29. März 2018

Die Jungfrau von Orleans

 

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peça de Friedrich Von Schiller

adaptação em prosa e verso de Ruth Salles

a partir da tradução literal completa de Julia de Mello e Souza

HINWEIS

Joana d’Arc, aos 17 anos, guiou o exército de uma nação. Com isso, a França encontrou-se a si própria, o mapa da Europa transformou-se, e a Inglaterra se voltou para sua própria missão no mundo. Sentindo-se instrumento da vontade divina, Joana não vacilou em seu propósito, mostrando como um ser humano, ao ser esmagado pela missão à qual se mantém fiel, ainda assim é um vencedor, capaz de guiar-se a si próprio e realizar a tarefa que lhe coube.

Friedrich von Schiller, grande escritor, poeta trágico e historiador alemão, nasceu em Marbach, em 1759, e morreu em Weimar, em 1805.

Esta peça, “A Donzela de Orléans”, sobre a vida de Joana d’Arc, é uma tragédia romântica. Por se tratar de uma peça muito longa, esta, agora, é uma tentativa de condensá-la, com alguns trechos em versos, procurando, o mais possível respeitar o poeta. No convite para a primeira apresentação, feita em alemão, consta o seguinte comentário:
“Em nossa época atual, a determinação da vontade e a auto-direção do homem se tornam cada vez mais problemáticas. Por isso, a figura da Donzela de Orléans pode constituir, ainda hoje, para os adolescentes, um ideal luminoso e uma ajuda em sua luta contra a falta de postura e de controle, e contra a permissividade diante de situações difíceis na vida. Através de sua própria atividade na peça, os alunos identificam-se com a energia micaélica da personalidade de Joana; sentem que uma individualidade tão nova já pode ser capaz se guiar-se a si própria, sem vacilar e sem se deixar perturbar, realizando a tarefa que lhe coube.”

Ruth Salles

 

Da Cena 4 do Prólogo da adaptação em versos:

“Adeus, colinas, campos que eu amava!
Adeus, sereno vale! Adeus! Adeus,
pois nunca mais virei pisar teu chão!
Ó plantas que reguei, ó belas árvores!
Eu vos plantei! Alegres verdejai!
Adeus, ó fontes de água fresca e pura!
Ó doce eco – ó voz do fundo vale
que tanto respondeste aos meus cantares –
Joana vai! Não volta nunca mais!”

(Nessa estrofe, procurei dar o exemplo do pé métrico usado em toda a peça por Schiller – o jambo, ou iambo, que consta de uma sílaba curta e outra longa, formando, ao mesmo tempo, versos de dez sílabas. O “jambo” impulsiona a pessoa de dentro para fora: Joana parte para cumprir sua missão.)

 

ZEICHEN

CARLOS VII – Rei da França
AGNES SOREL – sua amada
RAINHA ISABEL – mãe de Carlos VII
DUQUE DE BORGONHA, Felipe o Bom
CONDE DUNOIS – o Bastardo de Orléans
LA HIRE e
DUCHÂTEL – oficiais do campo do Rei
ARCEBISPO DE REIMS
CHATILLON – um cavaleiro da Borgonha
RAUL – um cavaleiro da Lorena
TALBOT – general do campo dos ingleses
LIONEL e
FASTOLF – chefes ingleses
CONSELHEIROS DE ORLÉANS
UM ARAUTO INGLÊS

THIBAUT D’ARC – um rico senhor de terras
MARGOT,
LOUISON e
JOANA – suas filhas
ÉTIENNE,
CLAUDE-MARIE e
RAYMOND – seus pretendentes.
BERTRAND – outro senhor de terras
O ESPECTRO DE UM CAVALEIRO NEGRO
UM CARVOEIRO
SUA MULHER
SEU FILHO
Soldados, povo, oficiais da coroa, bispos, magistrados, cortesãos e outros personagens, formando o cortejo da coroação.

 

HINWEIS:
Conservei em versos apenas as cenas de que Joana participa.

 

PROLOG

CENA ÚNICA
Uma região campestre. No primeiro plano, à direita, uma imagem sacra numa capela, à esquerda um alto carvalho.
Thibaut d’Arc, suas três filhas, três jovens pastores; Bertrand.

