2 de abril de 2018

Sakuntala

 

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peça de Kalidasa (poeta hindu do século V ou VI)

traduzida e adaptada da versão inglesa de Monier Monier-Williams por Ruth Salles

“Queres as flores da primavera e os frutos do outono?
Queres a serenidade, o enlevo, o encantamento?
Queres, numa só palavra, o céu e a terra? Eu te direi: Sakuntala.”

Goethe

 

NOTA

Kalidasa, o mais bem dotado dos escritores do período clássico da Índia, tornou-se célebre como poeta e como autor dramático, sendo “Sakuntala” considerada sua obra-prima. Essa peça foi traduzida para o inglês, pela primeira vez, pelo orientalista Sir William Jones e ganhou a profunda admiração de Goethe.
O teatro hindu em seu apogeu, entre os séculos IV e VIII, tinha sempre um fundo religioso. Os épicos sacros “Mahabhârata” e “Ramayana” eram as principais fontes de inspiração dos autores, e a figura do eremita era muito admirada. Esta peça se baseia justamente na lenda do mesmo nome, existente no primeiro desses épicos, que narra a história de Ducianta e Sakuntala, pais do futuro rei Bhârata.

Numa peça hindu, o rei sempre tem um “vidûshaka”, isto é, um alegre acompanhante, e um “vita”, digno conselheiro. Com exceção de algumas personagens, as mulheres sempre aparecem em grupo de duas: as duas amigas de Sakuntala, as duas jardineiras do palácio, as duas pajens do filho do rei. Na peça original, só as personagens mais nobres falam em sânscrito; as demais se exprimem em dialetos. Para simplificar, deixei poucos trechos em verso, que, no original eram privilégios de personagens masculinos.
A adaptação da tradução inglesa se baseou às vezes no conto “Sakuntala”, tal como foi narrado pelo professor João Baptista de Mello e Souza. Foi desse conto que adaptei os versos de uma Invocação a Shiva à melodia de uma antiquíssima oração brâmane ao deus Shiva colhida no sul da Índia.

ruth salles

 

CARACTERES

CORO de personagens fora da cena; introduz a peça com a Invocação a
Shiva.
DUCIANTA, rei descendente do rei Puru. Traz um grande arco.
O ARQUEIRO do rei. Carrega a aljava com as setas.
MATÁVIA, alegre amigo do rei.
RAIVATIKA, o guarda-portão.
BADRASENA, o comandante da guarda.
KARABHAKA, o mensageiro da rainha-mãe.
VATAIANA, velho camareiro do rei. Anda apoiado num bastão.
SOMARATA, o sacerdote do palácio real.
MITRAVÁSU, o chefe dos guardas.
SUCHAKA, 1º guarda.
JANUKA, 2º guarda.
CAVITRÁ, pescador. Traz uma flautinha.
KANVA, o sábio santo, chefe dos eremitas e pai adotivo de Sakuntala.
VELHO EREMITA.
SARAVATA, 1º discípulo (noviço).
HARITI, 2º discípulo (voz calma).
SARGARAVA, 3º discípulo (voz vibrante).
DURVASAS, o sábio irascível que lança a maldição.
KASSIAPÁ, pai dos homens e dos deuses, esposo de ADITI.
O COCHEIRO do carro do deus INDRA. Traz um véu que o torna invisível.
SAKUNTALA, filha adotiva de Kanva (sua mãe foi a ninfa MENAKA).
ANASSUÍA, amiga de Sakuntala.
PRIANVADÁ, amiga de Sakuntala.
GAUTAMI, superiora do eremitério.
DUAS JOVENS, enfeitadas de flores, que carregam o arco do rei.
AMBALIKA, 1ª jardineira do rei.
MADUKA, 2ª jardineira do rei.
SANUMATI, ninfa amiga de Sakuntala e de sua mãe Menaka. (Usa vestes vaporosas e um véu que a torna invisível.)
SUVRATA, 1ª pajem do menino Sarvadamana
DAMATI, 2ª pajem do menino Sarvadamana.
ADITI, deusa, esposa de Kassiapá.

 

INTRODUCCIÓN

CORO (canta):
“Que o Senhor do Universo vos proteja
e seja sempre misericordioso
sob sete formas:
como el sol y la luna regulando el tiempo;
como o fogo vai levando ao céu o incenso;
como el espacio infinito donde vibran los cantos de amor;
como el aire y el agua sustentando la vida;
como a terra, que é mãe – oh, oh, Mãe, ô, ô –
e nutriz de todo germe…
Que o Senhor vos proteja!”

 

PRIMER ACTO

Bosque dos eremitas. No cenário deve haver uma árvore (mangueira) e um pé de jasmim encostado a ela.
Rei Ducianta e seu Arqueiro; o velho eremita e seu discípulo Saravata; Sakuntala, com suas amigas Anassuía e Prianvadá.

(O rei Ducianta entra, armado de grande arco, assistido por seu arqueiro, que carrega a aljava com as setas. Ducianta está tentando caçar um antílope.)

ARQUEIRO (olhando ao longe o antílope e depois o rei):
– Ao ver essa gazela que persegues
e ao ver-te, ó rei Ducianta, com teu arco,
parece-me que vejo o próprio Shiva
ao perseguir o antílope que foge.

REI DUCIANTA:
– Arqueiro, ela nos trouxe até bem longe!
Olha! Às vezes parece até que voa.
Ou terá este chão algo de elástico? (faz a mira com o arco; a seta é invisível)
Arqueiro, a minha seta parte agora!

VELHO EREMITA (aparece com seu discípulo Saravata): – Para, ó rei! Este antílope pertence ao nosso eremitério. Não o mates!

ARQUEIRO (espantadíssimo): – Rei! Os dois eremitas se puseram bem na linha de mira de tua seta, só para proteger uma gazela!

VELHO EREMITA (levantando as mãos e curvando-se): – Ó grande rei! Guarda de novo a seta em tua aljava. É bem melhor que movimentes o arco para proteger os fracos do que para ferir um animal inofensivo!

REI DUCIANTA (devolvendo o arco ao arqueiro): – Tens razão, senhor.

VELHO EREMITA: – Esse é um gesto bem digno de um descendente dos Purus. (abençoa-o) Que tua recompensa seja um filho de nobreza sem par, cujos domínios hão de abranger a terra toda.

REI DUCIANTA (inclinando a cabeça): – Agradeço tua santa bênção.

SARAVATA (apontando numa direção): – Poderoso Príncipe, viemos buscar lenha para o sacrifício. Aqui, na orla do Malini, fica o eremitério do grande sábio Kanva. Se outros deveres não te chamam, digna-te a aceitar nossa hospitalidade.

REI DUCIANTA: – E o sábio Kanva está agora em casa?

VELHO EREMITA: – Não. Ele foi a Somatirta propiciar o Destino, que ameaça sua filha Sakuntala com alguma calamidade (1). Ela, porém, está encarregada de receber hospitaleiramente os convidados em sua ausência.

REI DUCIANTA: – Então eu lhe farei uma visita.

SARAVATA: – E nós continuaremos nossa tarefa. (saem de cena)

REI DUCIANTA (olha em volta e diz ao arqueiro): – Percebe-se que este é um lugar sagrado. Olha como a gazela está tranquila, ouvindo sem medo nossas vozes.

ARQUEIRO: – Realmente assim é.

REI DUCIANTA: – Eu vou entrar nesse bosque e purificar a alma. Guarda o arco. Espera-me aqui perto até que eu volte.

ARQUEIRO (saindo em seguida): – Sim, meu senhor.

REI DUCIANTA (dando alguns passos):
– Existe tanta paz neste recinto…
Contudo, minhas mãos trêmulas vibram.
Que dizem estas mãos? Eu sinto aqui
soprar a brisa leve de um mistério…

SAKUNTALA (entrando pelo outro lado e chamando as outras, que a seguem): – Por aqui! Por aqui!

REI DUCIANTA (consigo mesmo): – Ouço vozes… (olha em volta) Ah, devem ser as jovens do eremitério. Vêm aguar as plantas. Como são graciosas… Tais encantos são raros nos palácios. Plantas silvestres muitas vezes vencem as flores do jardim real. Daqui destas sombras posso apreciá-las.

ANASSUÍA: – Sakuntala, podem pensar que o pai Kanva gosta mais das plantas do eremitério do que de ti. És tão delicada quanto o jasmim e, no entanto, tens a tarefa de encher d’água as valetas que circundam as raízes das árvores.

SAKUNTALA: – Mas isso, Anassuía, eu não considero uma tarefa, porque na verdade tenho muito amor por estas plantas. (as três começam a regar)

REI DUCIANTA (consigo mesmo): – Um sábio que mantém no eremitério uma jovem tão delicada é como o homem que tenta rachar o tronco de uma acácia com uma folha do mais fino lótus.

PRIANVADÁ: – Sakuntala, não estás esquecendo o novo pé de jasmim, que sobe junto ao tronco da mangueira (2)?

