21 de marzo de 2018

la niña joana

 

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peça de Helmuth von Kügelgen

Tradução de Maria Barbara Trommer
Adaptación de Ruth Salles

PALAVRAS DE APRESENTAÇÃO
“Neste trabalho, pretendemos mostrar quadros da vida de Joana d’Arc, a jovem que, com a idade de 17 anos, manteve praticamente em suas mãos o poder absoluto sobre as forças armadas de uma nação. Com isso, a França encontrou-se a si própria, o mapa da Europa transformou-se, e a Inglaterra se voltou para sua própria missão no mundo. Joana sentia-se apenas um instrumento e agiu de conformidade com sua direção espiritual. Ela lutou só, contra os grandes e poderosos de seu tempo. Quando com ela somos confrontados, sentimos um impacto, como o do encontro do destino: um ser humano puro, que se entrega a uma meta espiritual e a uma missão histórica que aponta para o futuro; um ser humano que, esmagado pela missão à qual se mantém fiel, alcança, na verdade, a vitória. Joana nos mostra, de forma comovedora, como se vive a palavra vitoriosa do espírito, que é a fonte da vida do homem atual e do homem do futuro.”

Estas palavras são um extrato, bem reduzido, do texto introdutório de Helmut von Kügelgen para sua peça “A Menina Joana”. Segundo palavras ainda do próprio autor sobre esta peça, “grupos teatrais deveriam adaptá-la e fazer os cortes de acordo com suas necessidades” e “o texto deve ser usado como base para uma adaptação livre.” Tomamos então a liberdade de obedecer à sua sugestão, seguindo nosso próprio e falível critério. Por todas as possíveis imperfeições pedimos sinceras desculpas. Assim, as palavras prévias explicativas uniram-se à Introdução (que necessitaria de narradores), e a peça inicia-se já no Prólogo, que se passa no Portal do Nascimento. Para compor esta peça, o autor baseou-se em fontes históricas e lendárias, em citações originais de respostas e ditos de Joana, e ainda em trechos da peça “Santa Joana”, de Bernard Shaw. Fora o Prólogo e o Epílogo, a peça se divide em duas partes, cada uma com três quadros; os seis quadros têm os nomes dos locais onde se deram os acontecimentos: Domrémy, Vaucouleurs, Chinon, Orléans, Reims e Rouen. Esta peça já foi apresentada mais de uma vez, tendo sido a primeira em 1981. Para a apresentação em 2008, fiz uma ligeira condensação, para torná-la menos longa. As personagens são mais de 40, mas um aluno, como personagem de pouca ou quase nenhuma fala, pode representar mais de um papel. O Prólogo pede que as falas dos arcanjos sejam em recitativo cantado.

ruth salles

 

CARACTERES

Arcanjo Miguel
Arcanjo Gabriel
Anjo da Guarda de Joana
Joana d’Arc
Jacques, seu irmão
Senhor d’Arc, seu pai
Senhora d’Arc, sua mãe
Haumette, amiga de Joana
Senhor Morel, camponês
Senhora Morel, sua mulher
Senhora Rose, camponesa
Raymond, apaixonado por Joana
Padre Guilherme
Bertrand, camponês
Roberto de Baudricourt, capitão de Vaucouleurs
Administrador de Roberto
Joãozinho (Jean de Metz)
Polly (Bertrand de Poulengey)
Pajem da corte em Chinon
René, pajem de Dunois, o Bastardo
D’Aulon, pajem de Joana
Basque, outro pajem
Carlos, o Delfim
A Rainha
A duquesa de La Trémouille
Aninha, dama da corte
Maria
Verônica
Lídia
O Arcebispo Reginaldo
Marechal La Trémouille
Gilles de Rais, seu sobrinho
Capitão La Hire
Dunois, o Bastardo de Orléans
Padre Paquerel
Cauchon, bispo de Beauvais
Conde de Warwick
O Conselheiro em Reims
O Capelão inglês John Stogumber
O Inquisidor Jean Lemaître
O Promotor Jean d’Estivet
Irmão Martinho Ladvenu
O Carrasco
Soldado inglês

 

PRÓLOGO

Portal do Nascimento – isolado do restante do palco por uma cortina de um azul claro translúcido, que depois se abre para a cena da dança dos camponeses, em todo o espaço do palco.
Coros; Alma de Joana; Arcanjos Miguel e Gabriel; Anjo da Guarda de Joana; camponeses.

No primeiro plano – o portal do nascimento – repousa a alma de Joana, sentada ou de joelhos, sob um véu transparente, dando a impressão do ainda não terrestre. Os arcanjos Miguel (túnica vermelha) e Gabriel (túnica azul) cantam seus recitativos acompanhados por um coro. Se for resolvido que, por trás da cortina transparente, haja um coro para cada arcanjo, cada coro deve usar túnicas azuis ou vermelhas, com roupas de camponeses por baixo, para a dança. Se for um coro só, separado do portal, não é necessário usar túnicas. Depois dos dois primeiros recitativos, os arcanjos falam sozinhos, e o coro, caso esteja em cena, retira-se. O anjo da Guarda de Joana usa túnica de um amarelo claro.

 

CORO e ARCANJO MIGUEL (cantam):
“Eu sou Miguel, que assisto diante do Senhor.
E eis que vos digo: Louvai-o!
Ele é a fonte da vida e o criador dos mundos.
Louvai-o e agradecei por tudo.”

CORO e ARCANJO GABRIEL (cantam):
“ Eu sou Gabriel, que assisto diante do Senhor.
E eis que digo às almas
guardadas pelos astros:
– Ouvi, ouvi o som dessa harmonia,
para seguir o apelo do destino.”

CORO e ARCANJO MIGUEL (cantam):
“O ser se expande quando ama,
e realiza a sua obra,
em amplitude pequena ou vasta.” (fim do recitativo cantado)

ANJO DE JOANA (que está perto dela):
– Joana!
Eu sou o anjo que te guarda e te prepara.
Estás no Portal do Nascimento.
Abre-se teu caminho em direção à Terra.
O Senhor te chama.

ARCANJO GABRIEL (enquanto Joana desperta e se ergue):
– Contempla a terra, a pátria escolhida!
Contempla! É a França esse jardim florido.
O espírito e a cultura desse povo
deverão influir no mundo todo,
porém agora estão amortecidos.
O egoísmo, a ganância, a violência
pisam as plantas do saber humano.
Mas esta é a pátria que te será dada.
Nela se descortina o teu caminho.

JOANA:
– Realizarei o que me foi pedido.

ARCANJO MIGUEL:
– Bendita sejas. Deus está contigo.
Vou enviar-te um elmo e uma espada.

ARCANJO GABRIEL:
– Agora, vai! Lá onde os sinos dobram,
esperam-te teus pais e tua obra.

JOANA (dá um passo à frente):
– A coragem virá. Eu quero. Eu vou.

(Os anjos desaparecem com Joana no fundo do palco, enquanto a cena se abre. É madrugada numa aldeia campestre. Camponeses dançam, depois se retiram.)

 

PRIMEIRA PARTE

PRIMEIRO QUADRO
Domrémy

Escena 1
Madrugada de 6 de janeiro de 1412. Casas de aldeia circundam a praça.

Senhor e senhora Morel; senhora Rose; senhor D’Arc; padre Guilherme.

 

SENHORA MOREL (chamando a vizinha, da praça): – Rose! Ó Rose! (quando a vizinha aparece) Viste a luz?

SENHORA ROSE: – Que foi? Que foi?

SENHORA MOREL: – Vi uma luz na árvore das fadas! (persigna-se) Respeito esses presságios…

SENHORA ROSE: – E eu tive a impressão de ouvir o som de sinos no estábulo! Fui até lá verificar, e que imaginas tu que eu encontrei?

SENHORA MOREL: – Tu encontraste as vacas com as patas dianteiras levantadas em cima da manjedoura; e esticavam as cabeças, como se buscassem algum feno invisível pelo ar.

SENHORA ROSE: – Foi isso mesmo. Elas estão doidas. Como soubeste?

SENHORA MOREL: – Pois encontrei as nossas do mesmo jeito. Além disso, vi a luz na árvore das fadas. Sinto uma estranha inquietação.

SENHOR MOREL (chegando): – Que gritos são esses? Até pensei que fossem aqueles borgonheses assassinos voltando.

SENHORA ROSE: – Não. Tudo está em paz. Mas é uma paz estranha…

SENHORA MOREL (apontando): – Olhai, olhai! Uma pomba branca no telhado da família d’Arc!… Voou! Para onde irá?

(Todos seguem com os olhos o voo da pomba.)

SENHOR D’ARC (saindo de casa): – Ah, toda a vizinhança reunida. E vem chegando padre Guilherme, como de encomenda! (o padre chega)

BALBÚRDIA DE VOZES: – Que aconteceu? Que foi? Contai! Contai!

SENHOR D’ARC: – Padre, logo teremos um batizado! Minha filhinha Joana acaba de nascer.

PADRE GUILHERME: – Bem no dia do batismo de Cristo no Jordão. E em noite como nunca vi igual.

SENHOR D’ARC: – Vinde ver a criança. Morel, senhora Morel, vós sereis os padrinhos de Joana! (vão todos à casa do senhor d’Arc.)

escena 2

Fim de janeiro de 1429, em pleno dia. A mesma cena 17 anos depois.
Uma das casas está meio em ruínas, incendiada.

Raymond; senhor e senhora d’Arc; Joana, Jacques, Haumette; Padre Guilherme; Bertrand.

 

SENHOR D’ARC (caminha, conversando com Raymond): – Raymond, abriste teu coração para mim, mas que posso fazer? Eu ficaria muito feliz se ela te amasse. Os dois formariam um belo par!

RAYMOND: – Não… Só se eu fosse lutar pela França, na guerra!

SENHOR D’ARC: – Ah, pobre França… Vemos nossos campos pisoteados pelos cavalos do borgonhês traidor e dos ingleses!

RAYMOND: – Vosso clamor é tão veemente quanto o de vossa filha. Mas nada podemos fazer…

SENHOR D’ARC: – E eu tenho receio por minha filha. Ela precisa da proteção da família. É em nossas aldeias que está a cura para a pátria.

RAYMOND: – Joana diz que um homem sozinho também pode realizar grandes coisas. Ela me contou que Santa Catarina tem falado com ela.

HAUMETTE (chega com o senhor Morel): – Senhor d’Arc, Joana está em casa? Seu padrinho recebeu hoje um visitante que chegou de Paris.

SENHOR D’ARC (indignado): – Paris? Essa Paris está homenageando o rei Henrique como rei da França!

