March 23, 2018

Life is Dream

 

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peça de Calderón de La Barca

translation and adaptation by Ruth Salles

GRADES

Don Pedro Calderón de La Barca, figura ímpar do teatro espanhol, nasceu em 1600, em Madri, e faleceu em 1681. Suas peças tinham tamanha popularidade, que sua morte representou verdadeira calamidade pública. Fiel espelho dos costumes de seu tempo, Calderón foi o autor que mais documentou em seus dramas as ideias e os sentimentos do século XVII, como por exemplo a humildade e a fidelidade dos vassalos perante a inviolável autoridade do rei. Calderón não cria “tipos”, como Molière, mas suas personagens são simbólicas. Em “A Vida é Sonho”, Segismundo é o símbolo do ser humano em luta consigo mesmo. Predestinado para o mal, ele vence os desígnios dos astros e alcança a virtude. O pai de Segismundo, rei astrólogo, tenta conjurar sua predestinação encerrando-o numa torre. Na primeira saída da torre, o príncipe se mostra brutal e impulsivo, iniciando o cumprimento dos desígnios. De novo é encerrado na torre, mas esta segunda reclusão representa mais um retiro interior, em que amadurece dentro do homem o verdadeiro livre arbítrio. Segismundo tentará, então, não agir mais a partir de uma visão nebulosa da vida (sonho), em que campeiam impulsos e paixões, como sua inclinação por Rosaura. Conseguirá assim o domínio de seu reino e o amor de Estrela. Segundo o poeta, a predestinação não deve ser absoluta.

Por isso, Basílio põe seu filho à prova, dizendo:

a tendência mais violenta,
o mais cruel dos planetas
que nos quer precipitar,
só inclinam o livre arbítrio,
mas não o podem forçar.

“la inclinación más violenta,
el planeta más impío,
solo el albedrío inclinan,
no fuerzan el albedrío.”

Esses seriam os versos que mais nos mostram o sentido de “A Vida é Sonho”.

OBSERVAÇÃO: Nesta versão para o português, procurei condensar o texto como me foi pedido, para que a peça tenha apenas 1 hora de duração, o que seria mais adequado para os alunos. Isto, naturalmente, prejudicou um pouco as rimas que, em minha primeira versão já um tanto condensada, estavam mais de acordo com o original do poeta.

CHARACTERS

Basílio, rei da Polônia.
Segismundo, seu filho.
Astolfo, duque de Moscou.
Clotaldo, velho.
Clarim, bufão, criado de Rosaura
Estrela, infanta.
Rosaura, dama.

Guardas da torre (4).
Soldados de Astolfo.
Damas de Estrela.
Séqüito do rei Basílio.
Criados da corte (4).
Soldados revoltosos.

A cena se passa na corte da Polônia, numa fortaleza (torre) em local distante e no campo.

Cenários:
– escarpa diante da porta da torre.
– salão do palácio real, na corte.
– dois aposentos dentro da torre.
– campo próximo à batalha.

PERSONAGENS POR CENA

PRIMEIRA JORNADA
Cena 1 (torre) – Rosaura, Clarim; Segismundo, Clotaldo; quatro guardas da torre.
Cena 2 (palácio) – Astolfo e seus soldados; Estrela e suas damas; rei Basílio e seu séqüito; Clotaldo, Rosaura e Clarim.

SEGUNDA JORNADA
Cena 1 (palácio) – Basílio e Clotaldo; Clarim; Segismundo e 4 criados; Astolfo; Estrela; Rosaura (como Astréia); o séqüito do rei.
Cena 2 (dentro da torre) – Segismundo; Clotaldo; 2 guardas e Clarim; Basílio.

TERCEIRA JORNADA
Cena 1 (dentro da torre) – Clarim; 3 soldados revoltosos; Segismundo; Clotaldo.
Cena 2 (palácio) – Basílio e Astolfo; Estrela; Clotaldo; Rosaura.
Cena 3 (campo) – Segismundo e 3 soldados revoltosos; Rosaura; Clarim; Basílio, Clotaldo e Astolfo; Estrela, damas e séqüito do rei.

PRIMEIRA JORNADA

Scene 1

De um lado um monte escarpado; do outro uma torre, cuja base serve de prisão a Segismundo. A porta que dá frente para o espectador está aberta. A ação principia ao anoitecer.

(Rosaura, vestida de homem, aparece no alto das pedras e desce; atrás dela vem Clarim. Rosaura fala, olhando em direção a um suposto cavalo deixado para trás.)

Nota:
grifo – animal fabuloso, de cabeça de águia e garras de leão.
hipogrifo – animal fabuloso, metade cavalo e metade grifo. (N. T.)

ROSAURA:
– Hipogrifo violento,
que corres tão depressa quanto o vento,
se nestas duras penhas
tu disparas, te arrastas e despenhas,
deixo-te aí em cima
e sigo a pé a minha triste sina.
– Polônia, tu recebes
bem mal a um estrangeiro, pois escreves
com sangue sua chegada
em tuas terras de tão dura entrada.
Minha sorte assim quis.
E onde encontra piedade um infeliz?

CLARIM:
– Um infeliz apenas? Somos dois,
que da pátria chegamos;
dois que por estas pedras já rolamos.
Eu passei maus momentos,
e não falas de mim em teus lamentos?

ROSAURA:
– Silenciei teu nome,
pois no silêncio a dor não te consome.
Um filósofo achava
que se o homem se queixa de uma dor
faz surgir outra dor.

CLARIM (com desdém):
– “Um filósofo achava…”
Decerto algum barbudo embriagado.
Com um bofetão bem dado,
queria ver se ele não se queixava!
Mas, que fazer agora,
sozinhos e perdidos nesta hora,
no ermo deste monte
quando o sol já descamba no horizonte?

ROSAURA:
– Clarim, se minha vista
não se engana, bem próximo se avista
estranha construção…

CLARIM:
– É uma torre. E bem perto.

ROSAURA:
– Que escuridão pra lá da porta aberta…
O sol vai-se escondendo…
Quantas trevas a torre está vertendo!
Até mesmo parece
que é de lá que esta noite nasce e cresce. (ouve-se um ruído de correntes.)
Que ruídos eu ouço!

CLARIM:
– Arrastar de correntes!… Tal rumor
se escuta em calabouços!