SAKUNTALA: – Mais fácil esquecer-me de mim. (dirige-se ao jasmim) Que lindo ver os dois juntos assim… A mangueira parece proteger a planta delicada.

PRIANVADÁ: – Anassuía, sabes por que Sakuntala se encanta com esse jasmim?

ANASSUÍA: – Nem imagino. Por que?

PRIANVADÁ: – Vendo o jasmim junto à forte mangueira, ela também sonha em se unir a alguém digno dela…

SAKUNTALA: – Ah, Prianvadá, falas decerto por ti mesma! (continua a rega)

REI DUCIANTA (consigo mesmo): – Ah, se eu pudesse casar com ela… Mas não posso, por ser filha de um brâmane. E eu sou um rei guerreiro, um chátria… (3)

SAKUNTALA (assustada, espanta uma abelha): – Socorro, uma abelha! Ela vai me picar, estou perdida! Livrai-me dela!

PRIANVADÁ (tenta espantar a abelha): – Não consigo, não consigo, Sakuntala!

ANASSUÍA (mais de longe, achando graça): – Pede socorro ao rei Ducianta! É ele o protetor destes bosques sagrados.

SAKUNTALA (fugindo da abelha): – Oh, socorro! Ela continua a me perseguir!

REI DUCIANTA (aparece à frente, de um salto): – Quem ousa molestar jovens tão belas em seus santos deveres nestes bosques?

(Todas olham o rei, embaraçadas.)

ANASSUÍA: – Caro senhor, não foi nada. Apenas nossa querida Sakuntala estava aflita com os ataques de uma pequena abelha.

REI DUCIANTA: – Mas, já está tudo bem então?

ANASSUÍA: – Sim, está tudo bem, agora que fomos honradas com a visita de tão nobre senhor. (a Sakuntala): – Sakuntala, vai buscar no eremitério uma oferenda de flores, arroz e frutas!

SAKUNTALA (vai saindo e diz para si mesma): – Oh, por que será que meu coração está batendo tão forte?

PRIANVADÁ: – Senhor, senta-te aqui à sombra desta árvore. (sentam-se todos)

REI DUCIANTA: – Deveis estar cansadas… Mas… contai-me: Sakuntala é filha do piedoso sábio Kanva?

ANASSUÍA: – Eu explico, senhor. Já ouviste falar de um ilustre sábio de casta real, cujo nome de família é Caucicá?

REI DUCIANTA: – Sim.

ANASSUÍA: – Pois é ele o verdadeiro pai de nossa amiga. Kanva é apenas seu pai adotivo. E sua mãe foi uma ninfa.

REI DUCIANTA (sonhador): – Uma mortal não poderia mesmo tê-la gerado. Não, não poderia. Uma ninfa… O esplendor que ela irradia não vem da terra… (ergue-se e fala à parte): – A esperança cresce. Mas, se as amigas falam do marido com que ela sonha, ainda tenho dúvidas.

PRIANVADÁ (observando-o): – Parece que ainda tens outra pergunta a fazer…

REI DUCIANTA (voltando-se para elas, ainda de pé): – Sim, gostaria de saber se ela viverá sempre a vida de uma asceta. Somente as criaturas deste bosque vão partilhar seu fraternal afeto?

PRIANVADÁ: – Senhor, até hoje ela atendeu às práticas do eremitério e viveu sujeita a seu pai adotivo, mas agora é intenção dele casá-la com um homem digno. (à parte para Anassuía): – Quem será este homem, cujas maneiras desembaraçadas e ao mesmo tempo nobres mostram ser alguém de alta estirpe?

ANASSUÍA (à parte para Prianvadá): – Também estou curiosa por saber. Eu mesma lhe perguntarei. (dirige-se ao rei e as duas se levantam): – Senhor, tuas palavras me animam a perguntar de que régia família nosso nobre convidado é o ornamento, e que terra lamenta agora sua ausência?

SAKUNTALA (entrando assustada e depondo a oferenda sobre uma pedra): – Está acontecendo alguma coisa estranha: os pássaros mansos esvoaçam assustados; nossas gazelas fogem para os apriscos; e a mata estala de tantos rumores!

SARAVATA (fala alto, da entrada): – Jovens, recolhei vossos pavões! Animais perigosos penetraram no bosque cercados pelos caçadores! (vai entrando e vê o rei Ducianta): – Ó generoso rei Ducianta, socorre-nos!

PRIANVADÁ (com espanto): – É o próprio rei!

ANASSUÍA (com espanto): – É o protetor do nosso bosque!

SAKUNTALA (à parte): – Não te perturbes, meu coração! Por que te afliges tanto?

SARAVATA (aponta para fora): – Olha, ó rei! Assustado com o cerco da caçada, um elefante invadiu nosso bosque, amedrontando as gazelas, e impede nossas cerimônias sacras! (sai espavorido, com as mãos na cabeça)

REI DUCIANTA (à parte): – Vou cuidar disto. Foi minha comitiva que perturbou o eremitério.

ANASSUÍA: – Estamos assustadas, senhor.

PRIANVADÁ: – Oh, poderoso rei, permites que nos retiremos para o solar de nossa santa mãe Gautami?

REI DUCIANTA: – Sim, gentis donzelas. Vou cuidar para que nada vos aconteça.

SAKUNTALA (enquanto as outras vão saindo): – O rei perdoa nossa hospitalidade tão pobre?

REI DUCIANTA: – Não digas isso. Vossa companhia foi o melhor presente que eu poderia ter.

SAKUNTALA: – Que os deuses te protejam! (saem cada um por um lado)

 

 

SEGUNDO ACTO

Uma planície na orla do bosque. De um lado, o acampamento do rei.
Matávia (alegre companheiro do rei) e o rei Ducianta; Raivatika (guarda-portão) e Badrasena (comandante); o velho eremita e seu discípulo Hariti; Karabhaka (mensageiro da rainha-mãe).

MATÁVIA (entra, suspira, reclama e anda de cá para lá com gestos): – Ai, ai… Que sujeito sem sorte eu sou… Estou caindo aos pedaços por causa da mania que meu real amigo tem pela caça. “Olha uma gazela, Matávia!” “Lá vai o porco selvagem!” “Matávia, vem vindo um tigre!” É sempre esse o estribilho de nossas conversas. Temos sede? Não há o que beber senão a água suja de um riachinho cheio de folhas secas. Comer? Só carne torrada. Dormir está fora de questão, pois se dou uma cochilada, logo acordo com a barulheira horrível dos batedores (4) e caçadores, que rodeiam a floresta antes do nascer do sol e arrebentam meus ouvidos com sua algazarra. E o pior foi ontem. Só porque nos atrasamos e ficamos para trás, meu real amigo penetrou num eremitério atrás de uma gazela e lá, para cúmulo da desgraça, avistou uma bela jovem chamada Sakuntala, filha do eremita. E pronto. Nem quer saber de voltar para casa. Pensa nela o tempo todo. Ih! Lá vem ele. Vou ficar aqui deitado, como quem está exausto. (deita-se)

REI DUCIANTA (entra e fala consigo mesmo): – Seu olhar deixou-me encorajado. E também seus gestos… e os passos hesitantes… Ah… isso alimenta as esperanças de um apaixonado. (vira-se e dá com Matávia deitado)

MATÁVIA: – Ai… meu caro rei… nem posso mover as mãos para te saudar como usualmente. Posso apenas falar para te desejar vitória…

REI DUCIANTA: – Mas, que paralisia súbita é essa?

MATÁVIA: – Isso é o mesmo que perguntar por que sai água do meu olho depois que esbarraste o dedo nele.

REI DUCIANTA: – Não entendi nada. Explica-te melhor.

MATÁVIA: – Quero dizer que tu és a causa de meu estado.

REI DUCIANTA: – Eu?! Mas, como?

MATÁVIA: – Ora, de tanto correr contigo atrás de animais selvagens, meus ossos se desconjuntaram e se estropiaram de todo! Oh, meu caro, deixa-me descansar um dia que seja!

REI DUCIANTA (à parte): – Mal sabe ele que a caça não me interessa mais e que só penso em Sakuntala… Não posso mais curvar meu arco para acertar os animais do bosque tão amados por ela…

MATÁVIA (ergue-se sobre um cotovelo e observa o rei): – Devo estar falando com o vento, pois não me dás a mínima atenção. Discutes contigo mesmo, suponho.

REI DUCIANTA (sorri): – Eu estava apenas pensando que não devo fazer pouco caso do pedido de um amigo.

MATÁVIA (ficando de pé): – Oh! Viva o rei, para sempre! (vai sair)

REI DUCIANTA: – Espera! Precisas me ajudar num outro negócio, que não te vai cansar nem um pouco.

MATÁVIA: – Comer algo delicioso?

REI DUCIANTA: – Logo saberás. (em voz alta, para os bastidores): – Olá! Está aí o guarda-portão?

RAIVATIKA (entrando): – Quais são as ordens do meu rei?