HAUMETTE: – Mas Joana está sempre interessada em saber o que anda acontecendo no mundo. (dirige-se à casa dos d’Arc e chama): – Joana!

JACQUES D’ARC (saindo da casa): – Joana não está, Haumette.

SENHOR MOREL (conta aos outros): – Meu amigo fugiu de Paris e me contou das maldades dos nobres que traíram os franceses.

HAUMETTE: – Quando o assunto é o poder ou o dinheiro…

JACQUES: – E o que se pode fazer para dar fim a tudo isso?

(Vão todos se dispersando. Surge Joana.)

JOANA:
– Ah, meu Jesus amado, há quatro anos,
eu ouço as vozes, vejo a luz celeste
por toda parte! – São Miguel Arcanjo,
todas as provas foram realizadas:
as orações, a retidão, a espera;
saí vitoriosa em todas elas.
Tu mostras o caminho, e eu vou, sem medo.
Os pensamentos são tão poderosos
nesta minha cabeça tão pequena…
Se queres protegê-la, São Miguel,
envia hoje o elmo prometido.

(Ela vai para o lado, ajoelha-se para rezar; ninguém a percebe. Bertrand vem-se aproximando com grande sacola de pastor.)

BERTRAND (chama): – Jacques! Raymond! Amigos! Vinde ver o que eu trouxe!

(Aparecem logo Jacques, Raymond, o casal d’Arc, o casal Morel, a senhora Rose, Haumette e Padre Guilherme.)

SENHORA D’ARC: – Ah, é Bertrand! Chegas de Vaucouleurs, Bertrand? Não viste Joana no caminho, junto à árvore das fadas? Hoje, não sei porque, isso me aflige.

JACQUES (sossega-a): – Ela gosta de lá, Mãe. E sabe o caminho de volta.

HAUMETTE: – Bertrand? Que tens aí nessa sacola? (bate nela) O som é de panela.

BERTRAND: – És bem esperta, Haumette. Mas não é panela. Aconteceu que, na cidade, a praça estava cheia de gente chegando de Orléans com péssimas notícias.

SENHOR MOREL: – Não pode ser! Ah, se Orléans cair, os inimigos não serão mais detidos.

(Joana se levanta. Fica ouvindo sem ser notada.)

BERTRAND: – Enquanto eu passava no meio do povo, uma cigana me segurou pelo braço e disse: “Amigo, aqui está o elmo que procuras, e bem barato.” Eu respondi: “Estás enganada. Camponês não usa elmo.” Ela porém insistiu e eu o peguei. Era tão belo… E quando ergui os olhos, a cigana tinha sumido. (tira o elmo da sacola e o levanta, mostrando-o)

JOANA (se adianta impetuosamente e tira-lhe o elmo das mãos): – É meu este elmo. Muito obrigada, Bertrand.

SENHOR D’ARC: – Como te atreves, filha? Devolve o elmo!

SENHORA D’ARC (ao marido): – Deixa-a, deixa-a!

JOANA (volta-se para Bertrand): – Ouviste más notícias?
O valente Bastardo de Orléans
não mantém a defesa da cidade?

BERTRAND: – O cerco se fecha em torno de Orléans. Não vencemos batalha alguma. Só resiste uma praça forte: o monte Saint Michel.

JOANA:
– Isso não pode acontecer. Orléans
tem de ser libertada desse cerco.

SENHOR D’ARC: – Joana! Não fica bem para uma donzela falar do que não entende.

JOANA (para Bertrand, e sem reparar nas palavras do pai):
– E onde se encontra Carlos, o Delfim?

BERTRAND: – Mantém a corte em Chinon. Mas não tem coragem nem dinheiro. A própria mãe diz que não é mãe dele.

JOANA:
– Não! Ele é o verdadeiro rei!
E trará liberdade para todos.
Eis que o céu já chamou pela Donzela.
Orléans será salva. E o Delfim
será ungido rei de toda a França.

SENHOR MOREL: – Tais milagres já não existem…

JOANA:
– Existem, sim, onde o amor existe. (põe o elmo)
Jamais será a França derrotada!
Deus, através de uma donzela frágil,
há de salvar a terra que Ele ama.

RAYMOND: – Seu olhar lança chispas!

BERTRAND: – Sua fala é ardente como fogo. (ao senhor d’Arc) Deus te deu
uma filha incomum, amigo.

SENHOR D’ARC: – Ah… Que Deus proteja a França e o rei. Quanto a nós, empunhamos o arado e não a espada. A nós foi dado cuidar da terra. A destruição se afasta de quem cuida dela. (saem ou escurece a cena)

 

SEGUNDO QUADRO
Vaucouleurs

Cena única

Dia 12 de fevereiro de 1429. No castelo de Roberto de Baudricourt. Paredes de pedra. À direita, uma sólida mesa. Mais à direita, trecho com janela ou barras de ferro do século XIII, e uma torre, mais para o canto ainda, com porta ou saída arqueada, que dá numa escada que sai no pátio. Na sala, duas cadeiras para visitas e um tamborete para Joana.

Roberto de Baudricourt; seu Administrador; Joana; Jean de Metz, Bertrand de Poulengey.

 

ADMINISTRADOR (entra afobado e aflito): – Não temos ovos, senhor! Não temos mais ovos!

ROBERTO (sentado atrás da mesa, homem rude e enérgico): – Com mil raios, homem! Que queres dizer com esse “Não temos ovos”?

ADMINISTRADOR: – Não é minha culpa, senhor. É a vontade de Deus.

ROBERTO: – Tu mentes para mim, seu atrevido, e o Criador é quem leva a culpa!

ADMINISTRADOR: – Mas, senhor, que hei de fazer? Não posso botar ovos.

ROBERTO: – Ah! E ainda por cima, gracejas!

ADMINISTRADOR: – Oh, não, senhor, Deus bem sabe que não… Todos teremos de passar sem ovos, assim como vós, senhor de Baudricourt. As galinhas simplesmente não botam!

ROBERTO: – Estúpido imbecil, estás querendo dizer que minhas galinhas da Berbéria, as melhores poedeiras da Champanha, não botam? Ladrão!

ADMINISTRADOR: – Não, não, senhor! Também não há mais leite. Rogaram-nos uma praga. Estamos enfeitiçados!

ROBERTO: – Ora, cala-te! Roberto de Baudricourt, cavaleiro e senhor do castelo de Vaucouleurs, queima feiticeiras e enforca ladrões, lembra-te disso! Por Deus! Até amanhã ao meio-dia quero os ovos aqui! Quatro dúzias e dois latões de leite. Aqui! (bate na mesa com o punho)

ADMINISTRADOR: – Podeis matar-me de pancada, mas nada disso teremos enquanto a menina estiver à porta.

ROBERTO: – Menina? Qual menina?

ADMINISTRADOR: – De Domrémy.

ROBERTO: – Raios! Porcaria! Então aquela guria, que foi tão sem vergonha de querer falar comigo, ainda está aí? Deverias tê-la mandado de volta para casa.

ADMINISTRADOR: – Eu tentei. Ela não quer. É tão persistente… (decisivo)

ROBERTO: – Para isso, tens uma dúzia de criados e cinquenta homens armados. Que diabo! Minhas ordens terão de ser executadas.

ADMINISTRADOR: – Mas, senhor, é por causa de sua vontade forte. Não conseguimos mandá-la embora. Pelo contrário!

ROBERTO (arremedando): – “Pelo contrário”. Então todos vós tendes medo dela?

ADMINISTRADOR: – Não, senhor. Medo nós temos é de vós. Ela nos dá coragem! Especialmente aos soldados; é na companhia deles que ela prefere estar, quando não está rezando.

ROBERTO (arremedando): – “Quando não está rezando”. Rezando… Conheço essa espécie de moça que gosta tanto de conversar com soldados. Onde está essa coisa? Quero ensiná-la a rezar!

ADMINISTRADOR (respira aliviado): – Está lá embaixo, no pátio.

ROBERTO (vai à janela): – Olá, tu aí!

JOANA (do lado de fora): – É comigo, senhor?

ROBERTO: – Sobe aqui!

JOANA: – És o capitão deste lugar?

ROBERTO: – Sim, sua descarada. (volta a sentar-se atrás da mesa)

ADMINISTRADOR: – Ela quer de vós roupas de soldado, armadura e cavalo. Ela quer… (ouve Roberto dar outro soco na mesa)

JOANA (entra): – Bom-dia, prezado cavaleiro de Baudricourt! Deves dar-me um cavalo, uma armadura, alguns soldados e me enviarás ao Delfim. São estas as ordens de meu Senhor para ti.

ROBERTO (meio divertido, meio indignado): – Ordens de teu senhor? Mas, que diabo, quem é o teu senhor? Eu não recebo ordens senão do rei!

JOANA: – O Rei dos céus é o meu Senhor.

ROBERTO: – Meu Deus, ela é apenas louca (ao administrador): – Idiota, por que não me disseste?

JOANA: – Muitos dizem que sou louca, enquanto não me ouvem. É vontade de Deus que faças o que Ele, por meu intermédio, quer que seja feito.

ROBERTO: – A vontade de Deus é que eu te envie de volta para casa e que mande teu pai te dar uma surra até tirar esses disparates da tua cabeça. E agora, que tens a dizer?

JOANA: – Que isso tu não farás, senhor cavaleiro. Também disseste que não me receberias. E estou aqui.

ADMINISTRADOR: – Estais vendo?

ROBERTO: – Cala o bico, seu estúpido! (tenta manter sua postura de superioridade) – Eu te recebi…

JOANA (interrompe): – Sim, meu cavaleiro! Eu agradeço. O mais dispendioso é o cavalo, e esse, Joãozinho vai-me dar. E o escudeiro de Polly me dará seus trajes. Preciso apenas de três homens de confiança durante a ida para Chinon. O mais que for necessário me será dado pelo Delfim, para que eu levante o cerco de Orléans.

ROBERTO (que tentou falar várias vezes sem conseguir): – Levantar o cerco de Orléans?!

JOANA: – Sim, prezado cavaleiro. Assim me disse São Miguel Arcanjo.

ROBERTO: – E Joãozinho e Polly… É assim que chamas os senhores Jean de Metz e Bertrand de Poulengey?

JOANA: – Entre amigos, diz-se Joãozinho e Polly. Ambos vão comigo, se tu o ordenas, naturalmente. Já tenho tudo preparado. Esperamos pela tua palavra.

(Roberto, impressionado contra a vontade, levanta-se e olha pela janela.)

ROBERTO: – Ei, Joãozinho! Ei, Polly! Vinde até cá! (volta-se para Joana e o administrador) – Para fora os dois! (a Joana) – Eu te mandarei chamar depois.