 

THIBAUT: – É isto, meus caros vizinhos! Por enquanto ainda somos franceses, livres e donos do solo que nossos avós cultivaram; mas amanhã, quem sabe a qual comando estaremos sujeitos? Os ingleses estão vencendo por toda parte, incendeiam vilas e cidades, e as chamas já se aproximam destes vales. Por isso, hoje mesmo, decidi encaminhar as filhas.
(ao primeiro pastor):
– Étienne, aproxima-te. Sei que amas Margot.
(ao segundo pastor):
– E tu, Claude-Marie, amas Louison, não é mesmo?
Pois eu abençoo vossos casamentos! (Os pares se abraçam, com alegria.)
– A cada casal ofereço trinta acres de terra, casa, estábulo, galinheiro e rebanho. Que Deus vos abençoe.

MARGOT (abraça Joana, que fica em silêncio): – Joana, segue nosso exemplo! Se casássemos as três num só dia, já imaginou como o pai ficaria feliz?

THIBAUD: – Preparai-vos, então! Vamos celebrar as bodas amanhã mesmo. Convidai toda a vila! (os dois pares saem de braços dados)

THIBAUT (a Joana, que permanece quieta): – O casamento de tuas irmãs alegra minha velhice. E tu rejeitas o jovem mais honrado de toda a aldeia.

RAYMOND: – Deixa minha Joana, pai Thibaut. Eu sei que existe dentro dela um amor diferente, mais elevado que o nosso.

THIBAUT: – É justamente disso que não gosto. Ela sai sozinha, de madrugada, e vai até a árvore dos druídas, lugar que todos evitam. Pois dizem que lá existem maus espíritos.

RAYMOND (aponta a imagem sagrada na capela): – É aquela imagem que atrai Joana.

THIBAUT: – Não! Joana me aparece em pesadelos angustiantes. Sonhei que ela estava em Reims, num trono real, com uma coroa de sete estrelas e um cetro na mão, um cetro com três lírios brancos. Quem sabe ela tem vergonha da vida simples e se orgulha da beleza que Deus lhe deu.

RAYMOND: – Mas, não… Joana é tão modesta… Faz serviços humildes alegremente… E tem o maior cuidado com os rebanhos e as plantações…

THIBAUT: – Ela tem é sorte, e isso me assusta.

RAYMOND:
– Aí vem Bertrand de volta da cidade.
Que traz com ele?

BERTRAND (aparece): – Estais todos surpresos
por verdes este elmo?

THIBAUT: – Tens razão.
– É mau sinal trazeres isso a um vale
tão pacífico.

(Joana, que durante as cenas precedentes, tinha-se mantido afastada e em silêncio, aproxima-se e começa a prestar atenção.)

BERTRAND: – E eu nem mesmo sei
como veio parar em minhas mãos.

JOANA (com vivacidade, tentando pegar o elmo):
– Dá-me este elmo!

BERTRAND: – Que farás com ele?
Não é enfeite para uma donzela.

JOANA (arrebatando o elmo):
– Pois eu digo que é meu, que me pertence.

THIBAUT:
– Que idéia é essa agora?

RAYMOND: – Deixa, Pai!

THIBAUT:
– Fala, Bertrand! Que ouviste sobre a guerra?

BERTRAND:
– Que Deus tenha piedade, pois perdemos
duas grandes batalhas. O inimigo
agora está no coração da França.
Por toda parte, nuvens de guerreiros
já se uniram ao duque de Borgonha
para tomar Orléans.

 

THIBAUT:
– Que Deus proteja o Rei! Fatal discórdia!
Oh, lamentavelmente se voltaram
armas da França contra a própria França!

BERTRAND:
– Ate mesmo Isabel, Rainha Mãe,
é vista em pleno campo de batalha,
estimulando o ódio dos guerreiros
contra seu filho, contra o próprio filho!

THIBAUT:- Que Deus lhe dê o castigo que merece!

BERTRAND:
– O temível Salisbury é quem comanda
o assalto, e Lionel e Talbot juntos
combatem a seu lado.

(Joana escuta com atenção cada vez maior e põe o elmo na cabeça.)

THIBAUT: – E onde estão
os valentes Xantrailles e La Hire?
E Dunois, o Bastardo, nosso herói?
Onde estão eles, para que avance
assim tão triunfante o inimigo?
Que faz o Rei? E a corte?