REI DUCIANTA: – Raivatika! Chama-me o comandante da guarda!

(O guarda-portão sai e volta com o comandante da guarda.)

BADRASENA: – Vitória ao rei! Seguimos a pista dos animais até seus covis na floresta. Por que esta demora, se está tudo pronto?

REI DUCIANTA: – Ah, Badrasena, é que meu amigo Matávia esteve depreciando a caça até me tirar todo o gosto por ela.

BADRASENA (à parte, para Matávia): – Não adianta, meu camarada, eu hei de convencer o rei! (em voz alta, para o rei): – Este cabeça dura diz asneiras. Pensa, ó rei, no prazer que a caça nos dá. O caçador é só agilidade e valentia. E quando sua flecha atinge o alvo numa curva perfeita… (faz gestos)

MATÁVIA (zangado com Badrasena): – Fora, tentador! Fora! O rei acabou de recobrar a razão. Quanto a ti, podes vagar pela floresta à vontade, até que um velho urso te agarre pelo nariz e te faça em pedaços.

REI DUCIANTA: – Meu bom Badrasena, como estamos justamente nas vizinhanças de um bosque sagrado, deixemos por agora os animais tranquilos. Com a corda afrouxada, meu arco vai ter um longo repouso. Chama de volta os batedores, para que não perturbem este santo retiro.

BADRASENA: – Se é do agrado do meu rei, que assim se faça.

REI DUCIANTA (ao guarda-portão): – E tu, Raivatika, fica de guarda!

RAIVATIKA: – Sim, Majestade. (os dois saem)

MATÁVIA: – Até que enfim estamos livres dessas pragas, que ficaram zumbindo em volta de nós como um bando de moscas. Vem, senta-te aqui à sombra desta árvore, e eu me sentarei a teu lado bem confortavelmente… (eles se sentam)

REI DUCIANTA: – Ah, Matávia, pode-se dizer que nunca contemplaste nada tão digno de ser visto quanto a bela Sakuntala.

MATÁVIA: – Para provocar a admiração do grande homem que és, só mesmo algo muito surpreendente. Mas…

REI DUCIANTA: – Oh, meu amigo… O Criador, com sua vontade poderosa, uniu em sua mente eterna o que havia de mais puro e belo e… deu-lhe forma.

MATÁVIA: – E ela chegou a te olhar com simpatia?

REI DUCIANTA: – Moças criadas num eremitério são naturalmente tímidas e reservadas. Assim, metade do seu amor ela me revelou; a outra metade ela deixou para ser adivinhada…

MATÁVIA: – Hum… Bem, vejamos: fizeste um bom estoque de provisões? (passa a mão pelo estômago com ar de fome) Pois, pelo visto, pretendes vagar por aqui um bom tempo ainda.

REI DUCIANTA: – Ora, Matávia, nem estou pensando nisso. Deves saber, isto sim, que preciso da ajuda de tua fértil imaginação. Planeja-me uma desculpa para voltar ao eremitério.

MATÁVIA: – De estômago vazio? Não me vem ideia alguma.

REI DUCIANTA: – Está bem, está bem. Pensarei nas provisões. E então?

MATÁVIA: – Ora, és o rei, não és? Voltarás para buscar a sexta parte do grão, que os eremitas te devem como tributo.

REI DUCIANTA: – Não, não, seu tolo! Aqueles eremitas, com suas orações, me pagam um tributo muito mais valioso que um montão de ouro. Dádivas como essas duram para sempre. Não se desfazem em pó.

RAIVATIKA (entra): – Vitória ao rei! Dois eremitas esperam lá fora e solicitam uma audiência.

REI DUCIANTA: – Pois faze-os entrar!

(Raivatika sai e volta com o velho eremita e seu discípulo Hariti, que ficam de um lado falando um com o outro.)

HARITI: – Que semblante majestoso!…

VELHO EREMITA: – Por que te espantas, Hariti? Esse é o grande rei Ducianta, amigo dos deus Indra. (aproxima-se; Hariti oferece frutas ao rei): – Vitória ao rei!

REI DUCIANTA (recebe as frutas respeitosamente): – Dizei, eu vos peço, o motivo de vossa visita.

VELHO EREMITA: – Senhor, na ausência de Kanva – nosso superior e grande sábio – demônios do mal estão perturbando os rituais. Os habitantes do eremitério suplicam ao rei que passe alguns dias no eremitério, acompanhado de seu arqueiro.

REI DUCIANTA: – Vosso convite muito me honra.

MATÁVIA (à parte): – Hum… Convite, aliás, oportuníssimo…

REI DUCIANTA (ao guarda-portão): – Raivatika! Vai dizer ao arqueiro que prepare meu arco e a aljava com as setas!

RAIVATIKA: – Sim, majestade. (sai)

REI DUCIANTA (aos eremitas): – Ide, senhores, que eu irei em seguida. (a Matávia, depois que os dois eremitas saem): – Meu caro Matávia, não estás ansioso por conhecer Sakuntala?

MATÁVIA: – Para ser franco, há poucos momentos eu estava cheio de vontade de vê-la, mas agora estou vazio de todo, desde que ouvi as notícias sobre os demônios (faz um gesto de medo e repulsa).

REI DUCIANTA: – Ora, não tenhas medo! Eu estarei do teu lado.

RAIVATIKA (entra): Majestade, o arqueiro está pronto. Mas acaba de chegar um mensageiro da parte da rainha tua mãe.

REI DUCIANTA: – Que dizes? Um mensageiro da venerável rainha? Introduze-o imediatamente!

(Raivatika sai e volta com o mensageiro, que se inclina diante do rei.)

KARABHACA: – Vitória ao rei! A rainha-mãe ordena que te diga que pretende celebrar solene cerimônia para a prosperidade e a proteção de seu filho, daqui a 4 dias (5). Ela espera que o rei vá honrá-la com sua presença nessa ocasião.

REI DUCIANTA: – Ora, tenho aqui um sério dilema: de um lado a missão a ser executada para aqueles santos homens; de outro, a ordem de minha venerável mãe. Que fazer?

MATÁVIA (com gestos e demonstrações): – Terás de assumir uma posição intermediária. Tal como o rei Trisanko, que ficou suspenso entre o céu e a terra, porque o sábio Visvamitra ordenou-lhe que subisse aos céus, e os deuses ordenaram-lhe que descesse.

REI DUCIANTA: – Estou perplexo! Dois deveres em lugares opostos… (reflete): – Amigo Matávia, como foste meu companheiro de infância, a rainha já te aceitou como um segundo filho; vai até ela e conta-lhe do meu solene compromisso de socorrer os santos homens. Poderás tomar meu lugar na cerimônia e fazer o papel de um filho da rainha.

MATÁVIA: – Vou com o maior prazer do mundo; (disfarçando) mas não penses que tenho realmente medo daqueles insignificantes demônios.

REI DUCIANTA: – Claro que não! Um grande brâmane como tu não poderia de forma alguma dar lugar a tal fraqueza.

MATÁVIA (cheio de si): – Até já me sinto como um jovem príncipe! (despede-se do rei): – Boa vitória ao rei! (sai junto com o mensageiro)

REI DUCIANTA (sai por outro lado): – Adeus, amigo!

 

PRELÚDIO AO TERCEIRO ATO

 

Bosque do eremitério
Os eremitas; os demônios do mal; o rei Ducianta com seu arqueiro.

(Os demônios do mal, com seus véus escuros, se movimentam pelo bosque, enquanto os eremitas, à frente, clamam pelo rei.

EREMITAS:
– Vem socorrer, ó rei, nosso refúgio,
que demônios maléficos povoam!
Vem enfrentá-los, ó valente, ó justo!
Vem vencê-los, ó protetor de todos!
(Ducianta e os arqueiros entram, lutam e dispersam os demônios.)

Imenso é o poder do rei Ducianta!
Nem mesmo a seta foi fixada ao arco!
Mal o possante braço do monarca
brandiu o arco, os inimigos tremem
e vão todos se dispersando ao vento!

 

TERCEIRO ATO

Bosque do eremitério.
Rei Ducianta; Anassuía, Prianvadá e Sakuntala; Sargarava, o discípulo.

(Entra o rei Ducianta, andando de um lado para o outro. As três jovens estão do outro lado da cena, mas ele primeiro não as vê.)

REI DUCIANTA (consigo mesmo): – Agora que os santos homens não precisam mais de mim, que farei? (suspira e olha o sol) O calor do sol está no auge. Talvez Sakuntala esteja à sombra do caramanchão, na margem do Malini, com suas amigas. Vou procurá-la. (vai caminhando, observando o chão) Passaram por aqui… Há marcas de pés. Oh, lá estão elas. Vou manter-me escondido.

(Anassuía e Prianvadá estão abanando Sakuntala com leques de folhas de lótus. Ela parece melancólica.)

REI DUCIANTA (à parte): – Sakuntala parece estar doente. Será por causa do calor, ou é seu coração que sofre como o meu?