JOANA: – Alegro-me com isso, meu cavaleiro.

ADMINISTRADOR: – Por Deus! Vou ver o que fazem as galinhas! (apressa-se e sai atrás de Joana)

ROBERTO (fala sozinho, põe as mãos na cabeça): – Ela é persistente mesmo… Joãozinho e Polly, dois bons rapazes, de tipos tão diversos, mas ambos sensatos… E ela chamou-me por tu, a danada! Só agora é que me dá raiva.

(Joãozinho e Polly entram, cumprimentam militarmente seu capitão. Joãozinho, alegre; Polly, reservado.)

ROBERTO (senta-se na beirada da mesa): – Cá entre nós, amigos, estivemos lado a lado muitas vezes, vendo a morte de perto. Que quereis com a menina? Conheço o pai dela, um homem direito, que vale mais que o burgomestre. Já vou avisando que não quero saber de aborrecimentos. Não toqueis nessa menina, de uma beleza tão singular.

JOÃOZINHO: – Ela fez voto de não pertencer a um homem. E o que ela promete ela cumpre.

POLLY: – Penso nela como se ela fosse a própria Santa Virgem. Há algum mistério com ela. Na sala da guarda, lá embaixo, há homens rudes, tu conheces seu palavreado sujo. Pois não disseram ainda nenhum palavrão. Em sua presença não se pragueja. Não sei, há algum mistério com ela.

ROBERTO: – Com isso quereis dizer que ambos levais a sério essa idéia louca de ir até o Delfim? Não estais tendo muito bom senso.

JOÃOZINHO (veemente): – E até onde o bom senso nos levou? Sabes a quem pertence o país até o Loire, e também este castelo? À Borgonha e ao duque de Bedford! Logo o tomarão de ti. O Delfim diverte-se em Chinon e não quer lutar. O Bastardo não resistirá por muito tempo. E estando Orléans perdida, então… boas-noites!

POLLY: – Só um milagre nos salvará.

ROBERTO: – E vós pensais que essa menina é capaz de fazer milagres?

POLLY: – Ela em si já é um milagre. Sua palavra, sua ardente confiança em Deus… Acho que vale a pena acreditar nela. É a última saída do atoleiro em que estamos metidos.

JOÃOZINHO (confiante): – Pergunta a ela mesma! Posso chamá-la?

ROBERTO: – Vós me deixais numa situação embaraçosa. Chamai-a, então!

POLLY: – E é melhor que a examines sozinho.

ROBERTO: – Não! Ficai! E ajudai-me a manter a lucidez.

(Joãozinho acena a Joana animadamente pela janela, e ela entra.)

ROBERTO (fala com Joana, apontando para o tamborete): – Senta-te! Quantos anos tens?

JOANA: – Dezessete. Por que?

ROBERTO: – Não perguntes! Responde! Tu dizes que São Miguel Arcanjo, Santa Catarina e assim por diante falam contigo?

JOANA: – Sim, eles falam.

ROBERTO: – E eles conversam assim como eu?

JOANA: – Não. É bem diferente. Mas, sobre minhas vozes, quero ficar calada.

ROBERTO: – E Deus disse que deves ir a Orléans levantar o cerco?

JOANA: – E coroar o Delfim na Catedral, em Reims.

ROBERTO: – No caminho para lá tens de passar por território inglês. Pensas que ser soldado é pastorear ovelhas, é tanger uma vaca para fora do pasto? Já viste alguma vez os ingleses lutando?

JOANA: – Depois que Domrémy foi devastada, cuidei uma vez de três feridos. Seres humanos como tu e eu. Em sua terra, que Deus lhes deu, eles são bons. Lá todos falam inglês. E o Rei dos Céus deu para nós a França. Se não, seria assassinato matar ingleses na luta. Roberto, não tenhas medo. Deves servir a Deus, não aos homens.

ROBERTO (encolerizado): – Eu não tenho medo! E quem te deu licença de chamares a mim, um cavaleiro, de Roberto?

JOANA: – Esse é teu nome divino. Os nomes de capitão, cavaleiro e Baudricourt recebeste do pai, do rei, dos homens. O de Roberto recebeste pelo sacramento do batismo.

POLLY: – Estás vendo? Nenhuma pergunta ela deixa sem resposta.

JOANA: – Cem como eu, sim, dez são suficientes, quando Deus está do nosso lado! Ainda não compreendes? Enquanto os nossos lutarem apenas pela própria pele e não pela França, salvam a pele da melhor maneira.

JOÃOZINHO: – E nossos duques e cavaleiros só pensam no dinheiro do resgate. Para eles não se trata de matar ou morrer, mas de pagar ou receber.

ROBERTO: – Polly, Joãozinho, talvez tudo isso seja um absurdo, mas pode entusiasmar o povo, as tropas. E, se ela conseguir entusiasmar o Delfim, então arrastará consigo todo o exército.

POLLY: – Devia-se tentar. Eu não disse que há mesmo algum mistério com ela?

ROBERTO (a Joana, que se havia levantado): – Senta-te e escuta!

JOANA (senta, humilde e atenta): – Sim, senhor.

ROBERTO: – Tua ordem de serviço é a seguinte: vais a Chinon, com estes dois cavaleiros.

JOANA: – Sim, senhor.

JOÃOZINHO: – E se o Delfim não a receber, que se faz então?

ROBERTO: – Ela deve dizer que eu a enviei. Além disso, meu caro Joãozinho, se o Delfim conseguir não falar com ela, então ele tem mais tenacidade e mais coragem do que eu julgava. É tudo.

JOANA (levanta-se, quieta e simples): – Eu te agradeço, senhor cavaleiro Roberto de Baudricourt. O sol nascente nos verá a caminho do rei! (Ela sai com Joãozinho e Polly.)

ADMINISTRADOR (entra afobado): – Senhor de Baudricourt! Senhor de…

ROBERTO: – Que aconteceu? Sinal de alarme? Os borgonheses atacam?

ADMINISTRADOR: – Não, meu senhor! As galinhas! As galinhas da Berbéria! Estão botando ovos como loucas!

ROBERTO: – Senhor Jesus Cristo! Foste tu que a enviaste para nós!

 

TERCEIRO QUADRO

Chinon

8 de março de 1429. Três cenas com o mesmo cenário: sala do trono, tendo ao fundo, à direita, dois tronos sobre um estrado. A porta ou saída principal fica de um lado, guardada pelo pajem. Há outra saída que deixa livre a passagem para os cortesãos. As duas primeiras cenas se passam na antessala, que fica à frente da cena, separada da sala por uma grade baixa (ver estilo da época). Mais duas saídas na própria antessala.

Escena 1
Antessala.
A rainha com suas damas: Aninha, Lídia, Maria, Verônica.

(Elas conversam, passeando. Joana deverá ser recebida pelo Delfim.)

ANINHA: – Eu pensava que íamos logo para o sul.

LÍDIA: – Só vejo mensageiros, reuniões secretas, boatos zumbindo pelo ar como mosquitos.

RAINHA: – E hoje o Delfim recebe uma pessoa. Temos de estar presentes.

MARIA: – Quem é?

VERÔNICA: – É uma camponesa que se veste com roupas de soldado.

LÍDIA: – Ai, que horror! Isso é pecado!

ANINHA: – Eu preferia que fosse uma duquesa. Mas, enfim, antes ela do que nada.

MARIA: – Ouvi contar que ela é bela, valente e também modesta.

VERÔNICA: – E piedosa. Dizem que a dona do albergue onde ela está hospedada viu-a muitas vezes de joelhos, rezando.

MARIA: – É, sim. E, sempre que ouve o som dos sinos, gosta de ficar só. E come pouco, tal qual um passarinho.

RAINHA: – Hum… Vejo que os mosquitos vos picaram bem. Pois eu vos digo que, antigamente, o rei meu sogro também gostava de ouvir mensagens de homens do povo ou mesmo de donzelas. Na situação em que estamos, devemos aceitar qualquer sinal de esperança.

(A rainha e suas damas se retiram.)

 

escena 2

Antessala.
O Delfim, ainda não coroado como Carlos VII; Reginaldo, o arcebispo de Reims; o Marechal La Trémouille e sua mulher, duquesa de La Trémouille; Gilles de Rais, seu sobrinho; o Capitão La Hire; um pajem.

(De início, apenas Carlos, o Arcebispo e o pajem, que fica à porta.)

CARLOS: – Agora só um milagre! Os peixes que comemos hoje foram pagos pelos cozinheiros. Ninguém me empresta mais. E, se não chegam reforços para a luta, só nos resta fugir.

(Entra o Marechal La Trémouille, autoconfiante, com ligeira mesura ao Arcebispo. Sua mulher, a duquesa, acompanha-o.)

CARLOS (ao Marechal): – E então, que disse a camponesa?

O MARECHAL: – Nega-se a falar comigo. Só fala com quem tem sangue real.

CARLOS: – É só isso que me contas?

O MARECHAL: – Bem, seu cabelo é muito curto, usa trajes de homem, reza muito e come pouco. O povo já começa a falar dela. Ah, e trouxe esta carta (mostra-a). Ainda não a li.

O ARCEBISPO: – Deixa-me vê-la! É carta de Baudricourt?

CARLOS (olha a carta e tira-a das mãos do Arcebispo): – Está endereçada para mim!

O ARCEBISPO: – Dominai-vos, senhor! Se não sabeis chefiar as tropas e a pátria, pelo menos dominai-vos!

CARLOS: – Vós me passais sermão? Muito obrigado. (lê a carta, depois passa-a ao Arcebispo)

O MARECHAL: – A camponesa disse que o Delfim vai recebê-la ao ler essa carta.

O ARCEBISPO (lendo a carta): – Pensei que Baudricourt fosse mais sensato. Antes de tudo, a Igreja deveria examinar a jovem.

O PAJEM (anunciando): – O senhor Gilles de Rais e o capitão La Hire!

(La Hire cumprimenta militarmente e de modo rude. Gilles, muito à vontade, mas sem perder a forma.)

GILLES (aponta La Hire): – Olhai este soldado valente como está abalado. Agora até deseja ser santo.

LA HIRE: – O caso é sério. Luiz morreu. Está bem morto.

O ARCEBISPO: – Luiz é aquele que praguejava mais que todos os outros?

GILLES: – Esse mesmo. Um simples soldado aconselhou-o a não praguejar mais porque sua morte estava próxima.

O ARCEBISPO: – E a sua vida fora ameaçada por alguém?

GILLES: – Por ninguém. Mas caiu num poço e afogou-se. E então, de susto, La Hire agora quer virar santo!

