano de fundo de tudo o que tem acontecido.
Mas, conta o que foi que causou tanto assombro
ao coração do peregrino?
Porque o que teceste ontem
vai refletir-se no que teço hoje
e no que tecerá amanhã
nossa terceira irmã.
TECELÃ DO PASSADO:
– Os cruzados ficaram assombrados
com os gregos, cristãos bem diferentes
que, um pouco do lado do oriente,
foram por eles encontrados.
E o que perceberam foi isto:
em seus corações devotados
eles também viram o Cristo.
TECELÃ DO PRESENTE:
– Pois, em meu tecido, irmãs caríssimas,
agora eu leio que os cristãos vêem
os muçulmanos como seres humanos
que chamam de Alá seu deus adorado.
Só o nome é diferente. Se alguns podem ser cruéis,
como qualquer homem preso à terra,
outros têm um coração santo e abençoado.
TECELÃ DO FUTURO:
– Nossa irmã, o destino dos homens
está interligado no amanhã, no ontem e no agora.
A luz da verdade…
é para todos que ela virá.
Basta esperar a hora.
Para quem, como, quando e onde,
só o tempo o dirá.
FINAL
ADENDO
LETRA DA ORAÇÃO CANTADA DA PÁGINA 9 (optativa):
“Com a fronte na terra úmida,
ungidos de alto fervor,
que atendas à nossa súplica
nós te pedimos, Senhor!
Deus, ó Deus poderosíssimo,
dá-nos firmeza e valor.”
Sobre a escolha da peça
Para escolher uma peça com objetivo pedagógico, estude bem que tipo de vivência seria mais importante para fortalecer o amadurecimento de seus alunos. Será um drama ou uma comédia, por exemplo. No caso de um musical, é importante que a classe seja musical, que a maioria dos alunos toquem instrumentos e/ou cantem. Analise também o número de personagens da peça para ver se é adequado ao número de alunos.
Enviamos o texto completo em PDF de uma peça gratuitamente, para escolas Waldorf e escolas públicas, assim como as respectivas partituras musicais, se houver. Acima disso, cobramos uma colaboração de R$ 50,00 por peça. Para outras instituições condições a combinar.
A escola deve solicitar pelo email [email protected], informando o nome da instituição, endereço completo, dados para contato e nome do responsável pelo trabalho.