ANASSUÍA: – Querida Sakuntala, precisamos saber qual é a causa de teu mal. É inútil aplicar um remédio antes de se entender a doença.

SAKUNTALA (suspira): – Ah… desde o momento em que conheci o príncipe, meu coração está preso ao dele, e é por isso que sofro.

REI DUCIANTA (fala consigo mesmo): – É o quanto basta! O pássaro sedento suplicava ao céu o benefício de uma gota d’água, e agora uma chuva copiosa lhe traz o que ele tanto queria! (surge diante delas)

PRIANVADÁ (levantando-se): – Oh!… Bem-vindo o esperado de nossos corações, que tão depressa se apresenta.

ANASSUÍA (levantando-se): – Digna-te sentar-te ao nosso lado.

SAKUNTALA (levantando-se): – Que pretendes detendo o rei, que deve estar ansioso para voltar à sua corte e para a companhia de suas nobres damas?

REI DUCIANTA:
– Ó suave donzela, tu não penses
que eu possa amar alguém além de ti.
Se outras damas enfeitam meu palácio,
por uma só meu coração se inflama. (ajoelha-se)
Por ti, ó Sakuntala! Ao deus do amor
eu peço que tu sejas minha esposa.

SAKUNTALA: – Ah, poderoso descente de Puru, lembra-te de que, embora eu te ame, não tenho poder de dispor de mim.

ANASSUÍA: – Ó rei, vamos levar teu pedido a nosso santo pai Kanva, que acaba de regressar ao eremitério. Aguarda e tem esperança.

REI DUCIANTA: – Que os céus vos ajudem! Eu esperarei.

(As três saem, e o rei caminha de um lado para o outro.)

REI DUCIANTA (consigo mesmo):
– Ó doce Sakuntala, é bem mais fácil
uma tumultuosa catarata,
depois que cai, subir de novo as águas,
do que eu desistir de meus intentos!
Ah, deus do Amor, não tens misericórdia?
Tuas setas de flores são mais finas,
mais cortantes que farpas de diamante.

SARGARAVA (o 3º discípulo, entrando): – Vitória ao rei!

DEI DUCIANTA: – Que desejas de mim, santo homem?

SARGARAVA: – Trago uma mensagem de nosso amado sábio Kanva. Posso transmiti-la?

REI DUCIANTA: – Oh, sim, sim!

SARGARAVA (lendo um rolo): – Assim falou nosso venerável Pai: “O amor é mais forte que a morte, e só a honra torna a vida digna de ser vivida. Sinto-me feliz ao saber que Ducianta quer, para sua esposa, a filha de Caucicá; e, já que o amor vos uniu, e a honra é atributo vosso, que Shiva vos proteja e vos dê virtuosa prole.”

REI DUCIANTA: – Ah… esta mensagem cai sobre o meu coração como um bálsamo de felicidade. Eu te agradeço, ó respeitável brâmane. (saem um por cada lado)

 

PRELÚDIO AO QUARTO ATO

 

Jardim do eremitério e porta da cabana.
Anassuía e Prianvadá; o sábio Durvasas.

(Anassuía e Prianvadá entram colhendo flores.)

ANASSUÍA: – Prianvadá, estou muito feliz por Sakuntala ter-se casado com o rei Ducianta, um homem digno, mas… sinto uma estranha inquietação dentro de mim.

PRIANVADÁ: – Por que, Anassuía?

ANASSUÍA: – Bem sabes que o rei, alguns dias depois do casamento, foi chamado às pressas ao seu reino, deixando Sakuntala sob nossos cuidados. Só que ele, agora, está na companhia das damas do palácio, e tenho tanto medo de que se esqueça do que se passou aqui…

PRIANVADÁ: – Ah, fica sossegada. Pessoas como o rei Ducianta têm um profundo sentimento de honra (olha o cestinho de flores) Ainda faltam flores para a oferenda sagrada.

ANASSUÍA: – Vamos então colhê-las um pouco mais longe, pois Sakuntala está de guarda na cabana.

PRIANVADÁ: – Só espero que não esteja distraída demais, pensando no rei Ducianta… (saem de cena)

DURVASAS (chega e bate à porta da cabana, mal-humorado): – Abre a porta, jovem Sakuntala! Não vês que estou batendo? (à parte): – Nem me vê, nem me ouve! Que humilhante ofensa! Despreza um hóspede como eu, digno de todo o respeito! Mulher imprudente! Só pensa no seu amor e esquece a lei da hospitalidade. Mas isso não ficará assim! (alto): – Eu te amaldiçôo, jovem! Aquele em que pensas não pensará mais em ti. Em vão tentarás despertar sua memória. Ele vai repudiar-te! (sai com um gesto de raiva)

PRIANVADÁ (entra correndo com Anassuía): – Céus! Acho que aconteceu alguma desgraça. Nossa querida Sakuntala, distraída como está, deve ter ofendido alguma visita. (olha além da cena) – Estou vendo, estou vendo! Quem vai ali é o sábio Durvasas, que sempre se enraivece por pouca coisa. Sua fúria é como um fogo devorador. E ele amaldiçoou Sakuntala!

ANASSUÍA: – Corre, Prianvadá, atira-te a seus pés e convence-o a voltar, enquanto preparo uma oferenda para ele, com água e uma refeição leve.

PRIANVADÁ: – Já vou. (sai correndo)

ANASSUÍA (caminha em direção à cabana, tropeçando e derrubando as flores): – Oh… É o que dá ficar com tanta pressa. (para e apanha as flores)

PRIANVADÁ (voltando, ofegante): – Bem… fiz o que pude… pedi a ele que perdoasse Sakuntala, por ser uma menina tão nova e inexperiente…

ANASSUÍA: – E ele?

PRIANVADÁ: – Respondeu assim: “Minha palavra não volta atrás! O rei só se lembrará dela ao reconhecer o anel que ele lhe deu, onde seu próprio nome está gravado.”

ANASSUÍA: – Ah, então podemos respirar de novo. Sakuntala não tira esse anel do dedo, e ele será um remédio para sua desgraça.

PRIANVADÁ: – Anassuía, é melhor não contarmos nada a Sakuntala. Ela é muito delicada para suportar grandes emoções.

ANASSUÍA: – Tens razão (6). Quem pensaria em regar um delicado jasmim com água quente? (saem)

 

QUARTO ATO

 

Bosque do eremitério
Hariti; Anassuía, Prianvadá; Sakuntala, Gautami; Kanva, Saravata, Sargarava; ninfas.

HARITI (de madrugada, sonolento): – Meu mestre, o venerável Kanva, me mandou ver como está o tempo e se ainda é noite… Oh… (boceja) Já está amanhecendo…
A lua já mergulha atrás dos montes.
Surge do oriente o sol, lançando raios.
Eu vos saúdo, ó lua e sol, ó astros,
ó símbolos divinos das mudanças,
das trevas e das luzes do destino! (ele sai)

ANASSUÍA (entra abruptamente, preocupada): – Não é possível! Faz tanto tempo que o rei partiu e nem mesmo mandou uma mensagem, depois de tantas promessas! Pobre Sakuntala… Ah, tudo isso deve ser consequência da maldição de Durvasas. Agora só nos resta fazer chegar até o rei o anel de reconhecimento.

PRIANVADÁ (entra alegremente, com um cestinho de flores): – Anassuía, Anassuía, vem depressa, anda! Sakuntala está de partida para o palácio do rei Ducianta, em Hastinapur.

ANASSUÍA: – Que estás dizendo, Prianvadá?!

PRIANVADÁ: – É a pura verdade, deixa-me contar-te! Hoje, quando o sábio Kanva entrou no santuário, um ser invisível falou-lhe em versos celestiais, dizendo: “Em tua filha se reflete a glória do rei Ducianta. Ela será mãe de um herói. Que possa o filho imortalizar o pai!”

ANASSUÍA (emocionada): – Prianvadá!…

PRIANVADÁ: – E, diante de tão boa notícia, o pai Kanva decidiu que ela partirá hoje mesmo, sob a guarda de um fiel eremita e de nossa santa mãe Gautami.

ANASSUÍA (abraça Prianvadá): – Oh, minha querida Prianvadá, estou tão feliz!

PRIANVADÁ: – Eu também! Olha! Lá vem ela, seguida de nossos irmãos!

(Entram Sakuntala, Gautami, o velho eremita e os discípulos Saravata e Sargarava.)

PRIANVADÁ (dá a Sakuntala, um ramo de flores): – Sakuntala, queremos oferecer-te estas flores.

SAKUNTALA (pega as flores): – Ah, queridas, muito obrigada…

HARITI (entra, mostrando o véu e a tiara de pedras): – Aqui estão os ornamentos dignos de uma rainha.

GAUTAMI: – Meu filho, de onde provém tudo isto?

HARITI: – O venerável Kanva me ordenou que colhesse flores na floresta para Sakuntala, mas assim que cheguei lá (Kanva entra nesse momento) vi as mãos das ninfas por entre os ramos da árvore, e elas ofereceram este véu de puro linho, fino como o luar, e esta tiara.