LA HIRE: – Não é para achar graça, é caso muitíssimo sério. E o conselho não veio de um soldado, mas de um anjo vestido de soldado.

A DUQUESA: – Um anjo?!

CARLOS: – Vestido de soldado? Quem seria?

LA HIRE: – É a camponesa que veio lá de Vaucouleurs escoltada por dois homens. Um deles eu conheço: é Jean de Metz. Tinham de atravessar 300 milhas entre salteadores, borgonheses e ingleses, mas só encontraram camponeses e expressões amigas. É um anjo, eu vos afirmo, que diabo! (bate na boca) Não quero mais praguejar! Não quero mais praguejar!

O ARCEBISPO: – Já estás quase parecendo um santo! (risos)

O MARECHAL: – Vamos ao que interessa, La Hire. Como está a situação em Orléans? Quem sabe teu anjo nos consegue algum milagre!

O ARCEBISPO: – Baudricourt pareceu impressionado.

LA HIRE: – Ainda não a conheceis?

CARLOS: – Ainda não, mas logo estará aqui. Toda a corte a verá.

LA HIRE: – Pois eu estarei presente, com todos os diabos! (bate na boca) Perdoai. Com todos os anjos que há no céu.

O ARCEBISPO: – Anjos, anjos… Primeiro a Igreja deveria examiná-la. Mas vamos fazê-la passar por um teste.

O MARECHAL: – É simples. Tentemos enganá-la. Ela nunca viu o Delfim. Eu faço o papel de rei. De qualquer forma nos divertiremos.

(Passam para a sala do trono. A rainha e as damas também entram.)

 

escena 3
Sala do trono.

Os mesmos das duas cenas anteriores; Joana, Joãozinho e Polly.

(O Marechal e a duquesa sua esposa, sentam-se nos tronos. Carlos se esconde entre os outros cortesãos. Há movimentação geral e risos.)

O MARECHAL (explica-se com a Rainha): – Desculpai-me, Alteza. Faço o papel de rei só para testarmos a jovem camponesa.

PAJEM (bate com a alabarda no chão): – Os senhores Jean de Metz e Bertrand de Poulengey apresentam à Sua Majestade a donzela Joana.

O MARECHAL (quando Joana entra): – Que ela se ajoelhe diante do trono!

(Joãozinho e Polly vêm atrás de Joana e, após uma genuflexão diante do trono, colocam-se a seu lado. Joana dá alguns passos em direção ao trono e então pára, procurando com os olhos.)

JOANA: – Vós quereis enganar-me…

A DUQUESA (cutuca o Marechal com o cotovelo): – Olha seus cabelos como são curtos! (abafa o riso)

O MARECHAL: – Filha, tu estás diante do Delfim. Que desejas?

JOANA (observa-o cuidadosamente e fala consigo mesma): – Não tem sangue real. Onde está Carlos? (descobre-o, puxa-o para o centro e faz uma genuflexão. Radiante, dirige-se a ele): – Nobre Delfim, fui enviada a vós para salvar Orléans e vos levar a Reims, onde sereis coroado, como todos os verdadeiros reis da França. O inglês será expulso e voltará para sua própria terra.

CARLOS: – Quem te enviou, Joana?

JOANA: – O Rei dos Céus.

(Carlos puxa Joana para a antessala, onde ficam em conversa particular. O Marechal ri, sem graça, sai do trono e ajuda a duquesa a se levantar.)

A DUQUESA: – Esses trajes na corte… Que mau gosto! E ela cativa o Rei!

GILLES: – Por Deus, La Hire, há mesmo algum mistério com essa moça!

LA HIRE: – Ela disse “O inglês será expulso” de um modo que a espada já me sai da bainha! Com os diab… (bate na boca)

CARLOS: – Alma pura, tu vês que estou cercado de criaturas frias, mais poderosas e mais ricas que eu. Eu me conheço. A coragem me foge.

JOANA: – Eu sei, Delfim. Por isso mesmo, permite que eu aja prontamente. Resta-me pouco mais de um ano, de tempo.

CARLOS (aponta os cortesãos atrás): – Eles precisam de um sinal que os convença.

JOANA (fala alto e solene, para Carlos e para todos): – Deus me envia, Delfim! Dou-te um sinal. Eu sei que há anos repetes esta oração, com uma dor profunda: “Quem me livra da dúvida que tenho sobre meu próprio sangue?” E aqui eu te livro. És mesmo o verdadeiro rei da França.

(Joana ergue as mãos, como quem abençoa, e o conduz ao trono.)

VERÔNICA (para Maria): – Viste o fogo que brilha em seus olhos?

(Carlos, com decisão, senta-se no trono. O Arcebispo leva a Rainha a seu trono e se põe do lado esquerdo de Carlos. O Marechal fica atrás.)

O ARCEBISPO: – A corte aguarda a palavra do Delfim.

(Carlos fala com voz forte. Os apartes do Arcebispo e do Marechal não são ouvidos pela corte. Só Joana os percebe.)

CARLOS: – Na expectativa de minha coroação como Carlos VII, decidi seguir o caminho da Donzela enviada por Deus…

O ARCEBISPO: – Se a Santa Igreja permitir.

CARLOS: – … e requeremos o serviço fiel dos súditos e de seus homens…

O MARECHAL: – Se o Marechal não mandar outra ordem em contrário.

CARLOS: – … até que Orléans seja libertada. A etapa seguinte será a coroação em Reims. Que Deus e a Donzela sejam nossos guias!

O MARECHAL: – A não ser que apareça algum tratado mais vantajoso para a nobreza, mantendo-a no poder.

O ARCEBISPO: – E nunca antes que a Santa Igreja examine o caso.

CARLOS: – Uni-vos todos, com Deus e pela França! Sigamos a Donzela! Avante!

TODOS OS HOMENS (gritam, menos o Arcebispo e o Marechal): – Avante!

 

INTRODUÇÃO À SEGUNDA PARTE

Na cena vazia ou em primeiro plano.
Senhor e senhora d’Arc, Raymond, Jacques d’Arc, Bertrand; Roberto de Baudricourt, seu Administrador; Joãozinho, Polly; La Hire, Gilles de Rais; o Marechal; a Duquesa, Aninha; o Pajem de Chinon.

(As personagens, como narradores, vão entrando e saindo aos poucos, até ficar só o Pajem.)

BERTRAND: – Joana não conseguiu partir logo para Orléans.

JACQUES D’ARC: – Os políticos ligados ao trono tinham voz forte e contrária à sua missão.

SENHOR D’ARC: – Vieram a Domrémy colher dados para relatórios.

(Sai Bertrand, dando início à saída.)

RAYMOND: – Queriam saber a origem de suas vozes. E se não estava possuída pelo Demônio.

O MARECHAL: – É claro! O rei não poderia ter a seu serviço uma bruxa.

A DUQUESA: – E com aqueles trajes!

ANINHA: – E com aquele cabelo!

LA HIRE: – A donzela teve de comparecer a eternas sessões e responder a nobres, clérigos, políticos, médicos, sábios, juristas.

GILLES DE RAIS: – Disse um professor que suas palavras não eram contrárias às palavras da Bíblia.

SENHORA D’ARC: – No entanto, Joana não sabia distinguir o A do B.

O ADMINISTRADOR DE ROBERTO: – Mas sua espada, sua espada apareceu!

ROBERTO: – Ela disse: “Escavai em Fierbois, atrás do altar da igreja de Santa Catarina. Lá está minha espada, com as cinco cruzes.”

JOÃOZINHO: – E lá ela foi encontrada, tal como o Arcanjo prometeu.

POLLY: – Finalmente, tudo foi resolvido. Um lauto parecer jurídico e teológico foi lavrado em Poitiers e termina dizendo:

PAJEM DE CHINON (lê, enquanto os outros acabam de sair): “Como só deseja confirmação de que é uma enviada de Deus a Orléans, não deve ser impedida de para lá se dirigir com o exército; pois, sem mais razões, dela duvidar significaria pecar contra o Espírito Santo.” (ele sai)

 

SEGUNDA PARTE

QUARTO QUADRO

Orléans

Escena 1
29 de abril de 1429. Campo às margens do rio Loire, o qual se encontra imaginariamente na plateia. Em primeiro plano há uma elevação, de onde se avista Orléans. De um lado, há um alto pendão, com insígnia.
Dunois, o Bastardo de Orléans; René, seu pajem; depois Joana e seu pajem d’Aulon.

(Dunois anda de um lado para o outro, apressado, para, observa o pendão que mostra a direção do vento e balança a cabeça, aborrecido. Há um pedaço de tronco onde está sentado seu pajem René, olhando o rio.)

DUNOIS: – Vento oeste, vento oeste. Não soprarás mais nunca? Muda, peste de vento, eu quero, eu te ordeno. (dá um grunhido, brande o punho contra o pendão, depois retoma sua marcha)

RENÉ (pulando aos pés de Dunois): – Olhai! Ali! Lá vem ela!

DUNOIS (parando, ansioso): – Onde? Quem? A Donzela?

RENÉ: – Não! A alcíone! Como um relâmpago azul. Escondeu-se naquela moita.

DUNOIS (furiosamente desapontado): – Só isso? Seu idiotinha do inferno, não sei onde estou que não te jogo no rio.

RENÉ (sem medo algum, pois conhece bem seu amo): – Como era tremendamente belo aquele raio azul! Olhai! Lá vai outra!

DUNOIS (correndo até a margem do rio): – Onde? Onde? Ah, lá está ela perto dos caniços… (seguem o voo do pássaro até este desaparecer.)

RENÉ: – Não são mesmo lindas? Quem me dera apanhá-las!

DUNOIS: – Se eu te vir tentando caçá-las, fecho-te numa gaiola durante um mês, para aprenderes como é agradável uma prisão.

(René ri, senta-se de novo no chão. Dunois caminha, fazendo versos.)

DUNOIS: – “O danado vento oeste chegará tarde demais. / E o milagre da Donzela se desfaz.” Que versos horríveis! (bate com o pé no chão.) Uma donzelinha beata, e é do vento oeste que preciso!

D’AULON (a voz vem de longe): – Com Deus, pela França!

RENÉ: – Alto! Quem vem lá?

JOANA (a voz vem de longe): – A Donzela!

DUNOIS: – Deixa passar! – Para aqui, Donzela!

JOANA (séria): – Tu és Dunois, o Bastardo de Orléans?

DUNOIS (ríspido, aponta o próprio escudo): – Não vês o escudo? E onde estão tuas tropas?

JOANA: – Milhas atrás. Eles me tapearam. Levaram-me à margem errada.

DUNOIS: – Foi ordem minha.

JOANA: – Por que? Orléans está do outro lado. É lá que devemos combater os ingleses. Como vamos atravessar o rio?