BERTRAND:-
O rei e a corte aguardam em Chinon.
Disseram que somente um cavaleiro
conseguiu reunir um contingente.

JOANA (calorosamente):-
Como se chama esse homem?

BERTRAND:  – Baudricourt.
É loucura. Está sendo perseguido
por dois grandes exércitos.

JOANA: – E sabes
onde encontrá-lo?

BERTRAND: – Sei que Baudricourt
acampa a meio dia de viagem
de Vaucouleurs.

THIBAUT (a Joana): – Mas que interesse tens
em assunto que não te diz respeito?

BERTRAND:
– Todos em Vaucouleurs já decidiram
se render afinal ao borgonhês.

JOANA (com entusiasmo):
– Isso jamais! Nada de rendições!
Nada de pactos! O libertador
já se aproxima e se arma para a luta.

BERTRAND:
– Hoje milagres não existem mais.

JOANA:
– Oh, sim, existem! O Senhor dos Céus
escolherá, de suas criaturas,
a mais humilde, uma donzela frágil,
para manifestar-se através dela.

THIBAUT:
– Que espírito tomou essa pequena?

RAYMOND:
– É o elmo que a torna assim guerreira.

JOANA:
– Este reino cair? Não! Esta terra
sob o jugo estrangeiro? Ah… Deus não quer!
Daqui Jerusalém foi libertada!

BERTRAND (estupefato):
– Ouviste, Pai Thibaut? Deus certamente
te deu por filha uma predestinada.

THIBAUT:
– Que Deus proteja a França e nosso Rei!
Somos homens pacíficos do campo,
nada sabemos de brandir espadas
e nem de cavalgar corcéis de guerra.
Ao trabalho, meus filhos, ao trabalho!
O solo que lavramos não se altera,
e hão de renascer na primavera
todas as plantas que os cavalos pisam. (Saem, menos a donzela.)

JOANA:
– Adeus, colinas, campos que eu amava!
Adeus, sereno vale! Adeus! Adeus,
pois nunca mais virei pisar teu chão!
Ó plantas que reguei, ó belas árvores!
Eu vos plantei! Alegres, verdejai!
Adeus, ó fontes de água fresca e pura!
Ó doce eco, ó voz do fundo vale,
que tanto respondeste a meus cantares,
Joana vai! Não volta nunca mais!

– Ovelhas, dispersai-vos pelos campos!
São outros os rebanhos da pastora,
sangrentas as pastagens e os perigos.
Chamou-me a voz do Céu, que me ordenou:
“Deves partir, Joana! Deves dar
testemunhos de mim aqui no mundo.
Hás de virar a roda do destino!
Hás de salvar a França nesta guerra
e hás de coroar o Rei em Reims!”

O sinal que me fora prometido
me foi mandado enfim quando este elmo
chegou às minhas mãos. Dele provém
uma força divina que me arrasta
ao tumulto da guerra tão sangrenta.
Ouço o chamado ao longe para a luta.
Empina-se o corcel! Soa a trombeta!

 

PRIMEIRO  ATO

CENA  ÚNICA
A corte do Rei Carlos em Chinon.

Dunois e Duchâtel; o rei Carlos; Pajem, três Conselheiros de Orléans; Agnes Sorel; La Hire; o Arcebispo, Raul; Joana, o Arauto.

DUNOIS: – Não agüento mais. Vou abandonar esse Rei covarde, sem fibra. Meu coração sangra, pressentindo o destino da França, enquanto aqui, na maior inércia, desperdiça-se o tempo. Assim que soube que Orléans estava ameaçada, vim da Normandia a toda a pressa, pensando que o Rei já estivesse pronto, à frente do exército. Que nada! Está brincando de decifrar charadas com sua querida Agnes Sorel. O Condestável foi embora, horrorizado. E eu farei o mesmo!

DUCHÂTEL: – O rei vem vindo.

CARLOS (entrando): – O Condestável abandonou o posto, esse rabujento. Queria só mandar em todos.

DUNOIS: – Nos tempos de hoje, um homem vale muito. Não é bom perder nenhum.

CARLOS: – Tens prazer em me contrariar.

DUNOIS: – Ele era um presunçoso, mas desta vez soube agir e partir na hora certa. Sinceramente, não é nada honroso ficar aqui agora.