PRIANVADÁ: – As ninfas! Homenageando Sakuntala…

SAKUNTALA (inclina-se ao ver Kanva aproximar-se): – Meu pai, eu te saúdo.

(Anassuía e Prianvadá põem o véu e a tiara em Sakuntala.)

KANVA: – Filha, caminha agora respeitosamente em torno do altar.

(Ele leva Sakuntala pela mão, e ambos dão a volta, com o lado direito voltado para o altar, em sinal de respeito, enquanto Kanva recita a oração no ritmo dos cantos sagrados do Rig-Veda.)

KANVA:
– Santo fogo dos altares,
santo fogo que se eleva
de madeiras consagradas,
junto às ervas escolhidas
que ali estão espalhadas;
santo fogo que conduz
para o céu as nossas dádivas;
santo fogo que nos lava
de nossas culpas pesadas –
purifica minha filha
antes de sua jornada!…
– Agora, Sakuntala, podes partir. Onde estão teus acompanhantes?

SARGARAVA: – Aqui, senhor.

KANVA: – Mostra o caminho à tua irmã e, ao chegares, recorda ao rei que “o amor é mais forte que a morte, e só a honra torna a vida digna de ser vivida”.

SARGARAVA: – Assim o farei, meu pai.

(Todos devem estar mais à frente e voltados para a frente. Atrás surgem as ninfas, que se movem levemente e falam, mas ninguém as ouve nem vê.)

NINFAS:
– Adeus, Sakuntala, segue bem alegre!
Toda a Natureza protege teus passos…

SAKUNTALA (volta-se para as plantas): – Adeus, meu querido jasmim, meu luar-do-bosque. Prianvadá e Anassuía cuidarão de ti. (a Kanva): – Pai, quando minha gazela tiver filhotes, não te esqueças de me avisar.

KANVA: – Sim, minha filha, mas agora ouve-me! Quando chegares ao palácio, respeita os mais velhos, sê sempre amiga de todos e não tenhas ciúmes do rei. Se ele um dia for áspero, responde com paciência. Sê sempre boa para os servos e severa contigo mesma. Assim, sempre serás uma bênção em teu lar. (Sakuntala se ajoelha a seus pés) Eu te abençoo, minha filha. Que minhas esperanças se realizem.

PRIANVADÁ (abraçando-a): – Adeus!

ANASSUÍA (abraçando-a): – Adeus! Querida Sakuntala, se por algum motivo o rei custar a te reconhecer, é só mostrares o anel em que o nome dele está gravado!

SAKUNTALA: – Ai… Só pensar nisso já me faz tremer.

PRIANVADÁ: – Não há razão para tanto. É nosso afeto por ti que vê o mal onde não existe.

GAUTAMI: – Vem, minha filha, é hora de partir.

TODOS: – Adeus! Adeus! (sai cada grupo por um lado)

 

QUINTO ATO

Sala do palácio do rei Ducianta
Rei Ducianta, Vataiana (velho camareiro); Somarata (sacerdote); Gautami, Sargarava e Sakuntala.

REI DUCIANTA (ouve-se triste melodia ou canto): – Sinto uma melancolia estranha… É como se fosse uma saudade imensa de alguém que conheci há muito, muito tempo, e que passa pelo meu espírito como uma sombra…

VATAIANA (entra apoiado num bastão e fala sozinho): – A que idade avançada cheguei. Este bastão, que foi o símbolo do meu posto de camareiro, agora serve de apoio a meus passos. Não me agrada nada ter de anunciar ao rei a chegada de uma comitiva que vem do eremitério do sábio Kanva. Ele acabou de sair da sala de audiência e vai querer receber os viajantes. Enfim… que fazer? É a missão de um monarca… (aproxima-se do rei e fala): – Vitória ao rei! Majestade, acabou de chegar uma comitiva que vem do eremitério das margens do Malini, trazendo uma mensagem do santo sábio Kanva.

REI DUCIANTA: – Meu bom Vataiana, qual achas que poderia ser a mensagem do venerável Kanva?

VATAIANA: – Penso que ele deseja apenas homenagear-te, para comprovar sua lealdade.

REI DUCIANTA: – Pois dize então ao sacerdote Somarata que conduza a comitiva à minha presença.

VATAIANA: – Tuas ordens serão cumpridas, meu senhor.

(Vataiana sai e volta com o sacerdote Somarata, seguido de Gautami, Sargarava e Sakuntala.)

SARGARAVA (à parte, a Gautami, quando Somarata e Vataiana se adiantam até o rei): – Para mim, criado na solidão, todos nesta cidade parecem agitados, como se houvesse incêndio por toda parte!

GAUTAMI (à parte para Sargarava): – E eu, Sargarava, sinto-me como alguém acordado que contempla os que dormem; ou como alguém que, estando livre, contempla escravos…

SOMARATA (voltando para onde estão os três viajantes, depois de ter murmurado ao ouvido do rei): – Santos eremitas, o rei vos atenderá. Que tendes a pedir?

SARGARAVA: – Grande brâmane, nós não viemos aqui para pedir.

VATAIANA (à parte para o rei): – Senhor, pelo aspecto tranquilo desses eremitas, não devem trazer mensagem alarmante.

REI DUCIANTA (à parte, para Vataiana): – Mas quem será a jovem tão graciosa que os acompanha? Em meio aos eremitas tão severos, ela parece uma flor misturada às folhas secas.

SAKUNTALA (consigo mesma): – Ó meu coração, por que te afliges? Lembra-te do amor de teu senhor e tem coragem.

SARGARAVA (adiantando-se para o rei): – Grande rei, meu venerável pai Kanva mandou-me aqui para reavivar em tua mente estas palavras sagradas: “O amor é mais forte que a morte, e só a honra torna a vida digna de ser vivida”.

REI DUCIANTA (consigo mesmo, passando a mão pela testa): – Que estranho… Parece que já ouvi esta mensagem… Mas não me recordo nem onde nem quando.

GAUTAMI (adiantando-se): – Esta jovem é Sakuntala, senhor, a esposa com quem te casaste há poucos meses, segundo os santos ritos. Obediente à vontade de seu pai Kanva, ela veio se abrigar sob teu teto para aguardar o nascimento de teu filho.

REI DUCIANTA (ergue-se espantado): – Como?!! Quereis convencer-me de que eu me casei com esta jovem? Que significa isto?

SAKUNTALA (consigo mesma): – Ai, suas palavras são como fogo para mim. Ele não me reconhece!

SARGARAVA: – É costume de um rei se afastar da verdade, quando se arrepende do que faz?

REI DUCIANTA: – Arrepender-me do que não fiz? Afastar-me de que verdade? Tudo que disseste me parece mera fantasia!

GAUTAMI: – Sakuntala, ergue teu véu, para que teu marido te reconheça. (Sakuntala obedece)

REI DUCIANTA (consigo mesmo, melancolicamente):
– Meus olhos nunca viram tal beleza…
Realmente não posso convencer-me
de que com ela tenha me casado.

SARGARAVA: – Então, grande rei, nada dizes?

REI DUCIANTA: – Veneráveis eremitas, quanto mais penso em vossas palavras, menos consigo me lembrar de ter casado com esta jovem. Que resposta posso dar? Não tenho o direito de recebê-la como esposa.

VATAIANA (à parte): Que admirável é o rei! Quem mais recusaria uma oferta de tão rara beleza?

SARGARAVA: – Recorda, rei, que o pai Kanva consentiu no casamento. E tu te atreves a insultá-lo?

GAUTAMI: – Cala-te, Sargarava, já dissemos o que tinha de ser dito. Agora cabe a Sakuntala convencer o rei da verdade.

SAKUNTALA (à parte): – Oh, que direi para reavivar-lhe a memória?… (avança em direção ao rei): – Nobre descente dos Purus! Não é digno de ti repudiar uma jovem inocente, depois de teres empenhado a palavra no eremitério do sábio Kanva.

REI DUCIANTA (tampa os ouvidos): – Basta! Tudo são calúnias. Tal crime eu jamais cometeria.

SAKUNTALA: – Se alguma nuvem te obscurece a memória, serás facilmente convencido por este sinal. (procura o anel no dedo e não o encontra) – Oh, onde está? Não está mais no meu dedo o anel! (olha aflita para Gautami)

GAUTAMI: – Deve ter caído quando prestavas homenagem às águas sagradas da lagoa de Sachi.

REI DUCIANTA: – As mulheres são mesmo hábeis em artifícios…

GAUTAMI: – Não fales assim, ilustre príncipe. Esta jovem nunca aprendeu a mentir.

REI DUCIANTA: – Senhora, meu caráter é bem conhecido. Eu jamais trairia uma esposa. Essa é a razão porque tudo isso me parece uma estranha fantasia.

GAUTAMI: – Meus filhos, esta discussão é inútil. Só nos resta partir.