DUNOIS (perversamente): – Há uma ponte, mas não se pode passar.

JOANA: – Quem disse?

DUNOIS: – Eu. E cabeças mais experientes são da mesma opinião.

JOANA (sem cerimônia): – Então essas cabeças mais experientes são cabeças de vento. Não estás vendo que te trago uma ajuda como nunca a recebeu um general ou uma cidade?

DUNOIS (sorrindo com paciência): – A tua?

JOANA: – Não. A do Rei dos Céus. Qual é o caminho da ponte?

DUNOIS (rindo mais): – És impaciente, Donzela. Vem. Vou ensinar-te a ser soldado. (leva-a à margem do rio) Estás vento os dois fortes grandes naquela extremidade da ponte? Se eu estivesse num deles com apenas 10 homens, poderia resistir a um exército. Pois os ingleses têm, pelo menos, 100 homens lá para resistir a nós.

JOANA: – Eles não podem resistir a Deus. Deus não deu a eles o solo que está debaixo desses fortes. Deu a nós. Eu tomarei esses fortes com meus homens.

DUNOIS: – Nenhum homem te seguirá.

JOANA: – Não olharei para trás para ver se me seguem ou não.

DUNOIS (reconhecendo sua coragem e batendo-lhe calorosamente no ombro): – Bem, tens o estofo de um soldado. És intrépida.

JOANA: – Não sou intrépida. Sou uma serva de Deus. Minha espada é sagrada. Meu coração está cheio de coragem, não de ódio. Eu guiarei, e teus homens me seguirão. Isso é o que eu posso e preciso fazer, e tu não deves impedir-me.

DUNOIS: – Tudo tem seu tempo. É necessário ir por dentro do rio e apanhar os ingleses pela retaguarda. As balsas estão prontas, e os homens já embarcaram. Mas temos de esperar por Deus.

JOANA: – Que queres dizer? Deus já nos espera.

DUNOIS: – Aguardemos então que Ele nos mande o vento oeste. As embarcações não podem subir contra a corrente e contra o vento. Eu já rezei, já ofereci dois castiçais de prata. E nada. Tuas orações talvez sejam ouvidas, pois és jovem e inocente.

RENÉ (espirra violentamente): – Atchim!!

JOANA: – Saúde, menino!

RENÉ (repara no pendão, deixa cair o escudo e grita): – Senhor! Senhor!

DUNOIS: – Que é? A alcíone? (procura-a pelo rio, impacientemente)

JOANA (juntando-se a eles): – Alcíone? Onde?

RENÉ (mostra o pendão): – Não, não! O vento! Foi o que me fez espirrar.

DUNOIS (olha o pendão): – O vento mudou. Deus falou. (persigna-se, ajoelha-se e entrega o bastão a Joana) Comanda o exército do rei. Sou teu soldado.

RENÉ (olhando o rio): – As balsas já estão saindo depressa como nunca!

JOANA (ajoelha-se e abraça Dunois): – Dunois, meu querido companheiro de armas! (os dois se levantam, Joana em solene silêncio)

DUNOIS: – Agora, aos fortes! Por Deus e por São Dinis!

JOANA: – Sim! A luta começa! Vitória em Orléans! Avante!

RENÉ e D’AULON: – Com Deus e a Donzela! Pela França! (saem)

 

escena 2

Madrugada de 8 de maio de 1429. Campo de batalha.
Os três pajens René, d’Aulon e Basque; Dunois, La Hire, Gilles, Joana; Padre Paquerel.

(La Hire dorme; Joana descansa, recostada, assim como os outros, menos os pajens que estão de guarda e conversam.)

RENÉ: – Ai, ontem o que eu corri! Meus pobres pés estão cheios de bolhas…

BASQUE: – E quando o Bastardo chamou o corneteiro para dar o toque de retirada? A Donzela, já ferida, disse a ele: “Espera um pouco!”

D’AULON: – Foi isso mesmo, Basque. Ela entrou no vinhedo, ajoelhou-se e rezou por quinze minutos. Eu já estou acostumado. E, quando ela volta, alguma coisa se desencadeia.

RENÉ: – E então eu entreguei o estandarte a Basque e me arrastei que nem um cogumelo, com o escudo em cima da cabeça.

BASQUE: – E alguém veio por trás e me arrebatou o estandarte das mãos. Era a Donzela. Mas eu te digo: ela parecia estar em chamas da cabeça aos pés. Até gritei: “São Miguel!” Pois foi tão grande a semelhança…

D’AULON: – Aos ingleses aconteceu o mesmo. Ela voou sobre o fosso como quem tem asas, e eles se apavoraram. Muitos jogaram fora as armas. Eu vi!

(Outro grupo conversa.)

 

DUNOIS (tenta acordar La Hire): – La Hire! Capitão! (aos outros): – Ele dormiu. Está esgotado (sacode-o; Joana se ergue de seu descanso)

LA HIRE (acorda estremunhado): – Maldição! Até no sonho ouço o barulho das espadas. Maldição! (bate na boca)

JOANA (aos poucos todos se prendem às suas palavras):
– Velho amigo, herói incorrigível,
olha, um novo tempo vai surgir.
Todos os homens hão de ser irmãos,
iguais perante Deus. E, quanto a mim,
minha vida ofereço em sacrifício
por meus irmãos, por meu país, sozinha,
a serviço de Deus.

GILLES (consigo mesmo): – Joana está muito avançada em relação ao tempo… E seus irmãos… ah, não entendem nada.

(O padre Paquerel entra com uma cruz, e os pajens arrumam o altar. Basque fica firmemente de guarda.)

JOANA: – Vamos celebrar o dia de hoje, dia em que São Miguel Arcanjo apareceu no monte Gargano. É a ele que devemos orientação e vitória.

(Padre Paquerel põe-se diante do altar, os outros se ajoelham diante do altar, de costas para o público.)

PADRE PAQUEREL (reza em latim, os outros repetem em português):
– Benedicite Dóminum omnes Angeli ejus.

TODOS os outros: – Bendizei ao Senhor todos os Seus anjos.

PADRE PAQUEREL e TODOS: – Aleluia! Aleluia!

BASQUE (que estava de guarda, com precipitação): – Alarme! Alarme! As guarnições de seis fortes avançam para o campo; e já se põem em posição de combate!

(Comoção geral. Joana, imóvel.)

DUNOIS: – É preciso reforçar as defesas!

JOANA (volta-se um pouco e fala com firmeza): – Hoje é dia santo. Não lutaremos. Defendei-vos só se vos atacarem!

PADRE PAQUEREL: – Allelúja, allelúja, Sancte Michäel Archangele, defende nos in praelio…

TODOS os outros: – Aleluia, aleluia, São Miguel Arcanjo, defendei-nos no combate…

PADRE PAQUEREL e TODOS: – Aleluia!

BASQUE (vai até Joana): – Donzela, as guarnições se movimentam.

JOANA (voltando só a cabeça): – Vê bem se estão de frente para nós ou se nos dão as costas!

BASQUE (com a mão em pala, espiando longe): – Os ingleses nos dão as costas! Estão indo embora!

JOANA: – Deus não quer que lutemos hoje contra os ingleses. Nós os venceremos em outra ocasião. Vamos agora agradecer a Deus.

PADRE PAQUEREL: – Princeps gloriosissime, Michael Archángele, precáre pro nobis Filium Dei.

TODOS: – Gloriosíssimo Príncipe, Miguel Arcanjo, rogai por nós ao Filho de Deus.

PADRE PAQUEREL e TODOS: – Aleluia! Aleluia!

 

QUINTO QUADRO
Reims
(pronuncia-se Ranç)

Três cenas com o mesmo cenário. Aposento no Palácio do Arcebispo, que se comunica com a Catedral. Mesa grande, cadeiras de braço.

Escena 1
Por volta de 30 de junho de 1429, à noite.
O Conselheiro em Reims; o conde de Warwick, general inglês; John Stogumber, capelão inglês; Cauchon, bispo de Beauvais; um Pajem.

(O Conselheiro está sozinho. Iluminação noturna.)

O CONSELHEIRO (arranjando as poltronas em volta da mesa): – Quatro poltronas para esta estranha conversa em Reims! (pega uma) Um lugar de honra para Cauchon, o bispo de Beauvais, porque é bispo e não tem mais sede própria, pois foi expulso de sua diocese na cidade que se tornou fiel à Donzela. (pega outra) Uma poltrona para o conde de Warwick, (pega outra) que traz consigo o Capelão John. (pega outra) E uma para mim.

O CAPELÃO (entra e se apresenta): – Capelão John, guardião do sinete do Cardeal de Winchester.

O CONSELHEIRO (apresenta-se a ele): – Conselheiro em Reims.

O CAPELÃO (à janela, após vistoriar a sala): – Bela catedral! Em breve nosso rei será coroado nela como Henrique VI, rei da Inglaterra e da França.

O CONSELHEIRO: – Justamente o motivo de nos encontrarmos hoje aqui é que há um outro que também sonha ser coroado nela.

O CAPELÃO: – O filho de um demente, que caiu nas garras de uma camponesa ordinária.

(O conde de Warwick surge na porta.)

O CONSELHEIRO: – Só que, infelizmente, a sorte lhe tem sido favorável na guerra…

O CAPELÃO: – A ela? O diabo em pessoa? Ah, Milorde…

WARWICK (senta-se): – Estais exaltados? Tomai vossos lugares e acalmai-vos.

PAJEM (entra e anuncia): – Sua Reverendíssima, o bispo Cauchon. (sai)

CAUCHON: – Perdoai-me. Fui detido por um mensageiro que me entregou um documento ridículo.

WARWICK (ergue-se, apresenta-se ao bispo e assume com segurança a direção da conversa): – Sou Ricardo, o conde de Warwick. Espero que o documento que trazeis nos leve diretamente ao nosso assunto. Falai!

CAUCHON: – É uma carta da Donzela, incitando à traição a cidade de Tournai. Cópias da carta chegaram ao povo e se espalham como fogo. No alto da carta está escrito “Jesus, Maria!”…

O CAPELÃO (interrompe): – Blasfêmia!

CAUCHON (continua): – “Nobres e fiéis franceses da cidade de Tournai, a Donzela vos cumprimenta…”

O CAPELÃO (interrompe): – Essa ordinária cumprimenta? É abominável!

CAUCHON (continua): – “ …e vos comunica que, dentro de oito dias, por meio de um ataque ou de outra maneira…”

O CAPELÃO (interrompe): – Pois sim!… Por meio de feitiçaria!

WARWICK: – Mestre Capelão, queremos primeiro ouvir o que está escrito. (a Cauchon): – Reverendíssima, perdoai o ardente zelo do Capelão.