CARLOS: – Que mau humor, Dunois. – Eh, Duchâtel, o rei René nos enviou cantores que devem ser muito bem tratados. Dá uma corrente de ouro a cada um! – Dunois, de que estás rindo?

DUNOIS: – Dessa generosidade insensata…

DUCHÂTEL: – Senhor, não há mais dinheiro no Tesouro.

CARLOS: – Pois trata de encontrar. Esses cantores não partirão daqui sem homenagens!

DUCHÂTEL: – Senhor, os recursos se acabaram. Os soldados nem recebem soldo e ameaçam desertar.

CARLOS: – Então, penhora meus direitos de Rei!

DUCHÂTEL: – Já foram penhorados por três anos.

DUNOIS: – E em três anos, perdemos o país.

CARLOS: – Temos ainda estados muito ricos…

DUNOIS (interrompendo): – …se Deus quiser e se Talbot permitir com sua espada inglesa. Mas, se Orléans for tomada, já podes fazer companhia ao Rei René e pastorear ovelhas.

CARLOS: – Caçoas dele só porque ele sonha com um mundo puro, sem esta barbárie.

DUNOIS: – Mas hoje é preciso que defendas a França e a coroa que herdaste!

CARLOS (a um pajem que entra): – Que novidades trazes?

PAJEM: – Meu senhor, chegaram Conselheiros de Orléans e pedem audiência.

CARLOS: – Que entrem! (Sai o pajem) – Com certeza vêm pedir amparo, logo a mim, que estou desamparado.

(Os três conselheiros entram.)

CARLOS: – Sede benvindos! Como está Orléans?

CONSELHEIRO 1: – O inimigo avança, e nossas fortificações externas caíram. Já se passa fome e faltam combatentes. Se um exército numeroso não for logo nos socorrer, daqui a doze dias nos rendemos. É o trato que fizemos. Viemos pedir auxílio urgente!

DUNOIS (com um movimento de cólera): – Xaintrailles consentiu em fazer esse trato vergonhoso?

CONSELHEIRO 2: – Não, senhor! Enquanto ele viveu, nem se pensou nisso.

DUNOIS: – Xaintrailles, morto?

CONSELHEIRO 3: – Tombou em nossos muros, esse herói.

CARLOS: – É como se morresse um exército inteiro!

(Entra um cavaleiro e diz alguma coisa ao ouvido de Dunois, que fica confuso)

DUNOIS: – Conde Douglas nos manda uma mensagem: diz que os escoceses vão deixar seus postos se não receberem os soldos atrasados.

CARLOS: – Duchâtel!

DUCHÂTEL (sacudindo os ombros): – Não há o que fazer.

CONSELHEIRO 1: – Ah, Senhor, ajuda-nos!

CARLOS (com desespero): – Posso vos dar meu sangue, mas não posso oferecer soldados nem dinheiro.

(Carlos avista Agnes Sorel, que se aproxima com um estojo nas mãos. Ele se posta diante dela, de braços abertos)

CARLOS: – Ah, minha Agnes! Minha bem-amada! És tudo o que me resta!

SOREL (olhando em volta inquietamente): – Caro Rei!…
– Duchâtel, é verdade que as tropas já desertam por falta de soldo?

DUCHÂTEL: – Infelizmente, sim.

SOREL: – Toma isto, então! (entrega-lhe o estojo). Funde o ouro, as jóias, a baixela e vende meus castelos. Para obter empréstimos, dá como garantia meus domínios na Provença, e paga logo as tropas. Depressa! (Impele-o)

CARLOS: – Dunois, ela não é uma pérola? Tão generosa…

DUNOIS: – E tão louca! Não pode salvar-te e vai perder tudo.

SOREL: – Não creias nele. Arriscou sempre a vida por ti. Vem, joguemos fora as pompas e vamos enfrentar juntos a guerra e as privações, dando exemplo aos soldados!

CARLOS: – Cumpre-se agora a profecia da monja de Clermont: ela predisse que uma mulher me transformaria em vencedor, reconquistando o trono de meus pais. Essa mulher é Agnes!

SOREL: – Tu vencerás pela espada de teus fiéis e valentes amigos.

CARLOS: – Também ponho a esperança nos boatos de uma discórdia entre meus inimigos: os lordes ingleses e meu primo, o duque de Borgonha. Foi por isso que mandei La Hire sondar, para ver se há um meio de trazer meu primo de volta para nós. Aguardo ansioso por sua chegada.