SEGISMUNDO (surgindo na porta, com grilhões e vestido de pele; luz na torre):
– Oh, céus! Infeliz de mim!
Por que Deus me trata assim?
Que delito cometi
apenas porque nasci?
Ó Deus que me castigais,
não nasceram os demais?
Voa uma ave serena
com suma velocidade
e deixa, contente e calma,
seu ninho, sem piedade.
E eu, que tenho mais alma,
tenho menos liberdade?
Nasce a fera e, cedo ainda,
em crua necessidade,
em desamparo e faminta,
aprende atroz crueldade.
E eu, com melhor instinto,
tenho menos liberdade?
Nasce o peixe e já se mira
e por qualquer parte gira.
Tanto lhe dá sul ou norte
no cuidar de sua sorte.
E eu, com maior vontade,
tenho menos liberdade?
Nasce o rio e se desata
como serpente de prata
por entre o campo que se abre
à sua alegre fugida.
E eu, que tenho mais vida,
tenho menos liberdade?
É esta a minha paixão:
num feroz vulcão transfeito,
quisera arrancar do peito
pedaços do coração.

ROSAURA:

– Tenho pena… e um medo atroz.

SEGISMUNDO:

– Quem escutou minha voz?

ROSAURA:

– Foi só um triste (ai de mim!)
que nestas escarpas frias
escutou o que dizias.

SEGISMUNDO:

– Ah, eu mato, com certeza,
quem ouviu minha fraqueza.

CLARIM:

– Eu sou surdo. Eu nada ouvia!

ROSAURA:

– Se és humano, bastaria
que a teus pés eu me prostrasse
para que me libertasses.

SEGISMUNDO:

– Tua voz me atinge fundo…
Quem és? Nada sei do mundo.
Pois eu, desde que nasci,
(se isto é nascer…) só vivi
aqui neste ermo absorto,
miseravelmente esquivo,
como um esqueleto vivo,
como um animado morto.
Somente tu conseguiste
deter meu furor tão triste.

ROSAURA:
– E eu, assombrada de ver-te
e surpresa de encontrar-te,
já nem sei o que dizer-te
e nem o que perguntar-te.
Eu sou…

CLOTALDO (dentro): – Guardas desta torre!
Qual de vós se acovardou
ou dormiu e assim deixou
que entrassem aqui dois homens,
violando esta prisão?

SEGISMUNDO (a Rosaura):
– É Clotaldo, meu guardião.

CLOTALDO (chama dois guardas):
– Acudi! Ainda é tempo!
Enquanto não se defendem,
Matai os dois ou prendei-os!

GUARDAS 1 e 2 (de dentro):
– Traição!

CLARIM (com jeito): – Senhores guardas,
vinde apenas nos prender!…
É mais fácil que matar…

(Surgem Clotaldo, com uma pistola, e os guardas, com o rosto coberto.)

CLOTALDO (à parte, aos guardas))
– Mantende as faces veladas.
Não pode ser revelada
qual a vossa identidade.

CLARIM (gracejando, com medo):
– Brincando de mascarados?…

CLOTALDO:
– Ó vós, que por não saberdes
qual o decreto do rei,
penetrastes nestes ermos
secretos perante a lei,
rendei as armas e as vidas.
Senão esta arma solta
duas balas decisivas.

SEGISMUNDO:
– Ah! Eu hei de me rasgar
nas pedras com mãos e dentes
antes que esta pobre gente
tu consintas em matar.

CLOTALDO (aos guardas e indicando Segismundo):
– Prendei-o em sua cadeia!
Fechai a porta da torre!

SEGISMUNDO:
– Tirano, se livre eu fosse,
seria tal qual gigante
contra vós. Fizestes bem
em tirar-me a liberdade.

CLOTALDO (pensativo):
– Talvez porque não a tenhas
hoje sofras tantos males.

(Os dois guardas levam Segismundo e o encerram na prisão.)

ROSAURA:
– Já que te ofende a arrogância,
seria em mim ignorância
não pedir com humildade
para nós dois piedade.

CLARIM:
– Se nem soberba e humildade
te movem à piedade,
eu, nem humilde ou soberbo,
peço a ti que nos ampares.

CLOTALDO (aos outros dois guardas):
– Olá!

GUARDAS 3 e 4: – Senhor!

CLOTALDO: – Desarmai
estes dois! Depois vedai
seus olhos. Não devem ver
nem como nem de onde saem.

ROSAURA (a Clotaldo):
– Entrego-te minha espada,
que não se rende a qualquer.
E já que mandas aqui
só posso rendê-la a ti.

CLARIM (dando sua espada a um dos guardas):
– A minha não vale nada.
Qualquer um pode levá-la.

ROSAURA (a Clotaldo):
– Já que vou morrer, consente
que a deixe como presente
ou prenda muito estimada
pelo dono que a usava.
Que mistério ela contém
não sei, mas sei que ela o tem.
Talvez seja engano meu,
ou só porque pertenceu
a meu pai.

CLOTALDO: – Quem foi teu pai?

ROSAURA:
– Não o conheci jamais.

CLOTALDO:
– Por que vieste à Polônia?

ROSAURA:
– Para vingar uma afronta.

CLOTALDO (pega e olha a espada; fala à parte, transtornado):
– Oh, que é isto? Santos céus!
(a Rosaura):
– Esta espada, quem te deu?

ROSAURA:
– Uma mulher.

CLOTALDO: – E de onde
te veio essa estranha idéia
de haver na espada um mistério?

ROSAURA:
– Quem deu-me a espada dizia:
“Vai à Polônia e forceja
para que os nobres a vejam.
Sei que alguém te ajudaria.”
Mas não disse quem seria
esse alguém…

CLOTALDO (à parte): – Valha-me Deus! (anda de cá para lá)
Esta é a espada que eu
deixei com a bela Violante,
para ser sinal marcante
daquele que a usaria;
e que eu reconheceria
como meu filho adorado.
Meu filho, este condenado?
Que fazer? Valei-me, ó sorte!
Levá-lo direto ao rei
é levá-lo para a morte.
Mas, se é jovem ultrajado,
é portanto um desonrado.
Ah… então não é meu filho,
nem tem o meu sangue nobre!
Mas, se veio aqui vingar-se
correndo tão sério risco,
é meu filho, tem meu sangue,
pois tem coragem tão grande!
Mas o meu dever é lei,
e devo levá-lo ao rei!
(a Rosaura e Clarim):
– Vinde, vinde, forasteiros!
Devo levá-los ao rei.
Serei vosso companheiro.

(Saem todos.)

scene 2

Salão do palácio real, na corte.

(Astolfo e seus soldados entram por um lado; pelo outro, a infanta Estrela e suas damas. Toque de tambores e trombetas. Depois entrarão Basílio e seu séqüito.)

ASTOLFO (dirigindo-se a Estrela):
– Ah, Estrela, o teu olhar,
que tem fulgor de cometa
e claridade tão calma,
os tambores e as trombetas
querem homenagear.
Oh, rainha de minha alma,
não vês como estou febril?