CAUCHON (continua): “expulsará todos os ingleses (o Capelão estremece) de todos os lugares que ocuparam à margem do Loire (o Capelão geme). Rogo-vos que continueis sendo bons e fiéis franceses e que vos prepareis para estar presentes à coroação do nobre rei Carlos, em Reims, onde em breve chegaremos. Etc… Joana.”

WARWICK: – É… até o duque de Borgonha, nosso aliado, recebeu dela um convite para essa coroação.

O CAPELÃO (estoura): – Essa camponesa nojenta! Como se atreve?

WARWICK: – Os soldados acorrem a ela em massa. E pior: querem lutar e nem perguntam pelo soldo.

CAUCHON: – E ela fala com Deus e com São Miguel Arcanjo pessoalmente, como se não existisse a Igreja. Onde vamos parar?

WARWICK: – Já estão correndo as negociações (gesto). Já há certeza de que Carlos não atacará Paris. Ele se retira para o Loire. Mas, falando francamente, não poderemos impedir sua coroação.

O CONSELHEIRO: – Então, mais uma profecia se cumprirá.

CAUCHON: – Sem dúvida, este é um golpe de mestre da Donzela.

O CAPELÃO: – Um covarde truque de bruxaria!

WARWICK: – O Capelão acha que ela é uma feiticeira. Creio que seria dever de Vossa Reverendíssima denunciá-la à Inquisição e queimá-la.

CAUCHON: – Só se ela for presa em minha diocese.

WARWICK: – Suponho que não há motivo de dúvida quanto a ser ela uma feiticeira.

O CAPELÃO: – Não há dúvida alguma. Uma horrível feiticeira!

WARWICK (gentilmente reprovando a interrupção): – É a opinião de Sua Reverendíssima que nós pedimos, Mestre Capelão.

CAUCHON: – Devemos considerar a opinião dos componentes do tribunal que for julgá-la. Se eles forem franceses, como é moda chamá-los agora, receio que o simples fato de o exército inglês ter sido derrotado pelo francês não os convencerá de que se trata de bruxaria.

O CAPELÃO: – Como? Nem mesmo quando o famoso Sir John Talbot foi feito prisioneiro por essa ordinária vinda dos fossos da Lorena?

CAUCHON: – Senhor, todos sabemos que Sir John Talbot é um magnífico soldado. Mas dizem que não é um bom general. E, embora prefiras dizer que ele foi vencido por essa jovem, há quem pense que ele foi derrotado por Dunois.

O CAPELÃO (com desprezo): – O Bastardo de Orléans! Senhor, em Orléans uma flecha mortal atravessou a garganta dessa mulher. E ela combateu o dia inteiro e avançou até o nosso forte com um estandarte na mão. Os ingleses ficaram paralisados. Os franceses os empurraram para a ponte, que logo se incendiou e desabou, jogando-os no rio. Muitos se afogaram. Será que isso foi causado pelo talento do Bastardo, ou pelas chamas do inferno, conjuradas pela feiticeira?

CAUCHON: – Os nomes gravados em seu estandarte não eram os de Satanás ou Belzebu, mas os santíssimos nomes de Nosso Senhor e da Virgem Maria. E o vosso comandante que morreu afogado, de nome…

WARWICK: – Glasdale, sir William Glasdale.

CAUCHON: – Esse Glass-dell não era um santo, e consta que foi punido por ter blasfemado contra a Donzela.

WARWICK: – Oh, senhor…

CAUCHON: – O que eu vos digo é que o diabo escolheu uma criança heroica e pura como instrumento para destruir a Igreja.

O CAPELÃO: – Eu já vos havia dito que ela é uma feiticeira.

CAUCHON (feroz): – Não é uma feiticeira. É uma herege.

WARWICK: – E como herege deve ser queimada.

CAUCHON: – Senhor, diante de Deus a alma dessa camponesa vale tanto quanto a vossa. Meu primeiro dever é salvá-la. Mas, se ela não se submeter à Igreja, eu a condenarei. Quanto à execução, não é missão da Igreja. É assunto do braço secular.

WARWICK: – No caso, serei eu o braço secular.

 

escena 2

Dia 17 de julho de 1429. A mesma sala à luz do dia.
D’Aulon; o senhor e a senhora d’Arc; Jacques d’Arc; Haumette, Bertrand, Raymond; Joana, Dunois, o padre Paquerel.

D’AULON (afasta cadeiras e mesa): – O arcebispo foi gentil em ceder a sala. Será que esta coroação fará de Carlos um rei de verdade? (olha pela janela) Que corre-corre. Tantos enfeites… Lá vem o padre Paquerel. Ele trouxe de Domrémy os parentes e amigos de Joana. (fala com eles):
– Entrai! Joana já vem.

(Entra o padre Paquerel com parentes e amigos de Joana. Em seguida, Joana entra pelo outro lado, de armadura brilhante, capa vermelha enfeitada de dourado, a espada do lado, o elmo debaixo do braço. Pára um instante, passa o elmo para d’Aulon, dirige-se à mãe e a abraça.)

JOANA: – Minha mãe!

SENHORA D’ARC: – Filha!

JOANA (apóia as mãos sobre os ombros do pai): – Pai, tenho seguido os conselhos de São Miguel Arcanjo.

SENHOR D’ARC: – Ah, filha, tenho tido tantos pesadelos. Só terei paz quando voltares para casa.

JOANA (para Haumette): – Haumette! Conseguiste criar o bezerrinho que tinha, entre os olhos, uma mancha preta?

HAUMETTE: – Ainda te lembras? Consegui, sim!

JOANA (para Raymond): – Meu bom Raymond, nossa felicidade, como amigos, nos espera no céu.

RAYMOND: – Isso não parece cumprimento, mas sim despedida. Rezo diariamente por ti, Joana.

JACQUES: – Também tomei parte em batalhas pela libertação da França, irmã!

JOANA (põe a mão no ombro do irmão): – Meu Jacques!

BERTRAND: – Pelo visto, não sentes medo. Tens muita coragem!

JOANA: – Bertrand, usei teu elmo sempre. Mas, o que há em mim não é coragem, e sim obediência ao chamado que recebi. Só receio a traição.

DUNOIS (entra por onde Joana entrou): – Joana, o Delfim te chama para o cortejo da coroação. Vem, que eu te acompanho.

JOANA (ao padre, aos parentes e amigos): – Adeus, queridos! Vosso amor aqueceu meu coração.

(Os familiares saem por um lado com o padre. Joana, Dunois e d’Aulon saem pelo outro. O cortejo da coroação passa pela plateia, ou no fundo da cena, por trás de uma cortina transparente.)

 

escena 3

No mesmo dia, na mesma sala, duas horas depois.
Joana; Dunois, La Hire; o rei Carlos, o Arcebispo, o Marechal.

(A sala está como foi deixada. A sacola de montaria de Joana está sobre a mesa; ainda se ouvem os últimos compassos da música na catedral e gritos de “Viva o Rei! Viva o Rei Carlos VII!”. Silêncio. Joana, esgotada, entra, enrola seu estandarte, encosta-o num canto, tira a capa vermelha e joga-a na mesa. Tira da sacola de montaria um manto branco e o veste.)

JOANA:
– Mais um alvo atingido. Os doze pares
da França levantaram a coroa,
descendo-a lentamente sobre Carlos.
Ele, de pé, prestou o juramento.
Dos doze pares só vieram dois.
Os outros dez foram representados.
Dez traidores. Sinto-me esgotada,
e meu trabalho não está completo.
A França confiada a mim por Deus
ainda está ocupada, dividida…
Repicavam tão alto os grandes sinos,
que eu nem pude ouvir as minhas vozes.
Arcanjo São Miguel! Jesus! Maria!
Que decisão devo tomar agora?
Ainda terei de agir? Eu? Eu, sozinha?

DUNOIS (entra com La Hire): – Então, Joana, O rei te elevou às honras da nobreza: Joana d’Arc de Lys! E agora ele quer ir descansar no Loire.

JOANA: – Mas falta conquistar Paris. Sem a capital, o que é um reino?

LA HIRE: – Mas o rei não quer.

DUNOIS: – E acho que não permitirão que dirijas esse ataque.

JOANA: – Que estás dizendo?

DUNOIS: – No Natal, vai ver-me em Orléans. Ganhaste uma casa lá. Lembra? Adeus, Joana!

LA HIRE: – Quanto a mim, não aguento mais a corte e o marechal. Olha, manda chamar-nos se precisares de nós. Adeus.

(O Rei, o Arcebispo e o Marechal entram. Só notam Joana depois das primeiras frases. Joana está como que petrificada.)

O MARECHAL: – Se dissolverdes vossas tropas, o borgonhês entregará Paris sem luta.

CARLOS: – Mas que dirá a Donzela?

O ARCEBISPO: – Perguntai a ela. Está ali, decerto a ouvir suas vozes.

CARLOS: – Joana, já rezaste o bastante. Estamos decidindo um tratado de paz com o borgonhês.

JOANA (decepcionada): – Mas, meu rei, a libertação da França não está terminada! Antes é preciso conquistar Paris! Bem sabeis que o duque de Borgonha nem ouvirá vosso tratado. Então aceitareis a palavra do inimigo?

O ARCEBISPO: – Vê como falas, Joana. Em teu orgulho mora o diabo.

O MARECHAL: – Meu rei, devemos nos proteger desse anjo caído.

CARLOS: – É tão incômoda uma criança pura quando fica zangada… Joana já não deve mais lutar em meu nome. Boa-noite a todos.

(Os três saem. Joana fica sozinha. A cena escurece.)

 

SEXTO QUADRO
Rouen

30 de maio de 1431. Quatro cenas na sala do julgamento. A primeira cena se passa na frente, diante do portão. Na sala, há dois assentos elevados para o Bispo Cauchon e o Inquisidor, como juízes. Outras cadeiras para os assessores. No canto, uma mesa para o escrivão. Há também o tamborete para Joana.

Escena 1
Diante do portão, onde há luz. Madrugada. A sala está às escuras.
Os pajens René, Basque e d’Aulon.

D’AULON (conversa com René e Basque, em tom particular): – O povo reza por ela em Orléans, em Reims e nas outras cidades que ela conquistou. Mas o rei e seus companheiros de armas não mexeram um dedo para libertá-la. Só La Hire.

BASQUE: – E por que a Donzela abandonou a luta, quando ela e o corajoso duque d’Alençon já estavam com o exército diante de Paris?

RENÉ: – Da parte do Rei e do Marechal, veio ordem para cessar a luta. Ela cedeu, enfraquecida pelo ferimento de uma flechada, e foi deixar sua espada sobre o altar de São Dinis.