SARGARAVA: – Tens razão. (ao rei): – Senhor, Sakuntala é realmente tua esposa. Poderás recebê-la ou rejeitá-la. De qualquer maneira, nós a deixamos sob tua proteção. (a Gautami): – Vem, Gautami.

SAKUNTALA: – Oh! Rejeitada por ele e abandonada por vós?

SARGARAVA: – Sakuntala! Voltando conosco, estarás concordando que mentiste. Se queres manter firme a tua verdade, permanece aqui, nem que seja como serva, pois o lugar de uma esposa é ao lado de seu senhor.

REI DUCIANTA (ao sacerdote Somarata): – Meu caro Somarata, ajuda-me. Parece que uma sombra obscurece meus pensamentos… Que decisão tomar?

SOMARATA: – Eu providenciarei para que a jovem se hospede em minha casa até a criança nascer. E se ela nascer com os sinais do império nas mãos, deves receber Sakuntala imediatamente como tua esposa. (O rei abaixa a cabeça, e o sacerdote se dirige a Sakuntala): – Filha, segue-me!

SAKUNTALA: – Ó divina terra, abre e me recebe em tuas profundezas!

(Eles saem; Gautami e Sargarava saem por outro lado, conduzidos por Vataiana. O rei permanece de cabeça baixa, sozinho. Ouve-se o mesmo canto ou música triste. Ao fim do canto, entra correndo o camareiro, seguido pelo sacerdote.)

VATAIANA: – Um milagre, rei! Um milagre!

REI DUCIANTA (incrédulo e desanimado): – Que acontece desta vez?

SOMARATA (estarrecido): – Grande príncipe, aconteceu um prodígio inacreditável. Assim que os eremitas partiram, Sakuntala chorava e lamentava seu destino…

REI DUCIANTA (intrigado e impaciente): – Sim, sim, e depois?

SOMARATA: – … quando de repente, perto da lagoa das ninfas, surgiu aos nossos olhos um ser resplandecente, de formas femininas, que desceu do céu e levou Sakuntala consigo.

REI DUCIANTA: – Não há nada a fazer. Agora, de qualquer forma está tudo terminado, e nunca desvendaremos o mistério. Eu te agradeço, Somarata. Vai em paz.

SOMARATA (saindo): – Sim, meu filho.

REI DUCIANTA (ao camareiro): – Acompanha-me aos meus aposentos. (começam a andar para sair) Não me lembro mesmo de ter casado. No entanto, meu coração sofre, como se ele mesmo testemunhasse contra mim. Começo até a acreditar em Sakuntala… (saem)

 

PRELÚDIO AO SEXTO ATO

 

Rua junto ao palácio do rei Ducianta.
O chefe dos guardas Mitravasu, os guardas Suchaka e Januka; Cavitrá, pescador.

(Entram Mitravasu, mais imponente, na frente. Atrás vêm Suchaka e Januka arrastando Cavitrá.)

SUCHAKA (bate em Cavitrá): – Toma esta, por seres um vil ladrão! E agora conta onde encontraste este anel!

CAVITRÁ: – Ai, ai, seu guarda!

JANUKA (empurra Cavitrá): – E logo um anel que tem o sinete do rei! Olha aqui gravadas todas as letras do seu nome!

CAVITRÁ (alarmado): – Misericórdia! E como eu ia saber se não entendo nada de letras? Eu não roubei esse anel, não, seu guarda.

SUCHAKA (irônico): – É claro! Vai ver que o rei te confundiu com um sério brâmane e te deu este anel de presente.

CAVITRÁ: – Por favor, escuta-me! Eu sou Cavitrá, um pobre pescador que mora em Sakravatara.

JANUKA (ameaçador): – Seu patife! Quem pediu que contes a história de tua vida?

MITRAVASU (conciliador): – Deixa o homem falar, Januka. Não o interrompas.

CAVITRÁ (dirige-se ao chefe dos guardas): – Senhor, estás vendo que sou um pobre homem, que sustenta a família pescando com uma rede…

MITRAVASU (ri): – Ocupação das mais refinadas…

CAVITRÁ (protesta): – Não me censures por isso. O sacerdote que mata o animal para o sacrifício não é considerado cruel. Por isso, um homem humilde, apesar de ser pescador, pode ter um bom coração.

MITRAVASU (disfarça, um pouco sem graça): – Está bem, Cavitrá. Continua!

CAVITRÁ: – Eu estava um dia abrindo uma carpa que tinha acabado de fisgar, quando enxerguei dentro dela o brilho de uma joia. E não é que era este anel!

MITRAVASU (duvida): – Hum…

CAVITRÁ (esperto): – Como foi parar ali, só o rei pode explicar. Bem sabeis que eu nunca poderia ter entrado no palácio. Quem disser que um mísero pescador teve acesso ao tesouro real estará desmoralizando a vossa vigilância. (aponta os dois outros guardas)

SUCHAKA (assustado): – Chefe, este patife foi industriado por algum espertalhão. Ou aceitamos a história do peixe ou confessamos nossa incapacidade.

MITRAVASU (rodeia Cavitrá): – Ele cheira tanto a peixe que só pode mesmo ser um pescador. Em todo caso, precisamos investigar mais a respeito de seu estranho achado. Vamos levá-lo até o palácio!

JANUKA (empurra Cavitrá): – Anda, seu mentiroso! (vão até o outro lado)

MITRAVASU: – Agora, ficai de guarda junto ao preso, enquanto eu entro e levo toda esta história ao conhecimento do rei.

(Sai o chefe. O pescador senta-se no chão tranquilamente, pode tocar uma flautinha, enquanto os guardas esperam com impaciência.)

SUCHAKA: – O chefe está demorando.

JANUKA: – Ora, Suchaka, não é fácil falar com reis. Precisa-se esperar o momento oportuno.

SUCHAKA: – Meus dedos estão loucos para aplicar a primeira bofetada nesta vítima real, ou fazer de seu corpo um alvo para minhas flechas.

CAVITRÁ: – Ora, seu guarda, eu sou tão magro que tuas flechas se perderiam e ficarias desacreditado.

SUCHAKA (zangado): – Não me provoques! Hei de matar-te com todas as honras e enfeitar teu cadáver de flores!

JANUKA (olha além da cena): – Lá vem nosso chefe! E traz um papel na mão. Devem ser as ordens do rei. (caçoa com Cavitrá): – Prepara-te, homem, para servir de pasto aos abutres.

MITRAVASU (chega): – Soltai o pescador! Sua história sobre o anel é correta.

SUCHAKA: – Correta?! Não é possível, chefe Mitravasu!

JANUKA: – O homem já estava com um pé na cova e agora volta à terra dos vivos. (empurra Cavitrá, que se tinha levantado): – Vai embora, Cavitrá!

MITRAVASU: – Um momento! O rei te mandou esta bolsa. Ela contém uma soma equivalente ao valor do anel.

CAVITRÁ (inclina-se e pula, várias vezes): – Oh! Oh! Oh!… É uma grande honra para mim! Uma grande honra!

JANUKA (espantado): – O rei dá tanto valor a um anel para recompensar assim um pobre diabo?

MITRAVASU: – É uma joia de estimação, lembrança de alguém que ele ama, pois no momento em que a viu ficou muito agitado, embora costume ocultar seus sentimentos. É a primeira vez que vejo um homem reaver uma joia e se lamentar como se fosse vítima de uma desgraça.

SUCHAKA (melancólico): – E assim, afinal, foi um mísero marido da mulher de um pescador que prestou um grande serviço ao rei e foi recompensado.

CAVITRÁ: – Ora, eu reparto o dinheiro com todos. (dá algumas moedas a Suchaka, rindo): – Toma, Suchaka, assim podes comprar as flores de que falavas.

SUCHAKA (sem graça): – Bem, quer dizer…

JANUKA (sem graça, recebe moedas também): – Ora, e eu que pensei…

MITRAVASU: – Meu bom Cavitrá, és um excelente camarada. Selemos nossa amizade com um bom vinho!

SUCHAKA: – Isto sim!

JANUKA: – Ótima ideia!

CAVITRÁ: – Vamos! (saem todos)

 

SEXTO ATO

Jardim junto ao palácio. Torre do palácio ao lado.
Sanumati, a ninfa; Ambalika e Maduka, jardineiras do rei; Vataiana, camareiro; rei Ducianta e Matávia; o cocheiro do carro do deus Indra; o arqueiro do rei.

(Aparece a ninfa Sanumati, que é alegre e travessa. Traz um véu vaporoso e torna-se invisível quando se cobre com ele. Ela chega até a frente da cena.)

SANUMATI (enquanto fala, movimenta-se rápida e leve, como se bailasse): – Eis-me aqui! Acabei de terminar um trabalho na lagoa das ninfas e vim verificar com meus próprios olhos como passa o rei Ducianta. Sou Sanumati, amiga da ninfa Menaka, e por isso sua filha Sakuntala me é muito querida. É por ela que vim realizar esta missão. (olha em todas as direções) Por que não vejo preparativo algum para as comemorações da primavera? Bem, com meus poderes divinos eu poderia facilmente descobrir o motivo, mas não devo, pois não é esse o desejo de Menaka. Mas torno-me invisível com este véu e fico por perto, observando as duas jardineiras que cuidam do jardim real. (põe o véu.)