ESTRELA (tímida):
– Astolfo, tu és gentil…

ASTOLFO:
– Não duvides do que digo,
mas, Estrela, somos primos,
sobrinhos do rei Basílio,
velho, viúvo e sem filhos.
E ele disse que queria
um acordo entre nós dois.
E, se nós dois nos amamos
e se logo nos casamos,
a coroa será nossa
num futuro muito próximo!

STAR:
– Eu pretendia ser tua…
Teu amor já se insinua,
mas o meu, embora intacto,
não se mostra satisfeito,
por causa desse retrato
que estava sempre em teu peito.

ASTOLFO (ouvem-se tambores):
– Eu explicaria isto,
mas não é próprio o momento.
Parece que o rei vem vindo
com seu acompanhamento.

STAR:
– Vamos dar-lhe nosso abraço!

BASÍLIO (entrando com seu séqüito):
– Sobrinhos, vinde a meus braços! (volta-se para todos)
– Sabeis, sobrinhos queridos,
meus vassalos, meus amigos,
que o mundo me deu o título
de doutor nessa ciência
desses astros cristalinos,
em que campeiam os signos.
Porém o saber, às vezes,
pode ser punhal bem fino.
Ouvi-me, pois, eu suplico!
Minha esposa Clorilene
deu-me um desgraçado filho… (zum-zum geral)
Nasceu em péssimo horóscopo,
em que os dois faróis divinos,
a lua e um sangrento sol,
entraram em desafio.
Deu-se o mais horrendo eclipse
desde que o sol, com seu sangue,
chorou a morte de Cristo.
Segismundo assim nasceu,
dando de si maus indícios,
pois que sua mãe morreu.
E eu vi que ele seria
príncipe duro e cruel,
e que eu (digo com vergonha)
me renderia a seus pés.
E então, por causa disso,
ele vive numa torre,
pobre, mísero e cativo.
Com ele está só Clotaldo,
que o instruiu nas ciências
e também na lei divina.
Mas hoje penso que é lei
ele se tornar o rei;
e não há lei que me diga
que, para afastar tiranos,
use eu de tirania,
e que eu cometa delitos
somente para impedir
meu filho de cometê-los.
As previsões impropícias
talvez possam ser vencidas:

a tendência mais violenta,
o mais cruel dos planetas
que nos quer precipitar
só inclinam o livre arbítrio,
mas não o podem forçar.
E por isso decidi
que ele venha governar
sem que saiba que é meu filho.
Se for prudente e benigno
será vosso rei legítimo;
contudo, se for cruel,
volta à torre esse cativo.
E vos dou reis bem mais dignos:
meus dois diletos sobrinhos
pelo casamento unidos.

ASTOLFO:
– Se cabe a mim responder,
que Segismundo apareça,
pois lhe basta ser teu filho.

TODOS OS DA CORTE:
– Que nos seja dado o príncipe
e que seja nosso rei!

BASÍLIO:
– Amanhã vós o tereis!

ALL:
– Viva o grande rei Basílio!

(Saem todos acompanhando Estrela e Astolfo. O rei fica. Entram Clotaldo, Rosaura e Clarim.)

BASÍLIO (a Clotaldo):
– Benvindo sejas!

CLOTALDO: – Ó rei,
deu-se um fato inesperado,
que rompe os foros da lei.
Este jovem recém-vindo,
sem querer chegou à torre,
e o príncipe foi visto.

BASÍLIO:
– Ah, Clotaldo, não te aflijas.
Revelei nosso segredo,
e tu serás o instrumento
de um grande acontecimento. (aponta Rosaura e Clarim)
Dá liberdade a esses presos. (o rei sai)

CLOTALDO (à parte):
– Os céus me foram propícios!
Não direi que este é meu filho.
(a Rosaura e Clarim):
– Estais livres, forasteiros!

ROSAURA (inclina-se):
– Teus pés eu beijo. Agora
vou vingar a grave ofensa.

CLOTALDO:
– Toma a espada. Ela te basta.
Pois espada que foi minha
há de lavar tua honra! (atrapalha-se e diz):
Quer dizer, ela foi minha
porque esteve em minha mão.

ROSAURA:
– Agora juro vingança,
embora meu inimigo
seja muito poderoso…

CLOTALDO:
– Revela qual é seu nome.
Assim não dou a tal homem
nem uma ajuda somente.

ROSAURA:
– Confio em ti plenamente.
Quem me ofendeu foi Astolfo,
sim, o duque de Moscou.

CLOTALDO:
– Mas… não nasceste em Moscou?
Um vassalo não se sente
ofendido por seu príncipe
e legítimo senhor.

ROSAURA:
– Pois foi uma grande ofensa.

CLOTALDO:
-Mesmo batendo em teu rosto,
não te ofende o teu senhor.

ROSAURA:
– Pois foi ofensa maior.

CLOTALDO:
– Revela então qual foi ela.

ROSAURA:
– Inspiras tanto respeito,
tanta afeição em meu peito,
que só me atrevo a dizer
que este traje é um disfarce.
E, se Astolfo se atrever
a casar-se com Estrela,
ofende-me. Isso basta. (saem Rosaura e Clarim)

CLOTALDO (pensando, aflito):
– É poderoso o inimigo,
eu vassalo, ela mulher…
Não sei como vou poder
desvendar tal labirinto.
Abismo inimaginável,
todo o céu é um presságio,
e todo o mundo um prodígio! (sai)

FIM DA PRIMEIRA JORNADA


SEGUNDA JORNADA

 

Scene 1
Salão do palácio real, na corte.

(Entram Basílio e Clotaldo, conversando.)

CLOTALDO:
– Fiz tudo como ordenaste.
Com a agradável bebida
cujo poder deixa o homem
transfeito em cadáver vivo,
desci ao cárcere estreito
de Segismundo. Falamos
sobre a águia majestosa,
rainha das aves todas.
Sendo o assunto majestade,
ele disse com orgulho:
“Fui à força subjugado
em prisão escura e fria,
porém, de livre vontade,
a ninguém me renderia.”
Para acalmar sua dor,
ofereci-lhe a bebida
que o fez cair em torpor.
E foi trazido ao palácio,
e está dormindo em teu leito.

BASÍLIO:
– Clotaldo, tudo o que fiz
foi pensando no pior.
Pois se amanhã Segismundo
for de novo encarcerado,
quando acordar vai pensar
que o que viveu foi sonhado.

CLOTALDO:
– Razões não me faltariam
para provar que te enganas,
mas é tarde, pois parece
que teu filho já desperta.
Devo dizer-lhe a verdade?

BASÍLIO:
– Sim, pode ser que, ao sabê-la,
saiba o perigo que corre
e mais facilmente o vença. (Basílio sai)

CLARIM (entra mancando e esfregando as costas, fala à parte ou ao público):
– Para entrar neste palácio,
levei quatro cacetadas
de um guarda que, de repente,
cresceu de dentro da farda.
Quem quer ver o que se passa,
sempre tem uma janela
bem maior que a de quem tenta
comprar bilhete de entrada:
é a falta de vergonha
de entrar sem ser convidado.