BASQUE: – E agora, que ela foi traída por Flavy, que obedecia ao Marechal, sua via sacra já começou…

RENÉ: – Ela sabia que isso ia acontecer, mas não o dia nem a hora.

D’AULON: – De manhã, durante a missa, ela disse: “Fui traída e em breve serei entregue à morte. Rezai por mim.” (os três saem)

 

escena 2
Dia claro. Sala do julgamento.
O conde de Warwick; o bispo Cauchon, o Inquisidor, o Promotor; o Capelão inglês, o Irmão Martinho Ladvenu.

(Warwick entra pela direita e fica andando de um lado para o outro. Pela esquerda, entra então Cauchon, seguido do Inquisidor e do Promotor, que carrega um grosso volume de autos.)

CAUCHON (a Warwick): – Bom dia, senhor conde.

WARWICK: – Muito bom dia a Vossa Reverendíssima. Não conheço vossos amigos.

CAUCHON (apresentando): – Este é o Irmão Jean Lemaître, delegado do Grande Inquisidor, e este é o cônego Jean d’Estivet, que exerce a função de Promotor.

WARWICK: – Ah, perfeitamente. Muito prazer em vos conhecer. (todos se inclinam) E agora vos pergunto em que ponto está o processo. Faz mais de nove meses que a Donzela foi aprisionada pelos borgonheses. E eu a comprei deles há quatro meses e a entreguei a vós, senhor bispo, como suspeita de heresia. Então esse processo não acaba mais?

O INQUISIDOR: – O julgamento será feito esta manhã. (senta-se num dos lugares dos juízes)

WARWICK: – Boa notícia. Minha paciência já estava no fim.

CAUCHON: – Os interrogatórios foram demorados porque resolvi que esta mulher deverá ser julgada lealmente.

WARWICK: – Desejais salvar a Donzela, mas eu vos declaro que sua morte é uma necessidade política.

CAUCHON (com orgulho feroz e ameaçador): – A Igreja, senhor, não deve estar subordinada a necessidades políticas.

O INQUISIDOR (interpondo-se melifluamente): – Não vos inquieteis, senhor conde de Warwick. A donzela é vossa aliada, pois condena-se a si própria cada vez que abre a boca.

WARWICK: – Nesse caso, para que o tribunal se reúna, faço entrar vossa gente e me retiro.

(Warwick sai pela esquerda. Cauchon ocupa um dos assentos dos juízes. O Promotor senta-se à mesa do escrivão e estuda o processo. Entra o Capelão que, obstinado, não se senta. Entra o Irmão Martinho e se senta.)

O CAPELÃO (a Cauchon): – Bom dia, senhor bispo. Tenho um protesto a fazer.

CAUCHON: – Muito bem. De que se trata?

O CAPELÃO: – Um ponto da acusação foi reduzido a nada. O fato de que a Donzela furtou o cavalo do Bispo de Senlis.

CAUCHON (contendo-se a custo): – Mestre Capelão, isto não é um tribunal de polícia. Então vamos perder tempo com tais ninharias?

O CAPELÃO (escandalizado): – Chamais de ninharia o cavalo do Bispo?

O INQUISIDOR (melifluamente): – Mestre Capelão, a Donzela alega ter pago regiamente pelo cavalo do Bispo. E esse ponto concorre para que ela seja absolvida.

O CAPELÃO: – Sim, se fosse um cavalo qualquer. Mas o cavalo do Bispo! (senta-se, perplexo e desanimado)

O INQUISIDOR: – Quando a Donzela vier, vamos tratar da heresia. Eu vos peço que não faleis de furtos de cavalo, dança em torno de árvores encantadas etc. Na França não há camponesa que não dance em torno de árvores mágicas. Senhores, é a heresia que devemos julgar. Aqui estou como Inquisidor e não como um juiz comum.

IRMÃO MARTINHO: – Mas haverá tanto mal na heresia dessa moça? Não será apenas simplicidade? Muitos santos disseram o mesmo que Joana…

 

escena 3
Sala do julgamento.
Os mesmos da cena anterior, menos Warwick; Joana.

(Joana está de pé, junto do tamborete. Veste roupa de pajem. Enfrenta o tribunal sem acanhamento.)

O INQUISIDOR: – Senta-te, Joana. (ela senta-se) Estás um pouco pálida.

JOANA: – É que o Bispo me mandou um peixe, e ele não me fez bem.

CAUCHON: – Eu mandei que vissem se o peixe estava fresco.

JOANA: – Eu sei, mas os ingleses pensaram que vosso desejo era envenenar-me.

CAUCHON (indignado): – Como?!

O CAPELÃO: – Nós, ingleses, não pensamos nada disso!

JOANA (continua): – Por que devo ficar na mão dos ingleses e não da Igreja? E por que estou acorrentada a um cepo? Por acaso receais que eu possa voar?

O PROMOTOR (severo): – Menina, não te compete interrogar o tribunal. Nós é que interrogamos.

O CAPELÃO: – Se não podes voar como uma feiticeira, como se explica teres sobrevivido depois da tentativa de fugir saltando de uma torre de 9 metros de altura?

JOANA: – Talvez porque, no dia em que saltei, a torre não fosse tão alta. Depois que começastes a interrogar-me sobre isso, cada dia a torre fica maior.

CAUCHON: – Já te avisei, Joana, que essas respostas impertinentes não te trazem benefício algum.

JOANA: – É que me são ditas coisas absurdas. Quando fordes sensatos, eu também serei sensata.

O INQUISIDOR (interpondo-se): – Senhores, não estão sendo preenchidas as formalidades. Só podeis interrogá-la depois que ela jurar sobre o Evangelho que nos dirá a verdade.

JOANA (ajoelha e põe as mãos sobre o Evangelho que o Irmão Martinho lhe apresenta): – Juro dizer a verdade sobre o que me perguntarem sobre minha crença.

(Fim do primeiro flash. A cena escurece e torna a ser iluminada.)

CAUCHON: – Joana, ousas pretender que estás em estado de graça?

JOANA: – Se eu não estiver, que a ele Deus me conduza. Se estiver, permita Deus que nele permaneça.

IRMÃO MARTINHO: – Eis aí uma bela resposta, senhores.

O CAPELÃO: – Estavas em estado de graça quando furtaste o cavalo do Bispo?

CAUCHON (levanta-se furioso): – Estamos aqui para julgar um caso de heresia e somos desviados por um idiota que só pensa em cavalos! (torna a se sentar)

O INQUISIDOR: – Senhores, ligando para essas minúcias, nós nos tornamos os melhores advogados da Donzela. Que diz o Promotor?

O PROMOTOR: – Devemos acentuar os dois crimes horribilíssimos que ela não nega: Comércio com maus espíritos – o que a torna uma feiticeira – e vestir-se de homem – o que é indecente e contrário à natureza.

JOANA: – Então Santa Catarina e São Miguel Arcanjo são maus espíritos?

O INQUISIDOR: – Joana, a Igreja ensina que essas aparições são demônios buscando a perdição de tua alma. Aceitas o ensinamento da Igreja?

JOANA: – Como fiel filha da Igreja, não posso recusar um mensageiro de Deus.

CAUCHON: – Infeliz, não sabes o que dizes. Então mensageiros de Deus dariam o conselho impudente de te vestires em desacordo com teu sexo, como um soldado?

JOANA: – Esse conselho me foi dado para que os soldados vissem em mim um outro soldado, já que eu vivia no meio deles; e hoje sou prisioneira guardada por soldados. Se eu estivesse vestida de mulher, eles veriam em mim uma mulher. E que seria de mim, então? Foi por isso que Santa

Catarina me disse que eu só posso usar roupas de mulher quando ela me avisar.

IRMÃO MARTINHO: – É espantoso. O que ela está dizendo é erradíssimo, mas tem um grão de bom senso. Ideia que pode ocorrer a uma ingênua moça de aldeia.

JOANA: – Se fôssemos tão ingênuos na aldeia quanto o sois em vossos palácios, em breve não existiria mais trigo para vossos pães.

IRMÃO MARTINHO: – Joana, estamos tentando salvar-te, mas o orgulho te cega.

JOANA: – Não compreendo. Acho que não disse nada de mal.

O INQUISIDOR: – A simplicidade de um espírito obscurecido não vale mais que a simplicidade de um bicho.

JOANA: – Deixai-me dizer-vos que há muita sabedoria na simplicidade de um bicho e, às vezes, muita tolice na sabedoria dos letrados.

(fim do segundo flash. A cena escurece e se ilumina novamente.)

CAUCHON: – Joana, deves assinar uma solene retratação de tua heresia.

O CAPELÃO (levanta-se, furioso): – Senhor, então ides permitir que esta mulher nos escape? Além da porta estão 800 homens que farão com que essa abominável feiticeira seja queimada, apesar de vossa oposição! Vós estais cometendo uma traição contra o conde de Warwick!

O PROMOTOR (tumultuadamente): – Que foi que ele disse?!

IRMÃO MARTINHO: – Acusa-nos de traição!

O PROMOTOR: – É um sujeito insuportável! Já passou dos limites!

O INQUISIDOR (levanta-se): – Mestre Capelão, é bom refletires sobre teu santo ministério, sobre quem és e onde estás.

CAUCHON: – Mestre Inquisidor, este homem me chamou de traidor!

O CAPELÃO: – Todos vós sois traidores. Não fazeis outra coisa senão implorar a essa miserável que se retrate.

(Fim do terceiro flash. A cena escurece e se ilumina novamente.)

CAUCHON: – Joana, cuidado com a resposta que vais dar à pergunta solene que vou fazer. Dela dependem tua vida e a salvação de tua alma. Por tudo que disseste e fizeste de bem e de mal, queres aceitar o julgamento da Igreja de Deus na Terra?

JOANA: – Sou uma fiel filha da Igreja. Obedeço à Igreja, contanto que ela não me peça o impossível. E o que chamo de impossível é a Igreja ordenar que eu aja em oposição à ordem que me foi dada por Deus.

(Cauchon afunda-se na cadeira com um profundo suspiro. O Inquisidor fecha a cara. O Irmão Martinho balança a cabeça, com pena.)

O PROMOTOR: – Oh, a Igreja em oposição a Deus! Que dizeis a isso?

O INQUISIDOR: – Franca heresia!

O IRMÃO MARTINHO (em tom súplice e insistente): – Minha filha, pensa no que estás dizendo. Queres matar-te? Se és filha da Igreja de Deus na Terra, estás submissa ao Papa, aos Cardeais, aos Arcebispos e ao Bispo aqui presente.