(Entram as duas jardineiras. Ambalika para diante de uma mangueira.)

AMBALIKA:
– Salve, mangueira frondosa,
prenúncio da primavera!
Resplandecem primorosos
teus botões de flores belas.

MADUKA: – Ambalika! Já que estás saudando as flores da estação da alegria e das canções, posso colher uma para ofertar ao deus do amor?

AMBALIKA: – Claro, Maduka! Contanto que repartas comigo o benefício que te vier dessa oferenda…

MADUKA (colhe uma flor e oferece-a ao deus com movimentos leves):
– Ó deus portador do arco,
que escolhe as flores mais belas
para que formem as pontas
de cinco infalíveis flechas!
Uma flor te oferecemos:
que ela acerte o coração
dos jovens que nós queremos!

VATAIANA (entra apressado e zangado): – Que estais fazendo aí, colhendo flores, se o rei proibiu que se festeje a primavera?

AMBALIKA (alarmada): – Perdoa-nos, senhor! Não sabíamos dessa ordem.

MADUKA: – Mas por que as festividades costumeiras foram proibidas?

VATAIANA: – Então não sabeis que o rei perdeu a memória e rejeitou sua esposa Sakuntala? Pois agora, que se lembra de tudo, vive no mais amargo remorso, vagando tristemente e sem querer saber de nada.

SANUMATI (consigo mesma): – Que ótima notícia!

VATAIANA: – Aí vem o rei!

AMBALIKA: – Então é melhor nos afastarmos. (saem as duas)

VATAIANA (à parte, olhando o rei, que entra acompanhado de Matávia):
– Seus lábios estão brancos de tanto suspirar;
seus olhos estão baços de tanto meditar.
Mas, apesar de tudo, transparece em seu ser
tal nobreza de espírito que o faz resplandecer. (ele sai)

SANUMATI (consigo mesma): – Hum… Agora entendo porque Sakuntala se consome pelo rei…

REI DUCIANTA (anda de lá para cá):
– Sakuntala tentou me despertar.
E eu estava com a memória adormecida.
Bem que eu queria agora adormecer
para esquecer a dor, mas não consigo…

SANUMATI (consigo mesma): – O sofrimento de minha pobre Sakuntala é bem parecido com este…

MATÁVIA (à parte): – Lá está ele de novo sofrendo da febre de Sakuntala. E eu já nem sei que tratamento prescrever. (ao rei): – Agora que estamos sós, vamos descansar neste lindo jardim?

REI DUCIANTA (melancólico): – Ah, meu amigo…

MATÁVIA: – Ânimo! Ânimo! Ora, vamos, tal fraqueza é indigna de ti!

SANUMATI (à parte, alegre): – Ah… Sua angústia me alegra tanto…

REI DUCIANTA: – De que modo vou amenizar minha dor?

MATÁVIA (animando-o): – Não dizem que Sakuntala foi levada por sua mãe para a morada das ninfas celestes? Pois então! Sua mãe não deixará que ela sofra longe de ti por muito tempo.

REI DUCIANTA: – Ah, Matávia, acho que o destino só quer punir-me. E agora, que a memória me voltou, só vejo um abismo à minha frente.

SANUMATI (consigo mesma): – Amantes separados são difíceis de contentar, mas este é pior que qualquer outro.

MATÁVIA: – Não desesperes assim. Pois o anel não é um sinal de que aquilo que foi perdido pode ser reencontrado?

REI DUCIANTA: – Pobre anel de minha amada, é triste que esteja longe dela.

SANUMATI (consigo mesma): – Triste seria se tivesse caído em mãos estranhas! (impaciente) Ah, este rei está imerso na mais negra escuridão, apesar da luz que brilha nele. Vou revelar tudo agora mesmo e pôr um fim nessa tristeza! (reflete) Mas, não… A mãe do grande Indra, ao consolar Sakuntala, disse que os deuses vão logo favorecer seu reencontro com o rei Ducianta. Não posso antecipar nada. (vai sair quando vê alguém chegar) Oh! Que está fazendo aqui o cocheiro do deus Indra? Vou voltar depressa para junto de Sakuntala e contar o que vi. (sai)

(O cocheiro do carro do deus Indra, coberto pelo véu que o torna invisível, entra, agarra Matávia pela gola e o leva para o alto da torre.)

MATÁVIA (sem ser visto, grita): – Socorro! Socorro!

REI DUCIANTA (desperta da tristeza): – É a voz de Matávia! Matávia, onde estás?

ARQUEIRO (entra): – Teu amigo está em perigo. Salva-o, grande rei!

REI DUCIANTA: – Quem ousa insultar o honrado Matávia?

ARQUEIRO: – Algum demônio do mal, invisível aos nossos olhos, o agarrou e o escondeu no alto da torre.

REI DUCIANTA: – Impossível! Então espíritos maléficos já têm poder sobre meus súditos, e em minha propriedade? A cada dia que passa tenho menos força e menos competência para exercer o controle de minhas ações. Como vou então orientar meus súditos ou protegê-los de erros e de violências?

MATÁVIA (sua cabeça reaparece no alto): – Ducianta! Ducianta! Vem socorrer-me!

REI DUCIANTA (avança em passos largos): – Já vou! Não tenhas medo!

MATÁVIA: – “Não tenhas medo”?! Como posso não vou ter medo se um monstro está torcendo meu pescoço e pode bem quebrá-lo como um pedaço de cana?!

REI DUCIANTA (olha em volta): – Arqueiro! Depressa, meu arco!

ARQUEIRO (passa-lhe o arco): – Aqui, senhor!

(O rei agarra o arco, mas pára ao ouvir a voz do cocheiro de Indra.)

COCHEIRO DE INDRA (finge ser um demônio): – Sedento de teu sangue, eu te derrubarei, como um tigre feroz subjuga sua presa!

MATÁVIA (grita, apavorado): – Socorro, Ducianta! Socoooorro!

COCHEIRO DE INDRA: – Chama Ducianta o quanto quiseres. Para mim, a força desse rei é o mesmo que nada!

REI DUCIANTA (furioso): – Quem se atreve a me desafiar face a face? Prepara-te! Tua hora chegou! (estica o arco e diz ao arqueiro): – Arqueiro, segue-me! (os dois se põem em posição de ataque, o arqueiro com a aljava.)

COCHEIRO DO DEUS INDRA (tira o véu e se revela): – Baixa teu arco, ó rei! Assim ordena o deus Indra!

REI DUCIANTA (espantado e respeitoso): – Oh! É o cocheiro do carro do poderoso deus Indra. Eu te saúdo respeitosamente!

MATÁVIA: – Quer dizer que recebes com toda a amizade este monstro que me mataria sem hesitar, como se eu fosse um boi a ser sacrificado?

COCHEIRO DE INDRA: – Não temas, Matávia! Ao ver que o espírito do rei estava completamente dominado pela tristeza, quis despertar suas energias, provocando-o até que ele se zangasse. Às vezes os homens mais valentes precisam disso.

MATÁVIA (desce ainda trêmulo, mas conformado): Ah… bom… Assim é melhor.

COCHEIRO DE INDRA: – Príncipe, escuta a mensagem que te manda o deus Indra: Há uma raça de gigantes, descendentes de Kalanemi, que os deuses não conseguem subjugar. E meu senhor celeste se digna convocar-te a um posto de alta honra. Ele quer que chefies seu exército, para vencer a legião terrível! Sobe comigo agora, ó rei Ducianta, e dá-nos a vitória!

REI DUCIANTA: – O poderoso Indra me honra da mais alta forma. Eu irei contigo! (a Matávia): – Meu caro Matávia, conta ao primeiro ministro o que se passou, dizendo-lhe que eu lhe confio meu reino. Que ele cuide dos interesses do povo, enquanto meu arco é erguido contra os inimigos do céu!

MATÁVIA:
– Não te preocupes. Tua palavra é lei!
(consigo mesmo): – Arre, até que enfim o rei é o rei.

(Saem o cocheiro, o arqueiro e Ducianta por um lado e Matávia pelo outro.)

 

PRELÚDIO AO SÉTIMO ATO

(A luta do rei Ducianta com os gigantes pode aparecer no fundo da cena, como sombras atrás de uma cortina transparente, com a queda final dos gigantes, ouvindo-se um leve murmúrio de vozes humanas e o soar de trompas.)

 

SÉTIMO ATO

 

Céu do deus Indra
Cocheiro de Indra, rei Ducianta; duas pajens, Suvrata e Damati; Sakuntala; Kassiapá e Aditi.

(O rei e o cocheiro de Indra estão viajando de volta à terra. Pensar em como representar essa viagem, com carro ou não.)