CLOTALDO:
– Olá, Clarim, que há de novo?

CLARIM:
– Há, senhor, que aconselhaste
Rosaura a mudar de trajes.

CLOTALDO:
– Sim, usar trajes de homem
pareceria leviano.

CLARIM:
– E há, senhor, que mudando
o seu verdadeiro nome,
passa por sobrinha tua
e dama de honra de Estrela,
e já vive em seu palácio,
enquanto EU vivo na rua.
Há que ela está alegrinha,
servida como rainha,
enquanto EU morro de fome
e ninguém sabe meu nome.
Pois o meu nome é Clarim,
e quando o Clarim soar
vai ser para anunciar
o que acontece aqui dentro.
Pois essas duas palavras,
que são criado e clarim,
não combinam com segredo.

CLOTALDO:
– Entendo bem o que dizes,
mas hás de ser bem cuidado
se por ora me servires.

CLARIM:
– Segismundo se aproxima!

(Entra Segismundo seguido por 4 criados que lhe ajeitam a capa.)

SEGISMUNDO:
– É bem difícil de crer
em tudo que estou a ver.
De seda e rendas trajado,
eu, cercado de criados?
Não posso dizer que é sonho,
pois sei que estou acordado.
Mas, seja lá o que for,
que me venham já servir
como a um grande senhor.

CLOTALDO:
– Deixa-me beijar-te a mão!

SEGISMUNDO:
– É Clotaldo, mas então…

CLOTALDO:
– Então, digo-te a verdade:
tu és o príncipe herdeiro
da Polônia. E estavas preso
por causa da lei dos astros,
que mil tragédias previa
para este império no dia
em que usasses a coroa.
Porém teu pai, confiando
em teu poder de vencer
esse horóscopo tão triste,
mandou trazer-te da torre
ao palácio, onde dormiste.
Teu pai é o rei, meu senhor.

SEGISMUNDO:
– Ah, vil, infame, traidor!
Tu contra a lei me negaste
a majestade da sorte?
Pois eu te condeno à morte!

1º CRIADO:
– Não, senhor!

SEGISMUNDO: – Se algum de vós
quiser tentar protegê-lo,
atiro-o pela janela!

2º CRIADO:
– Foge, Clotaldo!

CLOTALDO: – Ai de ti…
Que soberba vais mostrando… (sai)

1º CRIADO:
– Contudo, senhor, Clotaldo
obedecia a seu rei.

SEGISMUNDO:
– Não se deve obedecer
ao rei, se a lei não é justa.
E comigo não discutas!

CLARIM:
– O príncipe disse bem.
Tu te portas muito mal.

2º CRIADO:
– Quem te permitiu falar?

CLARIM:
– Eu mesmo.

SEGISMUNDO: – E tu quem és?

CLARIM:
– Quem sou? Um intrometido,
e nesse ofício sou chefe.
Sou o maior mequetrefe
que jamais foi conhecido.

SEGISMUNDO:
– Só tu me agradaste aqui.

CLARIM:
– Sou um grande agradador
de todos os Segismundos.

ASTOLFO (entrando):
– Tu és o sol da Polônia
e alegras os horizontes,
pois surgiste como o sol
quando sai de trás dos montes.

SEGISMUNDO:
– Neste caso, Deus te guarde.

ASTOLFO:
– Não me prestas homenagem
porque não sabes quem sou.
Sou o duque de Moscou,
Astolfo, e também teu primo.

SEGISMUNDO:
– Se peço a Deus que te guarde
não te presto uma homenagem?
Então da próxima vez
peço a Deus que não te guarde.

1º CRIADO (à parte, a Segismundo):
– Ele é pessoa importante…

SEGISMUNDO:
– Mais importante sou eu.

STAR:
– Bem-vindo sejas, senhor!

SEGISMUNDO (a Clarim):
– Quem é essa deusa humana
de beleza soberana?

CLARIM:
– Pois é tua prima Estrela.

SEGISMUNDO (a Estrela, que se mostra tímida):
– Permite beijar-te a mão,
onde a própria aurora veio
buscar luminosidade.

2º CRIADO (a Segismundo):
– Modera teu galanteio.
Convém ser mais comedido
estando Astolfo presente.
SEGISMUNDO:
– Não te metas!

2º CRIADO: – Eu só digo
o justo e conveniente.
Pois já disseste que o certo
é fazer só o que é justo.

SEGISMUNDO:
– Nada me parece certo
quando vai contra meu gosto.
E então também soubeste
que atiro pela janela
aquele que me aborrece. (sai da sala arrastando o 2º criado)

ASTOLFO:
– Que é isso?!

ESTRELA: – Oh, devemos todos
impedi-lo de matar! (ela sai correndo atrás do 1º criado.)

SEGISMUNDO (voltando):
– Joguei-o no mar gelado!
Vem nadando enregelado.

ASTOLFO:
– Pois mede com mais vagar
tuas ações. A distância
que vai de uma fera ao homem
é a mesma que o espaço
que vai da torre ao palácio. (ele sai)

BASÍLIO (entrando):
– Que houve aqui?

SEGISMUNDO: – Não foi nada.
Atirei no mar gelado
um homem que me amolava.

CLARIM (a Segismundo):
– É o rei. Já estás avisado.

BASÍLIO:
– Grande dor estou sentindo.
Pois não estarás vencendo
o prognóstico dos astros
cometendo desatinos.
Agora, com que amor
poderei abrir-te os braços?

SEGISMUNDO:
– Sem teus braços passarei
como até hoje passei.
Não importa que me abrace
um pai que sequer me deu
a vida de um ser humano.

BASÍLIO:
– Quem dera que eu não tivesse
chegado a te dar a vida
para ouvir o que disseste
com audácia empedernida.

SEGISMUNDO:
– Se não me deras a vida,
não me queixara de ti.
Queixo-me porque foi dada
e depois me foi negada.

BASÍLIO:
– Nem agradeces o fato
de te termos libertado?

SEGISMUNDO:
– Tirano do livre arbítrio
para o qual o homem é feito,
não me dás mais do que aquilo
ao qual eu tenho direito.
E o tempo em que me roubaste
vida, honra e liberdade?

BASÍLIO:
– És bárbaro e atrevido.
Pois ouve bem este aviso:
deves ser humilde e brando,
pois quem sabe estás sonhando. (sai)

SEGISMUNDO:
– Sei que sonhando não estou.