DUCHÂTEL (à janela): – Um cavaleiro parou no pátio do castelo!

CARLOS: – Agora, vamos saber em que pé estamos!

CARLOS (indo encontro de La Hire, que entra): – La Hire, benvindo sejas! Há esperanças?

LA HIRE: – Não! E o duque exige Duchâtel, que ele chama de assassino de seu pai.

CARLOS: – E em meu Parlamento não se ouviu um clamor de justiça?

LA HIRE: – Não, senhor. Estás destituído do trono, por decreto desse mesmo Parlamento.

DUNOIS: – Covardia arrogante de um burguês que se torna senhor!

CARLOS: – E minha mãe não te ouviu?

LA HIRE: – Não. Cheguei a Saint-Denis no momento em que o novo Rei era coroado. Vi seu cortejo e o povo, ébrio de alegria!

SOREL: – Ébrios por terem esmagado o coração do mais clemente dos Reis!

LA HIRE: – E vi Harry Lancaster, um menino, posto no trono; e o duque de Borgonha jurou fidelidade a ele, em nome de seus Estados.

CARLOS: – Par traidor, indigno!

LA HIRE: – Foi tua mãe quem pôs esse menino no trono de teu pai.

(O Rei esconde o rosto nas mãos. Agnes o abraça. Todos estão indignados.)

DUNOIS: – A vil megera!

CARLOS (aos conselheiros, após algum silêncio): – Vós ouvistes. Voltai a Orléans e dizei à cidade que, por segurança, submeta-se ao borgonhês.

DUNOIS: – Mas, senhor, abandonas Orléans?

CONSELHEIRO 1: – Oh, não nos deixes sob o jugo do inglês!

DUNOIS: – Então, desertas?

CARLOS: – O sangue já correu bastante e em vão. Só nos resta fugir para o outro lado do rio Loire.

SOREL: – Não! Tua desnaturada mãe quebrou teu coração; mas tu, meu Rei, hás de enfrentar os golpes do destino e defender o reino.

CARLOS (perdido em sombrios pensamentos): – Há uma fatalidade sobre nossa estirpe. São tempos que exigem um Rei enérgico. Talvez eu servisse para um país pacífico. Mas não para estes furores!

SOREL: – O povo está cego, mas seus olhos se abrirão de novo. Não desistas. Luta palmo a palmo por Orléans, como por tua própria vida!

CARLOS: – E ver o povo dilacerado pela espada inimiga? Eu renuncio.

DUNOIS: – Mas, senhor, estás virando as costas ao reino de teus pais. E, se o abandonas, eu também te abandono. Antigamente, os reis da França eram heróis, mas tu pareces não ter nas veias nem uma gota de sangue valoroso. (Aos Conselheiros): – Vosso Rei vos dispensa. Vou convosco para Orléans. É a terra de meus pais, e devo sepultar-me em seus escombros. (Vai sair. Agnes o detém.)

SOREL (ao Rei): – Não o deixes partir. Com palavras duras ele disfarça um coração de ouro.
(a Dunois): – Dunois, foste longe demais em tua cólera!
(ao Rei) – Rei, perdoa este teu fiel amigo!

(Dunois fixa o olhar no Rei, aguardando uma resposta.)

CARLOS (a Duchâtel): – Cruzaremos o Loire. Dá as ordens para o embarque.

DUNOIS (a Sorel, em tom breve): – Adeus!

(Dunois se vira e sai. Os Conselheiros o acompanham.)

SOREL (juntando as mãos, com desespero): – Não! Se ele parte, estamos perdidos! (a La Hire) – La Hire, vai atrás dele e vê se o acalma! (La Hire sai.)

CARLOS (a Duchâtel, que parece hesitar): – Vai! Cumpre minhas ordens!

DUCHÂTEL (atirando-se a seus pés): – Mas, meu Rei… Entra em paz com o duque de Borgonha.

CARLOS: – Paz que será selada com teu sangue?

DUCHÂTEL: – Deixa que meu sangue se derrame e aplaque o velho ódio…

CARLOS (olha-o emocionado e depois diz): – Nunca me salvaria pelo preço do sangue de um amigo. Cumpre as ordens!