REI DUCIANTA (com a mão em pala na testa, olha ao longe): – Meu nobre amigo, não vejo bem que rumo seguimos nesta viagem de volta à terra… Em que caminho dos sete ventos estamos nós agora?

COCHEIRO DE INDRA: – Estamos no caminho de Parivaha, o vento que sopra ao longo do Ganges e faz girar as sete estrelas da Ursa (7). Foi por aqui que Vishnu passou ao dar seu segundo passo. Pois sabes que com três passos ele mediu o universo.

REI DUCIANTA (com admiração): – Olha! Que montanha é aquela que parece brilhar como ouro?

COCHEIRO DE INDRA: – É o Monte Dourado, onde Kassiapá, que é pai de homens e deuses, faz penitência pelo bem dos mortais, ao lado de sua esposa Aditi. Estamos descendo exatamente junto a esse sagrado retiro. (eles chegam)

REI DUCIANTA: – Então terei a oportunidade de pedir sua bênção?

COCHEIRO DE INDRA: – Sim, grande príncipe. Agora vou até Kassiapá anunciar tua chegada. Espera-me aqui. (sai)

REI DUCIANTA (sente a mão tremer):
– Ó minha mão, por que trêmula vibras?
Minha felicidade está perdida;
já não tenho esperança. Não me iludas!
Por que pressentes algum bem futuro?

(Entram por um lado duas pajens. Uma delas com um bebê nos braços.)

SUVRATA (com o bebê nos braços): – É tão lindinho…

DAMATI: – Toma cuidado com ele, Suvrata.

REI DUCIANTA (à parte): – Ouço vozes… (olha e sorri) São duas mulheres com um bebezinho. Que estranho… Meu coração se inclina para essa criança com imenso afeto. Por que será? (aproxima-se mais) Oh, ele estendeu as mãos, e nelas estão os sinais do Império! Seus dedos são ligados uns aos outros por uma fina membrana!

DAMATI (vendo o rei): – Senhor, queres ver o menino?

REI DUCIANTA: – Sim, quero saudar o filho de um poderoso santo!

DAMATI: – Senhor, mas este menino não é filho de um santo. Seu pai é da raça dos Purus, e sua mãe é Sakuntala, a filha de uma ninfa celeste.

REI DUCIANTA (à parte): – Sakuntala… Talvez seja mera coincidência de nomes…

DAMATI (olha o bebê, assustada): – Oh, queridinho, onde está o amuleto de teu pulso? (chama a companheira): – Suvrata! Suvrata! Sumiu o amuleto!

REI DUCIANTA (aponta para o chão, enquanto Suvrata corre para ele): – Ali está ele. Deve ter caído agora mesmo. (abaixa-se para apanhá-lo)

SUVRATA (aterrorizada): – Não! Não o toques! (mas o rei já o apanhara e o entrega)

SUVRATA (leva a mão ao peito, espantadíssima): – É inacreditável!

DAMATI (cheia de alegria): – Que maravilha! Sakuntala precisa ser avisada deste fenômeno. (sai com o bebê)

REI DUCIANTA (a Suvrata): – Por que não querias que eu o tocasse?

SUVRATA: – Senhor, foi o divino Kassiapá quem presenteou o menino com esse amuleto, assim que ele nasceu. Se por acaso cai ao chão, só pode ser apanhado por seu pai ou por sua mãe. Do contrário, transforma-se numa serpente venenosa e ataca.

REI DUCIANTA: – E isso já aconteceu?

SUVRATA: – Sim, várias vezes.

REI DUCIANTA: – Então… então… esse menino é meu filho!

SAKUNTALA (entra com Damati e o bebê): – Acabei de saber do grande prodígio! Será? Será ele?

REI DUCIANTA (aproxima-se dela): – Sakuntala, minha querida, minha bem-amada, eu, que te tratei tão cruelmente, imploro teu perdão. Não recuses reconhecer-me como teu esposo.

SAKUNTALA (à parte): – Ó meu coração, a ira do destino já foi apaziguada…

REI DUCIANTA (ajoelha-se): – Escuta-me, esposa adorada! A nuvem que me oprimia a memória se dissolveu. E agora, pela graça do Senhor dos céus, nos reencontramos.

SAKUNTALA (estende-lhe as mãos): – Ah, Ducianta, esperei por ti na certeza de que virias. Levanta-te, meu querido. Bem sei que não tiveste culpa. Mas…como foi que recuperaste a lembrança do nosso amor?

REI DUCIANTA (mostra o anel): – O anel.

SAKUNTALA (assombrada): – O anel!

REI DUCIANTA: – Ele foi reencontrado num peixe, por um pobre pescador, e assim que o vi lembrei-me de tudo e mergulhei no mais amargo desespero.

COCHEIRO DE INDRA (entrando): – Eu me alegro contigo, ó príncipe. Feliz és tu, que te reúnes à tua esposa e contemplas a face de teu próprio filho! Vem! O divino Kassiapá vai recebê-lo. (dirigem-se ao outro lado, onde estão Kassiapá e Aditi)

KASSIAPÁ (à parte, para Aditi):
– Este é o poderoso herói Ducianta,
rei protetor da terra. Ele combate
e vence o mal, que é o nosso inimigo.

ADITI (à parte, para Kassiapá): – Seu aspecto, realmente, é de grande dignidade.

COCHEIRO DE INDRA: – Aproxima-te, rei Ducianta.

REI DUCIANTA (à parte, para o cocheiro):
– Este é o casal sagrado que descende
de Brahma? Então é este o santo par
que os sábios consideram fonte única
da luz celestial, que se difunde
através de doze astros resplendentes? (8)
Estes os pais que Vishnu escolheu
quando, a fim de socorrer os homens,
veio ao mundo no corpo de um mortal?

COCHEIRO DE INDRA: – Sim, são eles. (os dois se aproximam do casal)

REI DUCIANTA (ajoelha-se): – Ó seres divinos, Ducianta, feliz de ter cumprido as ordens de vosso filho Indra, se ajoelha a vossos pés.

KASSIAPÁ (abençoa-o): – Filho, que tenhas uma longa vida e um feliz reinado.

ADITI (abençoa-o): – Que sejas sempre invencível nos campos de batalha.

KASSIAPÁ (a Sakuntala): – E tu, minha filha, não guardes ressentimento, pois ambos fostes vítima da maldição de Durvasas, que cessou com o reencontro do anel.

SAKUNTALA: – Minha felicidade é imensa, venerável senhor.

REI DUCIANTA (mostra o menino): – Santo Pai, eis aqui a esperança de minha raça.

KASSIAPÁ: – Este menino será um grande monarca. Herói invencível, um dia a humanidade o aclamará como rei Bhârata e o chamará Sustentáculo do Mundo. Agora, meu filho, toma tua esposa e teu filho e continua tua viagem para a terra. Tens ainda algum pedido a fazer?

REI DUCIANTA (volta-se para o público): – Que mais posso desejar? No entanto, humildemente peço que todo rei se consagre ao bem estar de seu povo, e que Shiva, cuja energia vital inunda todo o espaço, proteja nossas almas. (9)

 

FINAL

EXPLICAÇÃO DAS NOTAS

(1) – Aqui o autor já sugere a fatalidade do futuro sofrimento de Sakuntala.
(2) – Estas árvores, em hindu, são: mallika (jasminum Zambac) e Sahakâra (variedade de manga perfumada).
(3) – Brâmanes (sacerdotes) e chátrias (guerreiros) são duas castas hindus diversas; era proibido o casamento entre pessoas de castas diferentes.
(4) – Batedores são os que vão à frente dos caçadores, cercando a floresta e fazendo ruído para concentrar a caça.
(5) – O rei vai deixar de comparecer a esta cerimônia de proteção, o que já o predispõe a sofrimentos futuros.
(6) – As amigas de Sakuntala deixam de avisá-la da maldição, predispondo-a também a um futuro descuido em relação ao anel.
(7) – Na mitologia hindu, Parivaha, um dos sete ventos, é a causa do movimento dos astros.
(8) – O esplendor que se manifesta através de doze astros é o dos doze principais deuses, filhos de Aditi.
(9) – Este pedido final é feito voltado para o público, porque se trata de uma invocação do próprio autor da peça, como era costume.

 

Sobre a escolha e o envio da peça

Para escolher uma peça com objetivo pedagógico, estude bem que tipo de vivência seria mais importante para fortalecer o amadurecimento de seus alunos. Será um drama ou uma comédia, por exemplo. No caso de um musical, é importante que a classe seja musical, que a maioria dos alunos toquem instrumentos e/ou cantem. Analise também o número de personagens da peça para ver se é adequado ao número de alunos.

Enviamos o texto completo em PDF de uma peça gratuitamente, para escolas Waldorf e escolas públicas, assim como as respectivas partituras musicais, se houver. Acima disso, cobramos uma colaboração de R$ 50,00 por peça. Para outras instituições condições a combinar.

A escola deve solicitar pelo email [email protected], informando o nome da instituição, endereço completo, dados para contato e nome do responsável pelo trabalho.

 

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