ROSAURA (em trajes femininos, entra e fala à parte):
– Procuro por Estrela,
mas encontrar Astolfo eu não desejo,
pois Clotaldo aconselha
que por enquanto Astolfo não me veja. (vê Segismundo)
O príncipe! É melhor
que eu me retire.

SEGISMUNDO: – Ó mulher! Detém-te!
Se partires agora,
este dia anoitece antes da hora.
(reconhecendo-a)
Mas, como? Que estou vendo?
Já vi essa beleza tão perfeita.

ROSAURA (à parte):
– E eu já vi reduzida esta grandeza
a uma torre estreita.

SEGISMUNDO:
– De novo me palpita o coração…
Quem és, mulher tão bela?

ROSAURA:
– Eu sou uma infeliz dama de Estrela.

SEGISMUNDO:
– Mais pareces o Sol,
que ofusca de uma Estrela o resplendor.

ROSAURA:
– O elogio agradeço.
Responde-te, eloquente, o meu silêncio.
Melhor fala, senhor, quem mais se cala.
Eu te peço a licença de sair.

SEGISMUNDO:
– Pedir com tal violência é exigir.

ROSAURA:
– Se não me dás licença de sair,
devo sair sem que me dês licença.

SEGISMUNDO:
– Ah… Tanta resistência
é veneno fatal para a paciência.
Hoje mesmo, ainda há pouco,
joguei pela janela, como louco,
um criado obstinado.

(Clotaldo entra e fica à parte, sem ser visto por Segismundo.)

ROSAURA:
– Mas, que faria um homem
que não possui de humano mais que o nome,
um bárbaro tirano,
atrevido cruel e desumano?

SEGISMUNDO:
– Então, se me injurias,
pelo que fiz e pelo que não fiz,
hás de queixar-te então,
do que fiz ou não fiz, com mais razão.
Que todos saiam! Que se feche a porta!

(Saem Clarim, o 3º e o 4º criados.)

ROSAURA:
– Oh, meu Deus, estou morta!

SEGISMUNDO (vendo aparecer Clotaldo):
– Mas, de novo por ti sou provocado?
E para que entraste?

CLOTALDO:
– Para dizer que sejas
mais pacífico se reinar desejas.
Por isso me interponho.
Cuidado! Tudo pode ser um sonho.

SEGISMUNDO:
– Provocas minha ira.
Matando-te verei se isto é mentira.

(Segismundo saca da adaga. Clotaldo o detém com a mão e se põe de joelhos.)

ROSAURA:
– Correi todos! Clotaldo vai ser morto! (ela sai)

ASTOLFO (entrando e se pondo entre os dois):
– Príncipe generoso,
põe na bainha tão valente espada!

SEGISMUNDO:
– Só quando ensanguentada.

ASTOLFO:
– Neste velho a teus pés, tão respeitado?

SEGISMUNDO:
– Então defende a vida!
Em ti me vingo da insolência antiga.

(Astolfo empunha a espada e lutam. Entram Basílio, Estrela e séquito.)

BASÍLIO:
– Basta! Estou ordenando! (os dois embainham as espadas)

SEGISMUNDO:
– Era este velho que eu ia matando.

BASÍLIO (a Segismundo):
– E nem respeitas seus cabelos brancos?

SEGISMUNDO (apontando os cabelos brancos do rei):
– Por que respeitaria?
Pode até ser que os teus, em poucos dias,
estejam a meus pés.
Ainda não estou vingado
do modo injusto como fui criado. (ele sai)

BASÍLIO:
– Antes que isso aconteça,
tornarás a deitar tua cabeça
num sono bem pesado,
crendo depois que tudo foi sonhado. (Saem o rei, Clotaldo e o séquito.)

ASTOLFO (a Estrela):
– Ah, poucas vezes os astros,
prevendo desgraças, erram.
Quanto aos bens, nem sempre acertam.
Desgraças vaticinaram
a Segismundo e acertaram.
Mas para mim, bela Estrela,
previram troféus e bens,
e só recebo desdéns.

STAR:
– Tens anseios de quem ama.
Porém são por outra dama,
cujo retrato, outro dia,
sempre ao pescoço trazias. (entra Rosaura, que se esconde)

ASTOLFO:
– Farei com que esse retrato
seja trocado por outro.
Vou já buscá-lo. (à parte) – Perdoa,
Rosaura formosa e boa… (Astolfo sai. Rosaura aparece.)

STAR:
– Astréia!

ROSAURA: – Senhora minha!

STAR:
– Vou casar-me com Astolfo.
Mas, ao ver o meu desgosto
pelo retrato de outra
que guarda sempre consigo,
foi buscá-lo prontamente,
para me dar e trocá-lo
pelo meu. Oh, por favor,
espera aqui que ele chegue,
pois isso é constrangedor
Dize a ele que te entregue.
És tão sábia e tão discreta…
De amor deves entender. (ela sai)

ROSAURA:
— Quem dera não entender…
Valha-me Deus! Que fazer?
Não posso dizer quem sou.
Clotaldo, que me salvou,
pediu que eu espere a hora
de reaver minha honra.
Mas, se não digo quem sou
e Astolfo vem me encontrar,
como vou dissimular?

ASTOLFO (entra com o retrato na mão):
– Senhora, o retrato é este. (vê Rosaura)
Mas… oh, Deus!

ROSAURA: – De que te espantas?

ASTOLFO:
– De ouvir-te, Rosaura, e ver-te.

ROSAURA:
– Eu, Rosaura? Tu te enganas,
me tomas por outra dama.
Sou Astréia, e não mereço,
devido à minha humildade,
causar-te perplexidade.

ASTOLFO:
– Rosaura, não dissimules,
pois nunca se engana a alma
que, se te vê como Astréia,
só te quer como Rosaura.

ROSAURA:
– Não sei o que estás dizendo,
mas, a Estrela obedecendo,
vim aqui e te esperei.
Pediu-me, de sua parte,
que me entregues o retrato,
e a ela devo entregá-lo.

ASTOLFO:
– Dize a teus dois instrumentos,
teus olhos e tua voz,
que desafinam bastante
nos dando um concerto atroz.
Porque desafina sempre
a mentira de quem fala
com a verdade de quem sente.

ROSAURA:
– Repito: dá-me o retrato
que tens na mão.

ASTOLFO: – Pois se queres
levar avante a comédia,
Astréia, dirás a Estrela
que lhe envio o original,
o qual tu podes levar,
porque ele está em ti mesma.

ROSAURA (tenta tirar-lhe o retrato):
– Eu venho por um retrato!
Solta-o, solta-o, ingrato!

ASTOLFO:
– Já basta, Rosaura minha.

ROSAURA:
– Eu, tua? Mas, como mentes!

(Ambos agarram a corrente do retrato. Estrela entra)

STAR:
– Astréia, Astolfo, que é isso?