DUCHÂTEL: – Elas serão cumpridas, meu senhor. (Sai. Agnes explode em soluços)

CARLOS (tomando a mão de Agnes): – Minha Agnes, não chores. Há ainda uma França além do Loire.

SOREL: – Oh, boa terra, nunca mais pisaremos teu chão!
(a La Hire, que volta): – Voltas sozinho? Não trouxeste Dunois de volta? (examina-o melhor) Vens com novidades? Mais desgraças?

LA HIRE: – A quota de desgraças se esgotou. Temos o sol brilhando de novo para nós. (ao Rei): – Chama de volta os enviados de Orléans!

CARLOS: – Por que?

LA HIRE: – A sorte mudou. Foi feito um pacto, pelo qual és vencedor.

CARLOS: – Vencedor? Alguma falsa notícia te confundiu. Já não creio na vitória.

LA HIRE: – Mas em outros milagres hás de crer. O arcebispo vem vindo com Dunois.

(Entra o Arcebispo de Reims, Dunois, e Duchâtel com Raul, um cavaleiro com armadura completa.)

ARCEBISPO (leva o Bastardo Dunois até o Rei e une suas mãos): – Fazei as pazes, pois o céu nos favorece.

CARLOS (depois de abraçado por Dunois): – Mas, que prodígio causou essa mudança?

ARCEBISPO (conduz Raul para diante do Rei e lhe diz): – Fala!

RAUL: – Nós, da Lorena, escolhemos por chefe o cavaleiro Baudricourt e viemos depressa em teu socorro. Subitamente, surgem dois exércitos que nos cortam a frente e a retaguarda. Os mais valentes vacilavam, quando, das matas, surge uma donzela com um elmo à cabeça. Parecia uma deusa da guerra! E ela disse: “Bravos franceses, por que tremeis? Embora o inimigo seja mais numeroso que nós, atacai-o! Por Deus e pela Virgem sois guiados!” E, de estandarte nas mãos, marchou à nossa frente sem medo. Os inimigos, mudos de terror e espanto, nem ouviram as ordens dos chefes. Largaram as armas, lançaram-se no rio! Sem contar os que as águas carregaram, dez mil soldados foram mortos, e dos nossos nenhum saiu ferido.

CARLOS: – É estranho! Por Deus! Miraculoso!

SOREL: – Mas, quem é ela?

RAUL: – Isso ela dirá somente ao Rei, mas prometeu salvar Orléans antes que mude a lua. Vem com o exército… Acho que chegou! (Ouvem-se o toque dos sinos e o tinir das armas) Ouvis os sinos e o tumulto? É o povo aclamando a Donzela.

CARLOS (a Duchâtel): – Que ela entre! (ao Arcebispo): – Só Deus me salvaria! Não é caso de crer num milagre?

MUITAS VOZES (atrás da cena): – Viva a donzela! Viva a nossa salvadora!

CARLOS (a Dunois): – Troca de lugar comigo, Dunois! Se a jovem foi mesmo enviada por Deus, há de saber reconhecer o Rei!

(Dunois se senta. O Rei fica de pé à direita; à esquerda, Agnes Sorel; perto deles, o Arcebispo e os demais, deixando livre o meio da cena.)

(Entram Joana, os conselheiros e vários cavaleiros, que tomam o fundo da cena. Ela se aproxima com dignidade e passeia o olhar pelos que a cercam.)

DUNOIS (após um instante de silêncio solene):
– Então és tu a jovem inspirada…

JOANA (interrompe-o e o observa com olhar límpido e altivo):
– És Dunois, o Bastardo de Orléans!
Queres tentar a Deus? Levanta e deixa
esse lugar. Fui enviada a alguém
maior que tu.

(Ela se aproxima resolutamente do Rei, dobra um joelho, levanta-se em seguida, dando um passo atrás. Espanto geral. Dunois se levanta, e se abre um espaço diante do Rei.)

CARLOS: – Como me reconheces,
se é a primeira vez que estás me vendo?

JOANA (aproxima-se e fala misteriosamente):
– Eu te vi quando apenas Deus te via,
naquela noite em que te levantaste
e dirigiste fervorosamente
três pedidos a Ele.

CARLOS: – Se os disseres.
não mais duvidarei de ti, donzela.