JOANA: – Deus deve ser servido em primeiro lugar.

CAUCHON: – E és tu, e não a Igreja, quem deve julgar como servir a Deus?

JOANA: – Como poderei julgar senão por meu próprio juízo?

O CAPELÃO, O PROMOTOR, O INQUISIDOR (escandalizados): – Oh!

CAUCHON: – Joana, quem não se subordina à Igreja, também está renegando Deus. Quero salvar tua alma! Fala!

JOANA: – Não posso dizer nada que contradiga o que vos tenho dito sempre. E nisso fico firme até a morte. (tumulto geral)

CAUCHON: – Acabas de ser condenada por tua própria boca. Lutamos por tua salvação quase com o risco de pecarmos também.

O PROMOTOR: – É uma herege relapsa, obstinada e totalmente indigna de misericórdia!

O CAPELÃO (exaltado): – À fogueira com ela!!

IRMÃO MARTINHO: – Ímpia criatura, se Deus fosse teu conselheiro, então Ele não te libertaria?

JOANA: – Os caminhos de Deus não são os vossos. Se Ele quer que eu chegue a Ele por meio do fogo, então o melhor que me pôde acontecer foi ter sido aprisionada.

CAUCHON: – Então não desejas humildemente reconhecer tua heresia? Não desejas voltar ao seio da Santa Mãe Igreja?

JOANA (com luz só sobre ela): – Vim de Deus. Assim, enviai-me de volta a Ele.

(Fim do último flash.)

 

escena 4
Mesmo local. Bem mais tarde.
O Inquisidor, o bispo Cauchon; Warwick; o Capelão; o Irmão Martinho; o carrasco.

CAUCHON (abalado): – Levaram-na diretamente para a fogueira. Isso é irregular. O representante do braço secular deveria estar aqui para recebê-la de nossas mãos.

O INQUISIDOR: – Aquele Capelão é um incorrigível imbecil.

WARWICK (entra): – Oh, sou um intruso. Pensei que tudo estivesse acabado. (finge querer retirar-se)

CAUCHON: – Ficai. Tudo está acabado. E é um pouco duvidoso, senhor, que vossa gente tenha agido de acordo com as formalidades legais.

WARWICK (com importância e desdém): – Pois disseram-me, senhor, que é duvidoso que vossa autoridade seja válida nesta cidade, que não pertence à vossa diocese. Mas, se respondeis por isto, eu respondo pelo resto.

CAUCHON (comovidíssimo): – É a Deus que ambos devemos responder. Bons dias, senhor.

(Os dois se entreolham com hostilidade; Cauchon sai, seguido pelo Inquisidor. Warwick fica sozinho; o Capelão entra pela outra porta.)

O CAPELÃO (desesperado e aos brados): – Milorde, estamos perdidos! Queimamos uma santa!

WARWICK: – Que aconteceu, mestre Capelão?

O CAPELÃO: – Senhor, rezai por minha criminosa alma! Eu não sabia o que estava fazendo!

WARWICK: – Mas não foste tu que fizeste.

O CAPELÃO: – Oh, as palavras enlouquecem-nos, mas quando vemos o mal que fazemos… (cai de joelhos) Ó Cristo, livra-me do fogo que me consome! Do meio dele, ela Te invocou, chamando: “Jesus! Jesus!” Ela está contigo, e eu no inferno para sempre!

WARWICK (põe-no de pé e senta-o numa cadeira): – Controla-te, homem.

O CAPELÃO (desorientado e submisso): – Ela pediu uma cruz. Então um soldado lhe deu duas varetas amarradas em cruz. Deus seja louvado, ele era inglês. Eu devia ter feito isso e não fiz. Sou um covarde!

WARWICK: – Silêncio! Vem vindo alguém.

(Entra o Irmão Martinho carregando uma cruz tirada de uma igreja. Sua fisionomia é grave.)

WARWICK: – Disseram-me que está tudo terminado, Irmão Martinho.

IRMÃO MARTINHO (enigmático): – Talvez tenha apenas começado.

WARWICK: – Que queres dizer com isso?

IRMÃO MARTINHO: – Ela não tinha senão duas varetas amarradas em cruz e apertadas contra o peito. Fui então buscar esta cruz na igreja, para que ela a pudesse ver até o último momento. Quando o fogo crepitou e ela viu que eu seria queimado se continuasse a segurar a cruz diante dela, pediu que eu me afastasse e me pusesse a salvo das chamas. Senhor, numa hora dessas, quando uma jovem pensa no perigo que os outros correm, é que ela não está inspirada pelo demônio. Quando eu me afastei, ela pôs os olhos no céu, e não creio que o céu estivesse vazio. Creio que o

Salvador lhe apareceu. Ela chamou por Ele e morreu. Para ela não é o fim. É o começo!

WARWICK: – Receio que as consequências disso sejam más para o povo.

O CAPELÃO (levanta-se, alucinado): – Vou rezar no meio das cinzas dela. (em voz mais alta) Não sou melhor que Judas! (sai pela esquerda)

WARWICK: – Irmão Martinho, vai atrás para que ele não faça uma loucura.

(O Irmão Martinho sai, empurrado por Warwick que, ao voltar-se dá de cara com o carrasco, que entrou pela direita.)

WARWICK: – Quem és tu?

O CARRASCO: – Sou o carrasco, ou melhor, sou o Mestre Executor de Rouen. Vossas ordens foram cumpridas.

WARWICK: – Garantes que nada ficou?

O CARRASCO: – Suas cinzas se espalharam aos quatro ventos. Mas seu coração não quis queimar-se. Então atirei-o no fundo do rio. Nunca mais ouvireis falar dela.

WARWICK (pensa no que lhe dissera o Irmão Martinho): – Nunca mais ouvirei falar dela? Hum… Eu gostaria de saber!

EPÍLOGO

O palco clareia e se esvazia de mesa e cadeiras, ou então o cenário é semelhante ao do Prólogo. Vão entrando aos poucos quase todas as personagens. Cada um, depois que fala, imobiliza-se na posição correspondente a seu tipo.

RAYMOND (entra sem pressa, simples, sóbrio): – Sim, o coração de Joana não se queimou. Foi atirado ao rio Sena, e o Sena passa por Paris. Antes que se passassem 7 anos, seu rei entrou sem luta em Paris e em Rouen.

RENÉ (apressado, com o escudo na mão, como quem dá uma boa notícia): – O Bastardo cumpriu sua palavra!

BASQUE (correndo, como René): – Sim! Os ingleses foram embora!

GILLES DE RAIS (semelhante): – Os ingleses foram-se retirando de província em província.

LA HIRE (semelhante, porém mais calmo): – O menino Henrique VI nunca reinou sobre a França.

IRMÃO MARTINHO (com a grande cruz): – Passaram-se 25 anos, e todos os dias eu pedi a Deus que fizesse provar na Terra a inocência de Joana.

CARLOS: – Foi nessa época que decidi rever seu processo.

SENHORA D’ARC: – Eu implorei a ele, em Orléans.

DUNOIS: – E eu inclinei-me perante seus grandes feitos e escrevi uma carta para que lhe fizessem justiça em seu novo processo.

D’AULON (vem com os outros pajens): – Também depusemos nesse processo.

JACQUES D’ARC: – E eu também, representando a família.

PADRE PAQUEREL: – O processo durou seis anos.

CAUCHON: – Quando o papa Calixto anulou minha sentença, eu já havia morrido. Mas Deus é testemunha de que agi de acordo com minha consciência…

SOLDADO INGLÊS (simplório): – Vós, os homens grandes e poderosos, às vezes cometeis grandes e poderosas tolices. Quanto a mim, bem, sou soldado inglês e, segundo dizem, nada fiz de bom a não ser no dia em que amarrei duas varetas em forma de cruz para uma mocinha que ia ser queimada.

O CAPELÃO (velho e alquebrado): – Desculpai-me. Sou um velho cura inglês. Antigamente fui Capelão de Winchester. Agora minha paróquia é uma pequena aldeia. Quem sabe ali posso fazer algum bem. Certa vez fiz um grande mal. Mas eu não sabia o que era a crueldade. Nem pensando nos sofrimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não foi Ele que me redimiu, mas sim uma jovem que vi morrer na fogueira. Depois disso, tornei-me um homem completamente diferente.

O PROMOTOR (um tanto frio e prático): – Senhores, estou encarregado de vos anunciar que, em 1909, Joana foi beatificada pela Igreja e, em 1920, canonizada como Santa Joana.

TODOS (de joelhos): – Santa Joana!

JOANA (entra com o estandarte e o manto branco): – Oh, não! É Joana que deve ajoelhar-se! (ajoelha-se, enquanto os outros vão-se levantando)

O ARCEBISPO: – Glorificam-te os príncipes da Igreja, porque os redimiste de seu espírito mundano que os arrastava à lama.

WARWICK: – Glorificam-te os astutos conselheiros, porque cortaste os nós com que eles haviam amarrado suas próprias almas.

O INQUISIDOR: – Glorificam-te os juízes cegos e escravos da lei, porque reivindicaste a liberdade da alma vivente.

CARLOS: – Glorificam-te os simples, porque tomaste sobre teus ombros um fardo que é pesado demais para eles.

(Todos agora estão de pé, imóveis. Só se movimentam Raymond, Haumette e Jacques, que falam para a platéia.)

RAYMOND: – Só agora compreendo seu amor: bem maior que o meu, para poder amar toda a humanidade.

HAUMETTE: – Sempre a festejamos fielmente. Mas hoje, que diria Joana?

JACQUES D’ARC: – Será que hoje alguém poderia empunhar um estandarte, sem olhar para trás para ver se o seguem?

RAYMOND: – Hoje, acho que Joana nos diz: Que cada um busque seu próprio caminho e realize, em seu âmbito restrito, aquilo que no âmbito vasto ama e venera.

 

FINAL

 

Sobre a escolha e envio da peça

Para escolher uma peça com objetivo pedagógico, estude bem que tipo de vivência seria mais importante para fortalecer o amadurecimento de seus alunos. Será um drama ou uma comédia, por exemplo. No caso de um musical, é importante que a classe seja musical, que a maioria dos alunos toquem instrumentos e/ou cantem. Analise também o número de personagens da peça para ver se é adequado ao número de alunos.

Enviamos o texto completo em PDF de uma peça gratuitamente, para escolas Waldorf e escolas públicas, assim como as respectivas partituras musicais, se houver. Acima disso, cobramos uma colaboração de R$ 50,00 por peça. Para outras instituições condições a combinar.

A escola deve solicitar pelo email [email protected], informando o nome da instituição, endereço completo, dados para contato e nome do responsável pelo trabalho.

 

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