ROSAURA:
– Senhora, tu me mandaste
esperar por um retrato,
e eu, lembrando-me de outro,
guardado na minha manga,
quis vê-lo e caiu ao chão.
Astolfo então o pegou
e o prende em sua mão.
Não sei porque não devolve.
Mas tu verás que esse é meu,
pois tem os meus traços nele.

STAR:
– Devolve, Astolfo!

ASTOLFO: – Senhora…

(Ela o tira de sua mão e o contempla.)

STAR:
– Toma, Astréia. Sai agora.

ROSAURA (sai, dizendo à parte):
– Venha agora o que vier,
consegui o meu retrato.

ESTRELA (a Astolfo):
– E onde está o outro retrato?

ASTOLFO:
– Perdão, mas não posso dá-lo.

STAR:
– Então tenta me esquecer,
pois não quero mais te ver. (sai)

ASTOLFO:
– Ah, Rosaura, que fizeste?
De onde, como e por que
à Polônia tu vieste? (sai.)

 

scene 2

Prisão do príncipe dentro da torre, com dois aposentos contíguos.

(Entram Clotaldo e Clarim, seguidos de 2 guardas, que carregam Segismundo e o deitam no chão. Segismundo está vestido de peles novamente.)

CLARIM:
– Não despertes, Segismundo,
pois trocaram tua sorte.
E tua glória fingida
foi uma sombra da vida
e uma chama da morte.

CLOTALDO:
– A quem sabe discursar
se dê local adequado,
para lá se exercitar.
(aos guardas):
– Agarrai este também!
(aponta um compartimento contíguo)
Prendei-o naquela cela!

CLARIM (reagindo):
– Eu?! Mas, por sorte dos astros,
quis matar meu pai? Não quis!
Joguei do balcão abaixo
algum Ícaro infeliz?
Não. Então com que fim
me prendem?

CLOTALDO: – Porque és Clarim.

CLARIM:
– Pois então serei corneta.
E seu som é tão rachado,
que o jeito é ficar calado.

(Clarim é levado pelos guardas. Fica Clotaldo. Entra Basílio embuçado.)

BASÍLIO:
– Clotaldo!

CLOTALDO: – Senhor!

BASÍLIO: – Eu vim
ver o infeliz Segismundo.

CLOTALDO:
– Caiu num sono profundo.

SEGISMUNDO (acordando):
– Onde é que estou? Que foi isto?

BASÍLIO (a Clotaldo):
– Vou escutá-lo escondido. (afasta-se e se oculta)

SEGISMUNDO:
– Eu, na torre acorrentado?
Então foi tudo sonhado?

CLOTALDO:
– Começas a acordar?

SEGISMUNDO (pasmo e solene):
– É hora de despertar.

CLOTALDO:
– Dormiste todo esse tempo?

SEGISMUNDO:
– Sim, e pelo que estou vendo
acho que ainda estou dormindo.
Se o que vi nítido e certo
foi um sonho de uma hora,
pode ser também incerto
tudo o que estou vendo agora.

CLOTALDO:
– Pois conte-me o que sonhaste.

SEGISMUNDO:
– Sonhei que estava em palácio,
e mil nobres me aclamavam
como príncipe. E chegaste
dizendo que eu era herdeiro
da coroa da Polônia.
Mas, tomei-te por traidor,
Clotaldo, e até quis matar-te.

CLOTALDO:
– Para mim tal crueldade?

SEGISMUNDO:
– Eu de todos me vingava.
Uma mulher eu amava.
Mas o sonho se acabou.
Só isto aqui não se acaba… (Basílio sai cabisbaixo)

CLOTALDO:
– Como antes conversávamos
sobre as majestosas águias,
com um império sonhavas.
Mas, mesmo em sonho, devias
honrar a quem te criou
com toda a dedicação.
Mesmo em sonhos, Segismundo,
mais vale uma boa ação.

SEGISMUNDO:
– É verdade. Dominemos
esta fúria, esta ambição,
pois pode ser que sonhemos…
O rei sonha estar reinando,
e os aplausos recebidos
no vento é que são escritos.
Sonha o rico sua riqueza
que mais cadeias lhe tece;
e no mundo, em conclusão,
todos sonham o que são.
Que é a vida? Uma ilusão,
pois que toda vida é sonho,
e os sonhos sonhos são.

FIM DA SEGUNDA JORNADA

TERCEIRA JORNADA


Scene 1
Os dois compartimentos da prisão na torre.

(Segismundo dorme em sua cela; Clarim está acordado na sua; os 3 soldados revoltosos que aparecem em seguida confundem a entrada das celas.)

CLARIM:
– Ah, quem se chama Clarim
ser obrigado a calar,
só mesmo por sortilégio.
Mas tal castigo eu mereço,
pois calei sendo criado,
que é o maior sacrilégio.

(Ouvem-se sons de tambor, clarins e vozes.)

1º SOLDADO REVOLTOSO (de fora, chama os outros):
– Esta é a torre em que está preso!
Entremos!

CLARIM (com alívio): – Graças a Deus!
Se dizem que estou aqui
é porque me vêm buscar. (de repente sente medo)
Mas… que vão querer de mim?

2º SOLDADO REVOLTOSO (entrando com os outros):
– És nosso príncipe amado!

3º SOLDADO REVOLTOSO (entusiasmado):
– E jamais consentiremos
num soberano estrangeiro!

CLARIM (à parte):
– Parece que falam sério…
Será uso neste reino
prender um homem por dia,
torná-lo rei e, num instante,
trazê-lo a esta torre fria?
É o que vejo. Então vou
representar meu papel.

1º SOLDADO REVOLTOSO:
– Podes nos dar os teus pés
para podermos beijá-los?

CLARIM:
– Sinto, mas não posso dá-los,
pois preciso muito deles.
Seria mesmo horroroso
um rei tão defeituoso.

2º SOLDADO REVOLTOSO:
– Ao rei teu pai nós dissemos,
que só a ti pretendemos
ter como príncipe. Sai
a restaurar o teu reino!

3º SOLDADO REVOLTOSO:
– Viva! Viva Segismundo!

CLARIM (à parte):
– É “Segismundo” o que ouço?
Então aqui todo homem
que é feito príncipe à força
sempre recebe esse nome.

SEGISMUNDO (desperta e entra na cela de Clarim):
– Ouvi meu nome aclamado.

CLARIM:
– Já gorou meu principado.

1º SOLDADO REVOLTOSO:
– Quem é Segismundo?

SEGISMUNDO: – Eu.

2º SOLDADO REVOLTOSO (espantado):
– Mas, que foi que aconteceu?

3º SOLDADO REVOLTOSO (a Clarim):
– Fingiste ser Segismundo?

CLARIM (protesta):
– Isso não! Isso é que não!
Fostes vós que me chamastes
e me segismundeastes!

1º SOLDADO REVOLTOSO (a Segismundo):
– Príncipe, aqui te aclamamos
como senhor de nós todos.
Teu pai, o grande Basílio,
teme que cumpram os astros
seus perigosos desígnios.
E assim pretende dar
ao príncipe de Moscou
o que a sorte te negou.
Entretanto, o povo inteiro
já despreza a profecia
e renega o estrangeiro.

2º SOLDADO REVOLTOSO:
– Viemos aqui buscar-te.
Nós te estamos protegendo.
Vai reaver o teu reino!

3º SOLDADO REVOLTOSO:
– Lá fora, nesse deserto,
temos numeroso exército.

VOZES (ouvidas vindo de fora):
– Viva Segismundo! Viva!

SEGISMUNDO:
– Mas então, meu Deus, que é isto?
Eu não quero majestades
ilusórias, que desmaiam
à primeira luz da aurora.
A isso não me disponho.
Pois já fui desiludido
e bem sei que a vida é sonho.

1º SOLDADO REVOLTOSO:
– Se pensas que te enganamos,
vê bem com teus próprios olhos
quantos homens lá nos montes
aguardam as tuas ordens!
Aquilo com que sonhaste
foi aviso do futuro.

SEGISMUNDO:
– Foi aviso… Dizes bem.
E, se o aviso procede,
ah, sonhemos novamente,
posto que a vida é tão breve.
Por tão grande lealdade,
a vós todos agradeço.
Tereis em mim quem vos salve
do jugo de um estrangeiro.
O desígnio dos astros
hei de tornar verdadeiro.
O rei se verá prostrado
aos pés do príncipe herdeiro.

CLOTALDO (entrando):
– Que alvoroço é este?

OS TRÊS SOLDADOS REVOLTOSOS: – Viva!

SEGISMUNDO:
– Clotaldo!

CLARIM (à parte): – Acho que o príncipe
já o atira morro abaixo. (Clarim sai na ponta dos pés)

CLOTALDO:
– A teus pés venho prostrar-me
e já sei que vais matar-me.

SEGISMUNDO:
– Levanta-te, pai, confia!
Hás de ser meu norte e guia,
pois me criaste. Abraça-me!
No sonho de agora eu quero
agir bem. Nada se perde
em ser bom, mesmo sonhando.

CLOTALDO:
– Mas não posso aconselhar-te
contra teu pai. Vem e mata-me.

SEGISMUNDO:
– Não. Tu não mereces tal,
pois és um homem leal.

3º SOLDADO REVOLTOSO:
– Clotaldo, nós pretendemos
o real príncipe herdeiro.

CLOTALDO:
– Tal fidelidade é justa
depois da morte do rei;
mas o rei estando vivo
é o senhor absoluto.

SEGISMUNDO:
– Clotaldo, se julgas certo,
vai servir ao rei meu pai.

CLOTALDO (inclina-se):
– Humilde, beijo teus pés. (sai)

SEGISMUNDO (aos soldados):
– Ao palácio! E bem depressa!
Destino, não me despertes! (saem ao som de tambores)

scene 2
Salão do palácio real.

(Basílio e Astolfo conversam.)

BASÍLIO:
– Astolfo, quem no mundo poderia
deter a fúria de um corcel sem freios,
ou estancar um caudaloso rio,
ou segurar, valente, algum penhasco
que vem rolando pelo monte abaixo?
Pois tais façanhas são muito mais fáceis
que deter todo o povo rebelado…

ASTOLFO:
– Senhor, que então se adie o soberano
poder que tua mão me prometera;
dá-me um cavalo, e parto para a guerra!

BASÍLIO:
– Quem fugir ao perigo há de encontrá-lo.
Conservei o perigo bem guardado,
e foi assim que eu mesmo me perdi
e, protegendo a pátria, a destruí.

ESTRELA (entrando, a Basílio):
– Ó senhor, se a presença de teu vulto
não vem deter as ondas do tumulto,
logo verás em sangue mergulhado
o solo deste reino desditado.

CLOTALDO (entrando):
– A torre foi tomada por inteiro.
O povo resgatou a Segismundo.
E ele disse que há de mostrar ao mundo
que o presságio se torna verdadeiro.

BASÍLIO:
– Meu cavalo! Vou eu mesmo, em pessoa,
lutar e defender minha coroa!

STAR:
– E eu, senhor, irei do vosso lado.

(Saem Astolfo, Basílio e Estrela. Toque de batalha. Quando Clotaldo vai sair, entra Rosaura e o detém.)

ROSAURA:
– Espera, ouve o que digo.
Toda noite, Astolfo e Estrela
se encontram em seu jardim.
E tenho a chave: ei-la aqui.
Pois bem sei que resolveste
lavar-me a honra por mim.
Assim, corajoso e forte,
a Astolfo darás morte.

CLOTALDO:
– Pensei em matar Astolfo.
Porém, quando Segismundo
pretendeu assassinar-me,
se Astolfo não se opusesse,
eu decerto morreria.
E devo tirar a vida
de quem quis salvar a minha?

ROSAURA:
– Sê generoso comigo,
Clotaldo, e me lava a honra!

CLOTALDO:
– Eu serei, sim, generoso,
pois te darei os meus bens.
O reino, tão dividido,
muitas desgraças já tem.
Não serei quem as aumente.
Ao reino serei leal,
e contigo, generoso,
e a Astolfo, agradecido.

ROSAURA:
– Então eu tratarei disso!

CLOTALDO:
– Mas ele será teu rei!

ROSAURA:
– Deus não há de consentir!

CLOTALDO:
– Mas perderás vida e honra!
Não mudas de idéia?

ROSAURA (saindo): – Não!!
É inútil falar do assunto!

CLOTALDO (saindo atrás):
– Pois, filha, se vais perder-te,
nós nos perderemos juntos!

scene 3
Campo próximo à batalha.

(Entra Segismundo vestido de peles e 3 soldados revoltosos. Soam tambores.)

SEGISMUNDO (consigo mesmo):
– Acalmemo-nos. Tanto aplauso incerto
me pesará quando estiver desperto,
por tê-lo conseguido e após perdido.

(Som de clarim. Entra Rosaura em trajes de pastora, espada e adaga.)

ROSAURA:
– Generoso Segismundo,
luzente sol da Polônia,
que amanheças para o mundo!
Já duas vezes me viste
em diverso traje e forma.
Vestida de homem na torre,
depois, de dama, na corte.
Hoje é a terceira vez:
vestida como mulher,
mas armada como homem.

SEGISMUNDO (à parte):
– Se o que antes vi foi sonhado,
como é que esta dama agora
me fala de tal passado
com lembranças tão notórias?
Contudo, se foi verdade
ou foi sonho, não importa.

ROSAURA:
– Oh, ajuda esta infeliz
que aqui a teus pés se arroja.
Lá na corte de Moscou,
de nobre mãe eu nasci.
A meu pai, não conheci.
Mas tive a honra ferida
por Astolfo, que rompeu
seu compromisso comigo
e vai casar com Estrela.
Aqui encontrei Clotaldo.
Ele salvou minha vida
e aconselha que não devo
me vingar matando Astolfo,
lavando assim minha honra.
Vendo eu hoje que é de ti
que partirá a vingança,
vim ajudar-te. Partamos!
Pois para mim muito importa
impedir aquelas bodas!

SEGISMUNDO:
– Adoro esta formosura,
vivamos a ocasião!
Mas, por um desejo humano,
perder a luz da razão?
Pensemos no que é eterno.
Tentarei lavar-lhe a honra,
mas, tentado perto dela,
fujo de vê-la. – Soldados!
enfrentemos a batalha!

ROSAURA:
– Oh, senhor, então te ausentas?
Minha dor não te comove?

SEGISMUNDO:
– Pelo bem de tua honra,
pareço cruel agora. (sai, seguido dos soldados)

ROSAURA:
– Ó céus, ele dá-me enigmas
como se desse respostas.

CLARIM (entrando):
– Olá, senhora!

ROSAURA: – Onde estavas?

CLARIM:
– EU? Preso naquela torre,
tentando escapar da morte
que ora ia, ora voltava.
Mas, agora estou a ponto
de dar uma clarinada.

ROSAURA:
– Por que?

CLARIM: – Por saber segredos… (som de tambores)
Porém, que ruído é esse?

ROSAURA:
– Tambores… Que estás a ver?

CLARIM (olhando ao longe):
– Do palácio sitiado
sai um esquadrão armado,
resistindo a Segismundo.

VOZES (de um lado):
– Viva nosso invicto rei!

VOZES (do outro lado):
– Viva nossa liberdade!

(Rosaura e Clarim saem. Entram Basílio, Astolfo e Clotaldo fugindo.)

BASÍLIO:
– Não há rei mais desditado
e nem pai mais perseguido.
Foram vãs as tentativas
de lutar contra o destino.

CLOTALDO:
– Ó senhor, cuida e defende-te.

ASTOLFO:
– Há um cavalo ali na mata.
Foge nele enquanto é tempo,
que eu defendo a retirada.

BASÍLIO:
– Não! Se a divina vontade
quer que a morte hoje me aguarde,
eu mesmo vou esperá-la,
enfrentando-a cara a cara.

(Toque de combate. Entram, por um lado, Segismundo, Rosaura, Clarim e soldados revoltosos; por outro lado, Estrela e séqüitos.)

BASÍLIO (a Segismundo):
– Se me estavas procurando,
aqui me tens a teus pés. (ajoelha-se)
Serve-te deste tapete,
que são meus cabelos brancos.
Cumpre o desígnio dos astros.
Pisa sobre minha fronte
e calca minha coroa!

SEGISMUNDO:
– Corte ilustre de Polônia,
vosso príncipe vos fala.
Na página azul do céu,
grifou o dedo de Deus
o que está determinado.
E tais figuras celestes
não enganam e não mentem.
Porém só se engana aquele
que, ao tê-las decifrado,
faz delas um uso errado.
Pois foi o que sucedeu.
Meu pai, temendo uma espada,
tornou-a desembainhada.
Agora, pôs-se a meus pés
pela sentença dos astros.
Ele bem tentou vencê-la.
Não pôde. Poderei eu?
Eu, sem ter cabelos brancos,
sem ter ciência ou valor?
(ao rei, erguendo-o):
– Ergue-te, pai e senhor.
Estende-me tua mão.
E, já que o céu demonstrou
o quanto erraste tentando
vencer os altos desígnios,
meu pescoço aguarda humilde
que nele agora te vingues. (ajoelha-se)

BASÍLIO:
– Meu filho, um ato tão nobre
faz com que sejas de novo
gerado em minhas entranhas.
És príncipe! Tuas façanhas
também hão de coroar-te!

ALL:
– Viva Segismundo! Viva!

SEGISMUNDO:
– Já que meu valor deseja
alcançar grandes vitórias,
que a mais alta delas seja
vencer a mim mesmo agora.
Que Astolfo dê em seguida
a sua mão a Rosaura.
Pois sua mão é uma dívida
de honra, e eu vou cobrá-la.

ASTOLFO:
– A lei manda não casar-me
com uma dama que não sabe
quem é seu pai.

CLOTALDO: – Não prossigas.
Ela é nobre como tu.
Sim, Rosaura é minha filha.

ASTOLFO:
– Que dizes?

CLOTALDO: – Digo a verdade.

ASTOLFO:
– Então, com grande alegria,
cumpro aqui minha palavra.

SEGISMUNDO:
– E eu desejo casar-me
com a luminosa Estrela. (a ela):
– Estende-me tua mão!

STAR:
– Eu não sou merecedora
de tanta felicidade!

SEGISMUNDO:
– E a Clotaldo, que serviu
a meu pai com lealdade,
darei eu qualquer mercê
que me pedir que lhe dê.

ASTOLFO:
– Que caráter tão mudado!

BASÍLIO:
– Seu talento nos surpreende!

ROSAURA:
– Como é discreto e prudente!

SEGISMUNDO:
– Estais todos admirados?
Mas meu mestre foi um sonho,
e em minha torre encerrado
receio acordar de novo.
Embora sonho não seja,
pensar que é sonho já basta.
Pois assim soube que a vida,
como um sonho, um dia passa.
Muito bem quero vivê-la,
antes que ela se desfaça.
(to the public):
– E peço perdão a todos
de nossas menores falhas;
pois é próprio de almas nobres
poder assim perdoá-las.

 

END

Sobre a escolha da peça

Para escolher uma peça com objetivo pedagógico, estude bem que tipo de vivência seria mais importante para fortalecer o amadurecimento de seus alunos. Será um drama ou uma comédia, por exemplo. No caso de um musical, é importante que a classe seja musical, que a maioria dos alunos toquem instrumentos e/ou cantem. Analise também o número de personagens da peça para ver se é adequado ao número de alunos.

Enviamos o texto completo em PDF de uma peça gratuitamente, para escolas Waldorf e escolas públicas, assim como as partituras musicais da peça escolhida. Acima disso, cobramos uma colaboração de R$ 50,00 por peça.

A escola deve solicitar pelo email [email protected], informando o nome da instituição, endereço completo, dados para contato e nome do responsável pelo trabalho.

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