JOANA:
– Pediste a Deus, primeiro, que se um crime,
cometido por teus antepassados,
pudesse ser a causa desta guerra,
então que Deus fizesse só de ti
a vítima expiatória de teu povo.

CARLOS (recuando, apavorado):
– Quem és tu, poderosa criatura? (Espanto geral)

JOANA:
– Em segundo lugar, pediste a Deus
que, se Ele arrebatar de tua estirpe
o cetro deste reino, que tu fiques
apenas com a consciência em paz,
o amor de teus amigos e de Agnes. (O Rei esconde o rosto. Espanto geral.)
Queres que diga o último pedido?

CARLOS:
– Basta! Eu creio! Foi Deus que te enviou!

ARCEBISPO:
– Quem és, jovem?

JOANA: – Senhor, meu nome é Joana.
Nasci em Domrémy e sou pastora,
e guardava o rebanho de meu pai.
Ouvi dizer que um povo de além-mar
vinha tentar nos reduzir a servos
e nos impor seu rei. Eu supliquei
à Mãe divina que nos libertasse.
Por três noites ela me apareceu
empunhando uma espada e um estandarte.
E dizia: “Joana! Deus te chama!
Toma esta espada! Empunha este estandarte!
Expulsa os inimigos de teu povo!
Coroa o Rei em Reims! Vai! Obedece! (Emoção geral)

ARCEBISPO (depois de um momento de silêncio):
– Deve a razão calar-se na presença
de um testemunho do poder divino.

DUNOIS:
– Que ela caminhe à frente dos exércitos,
e nós a seguiremos cegamente!

LA HIRE:
– Nada tememos mais, pois a seu lado
marcha o deus da vitória. Ao combate! (Entrechocam-se as armas.)

CARLOS (estendendo-lhe uma espada):
– Santa jovem, comanda meu exército
e que todos os chefes te obedeçam!

JOANA (recusando a espada):
– Perdão, nobre Delfim, não esta espada.
Nenhuma arma terrena levará
o meu Rei à vitória. O Espírito
tem outra para mim. Sei onde está.
Há três flores de lis gravadas nela.
Quero também um estandarte branco,
orlado de uma franja cor de púrpura.
Foi com ele nas mãos que a Santa Virgem
se revelou a mim. Em minhas mãos
levarei essa espada e esse estandarte.

CARLOS:
– Que seja tudo feito como dizes!

JOANA (ao Arcebispo; ela se ajoelha):
– Venerável prelado, abençoa
a esta humilde filha!

ARCEBISPO: – Foste tu
que derramaste bênçãos sobre nós.
Vai, Joana! (Ela se levanta)

UM ESCUDEIRO: – Um arauto se apresenta
e vem da parte do comando inglês.

JOANA:
– Que ele entre! Foi Deus que o enviou.

(O Rei faz um sinal ao escudeiro para ir buscá-lo.)

CARLOS (ao arauto que entra):
– Que mensagem nos trazes?

O ARAUTO: – Qual de vós
fala em nome de Carlos de Valois,
o duque de Ponthieu?

DUNOIS: – Vil miserável!
Tu ousas renegar o Rei da França
no território dele?

O ARAUTO: – Em campo inglês
está o Rei que a França reconhece.

CARLOS (a Dunois):
– Tenhamos calma. (ao arauto): – Dá tua mensagem.

O ARAUTO:
– Meu nobre chefe, deplorando a guerra
e antes que Orléans seja destruída,
quer propor um acordo.

JOANA (ao Rei): – Meu senhor,
permites que eu lhe fale em teu lugar?

CARLOS:
– Sim, jovem.

JOANA (ao arauto): – Quem te envia? E quem fala
por tua boca?

O ARAUTO: – O comandante inglês,
Conde de Salisbury.

JOANA: – Tu te enganas.
Somente os vivos falam. Não os mortos.

O ARAUTO:
– Atesto que meu chefe está bem vivo.

JOANA:
– Vivia ainda quando tu partiste,
porém um tiro, vindo de Orléans,
matou-o esta manhã. E, agora, ouve
minha mensagem. Deves transmiti-la
corretamente aos teus: “Rei da Inglaterra
e vós, duques de Bedford e de Glocester,
prestai contas aos céus por tanto sangue
que derramastes. Pois chegou a jovem
que Deus envia. Quereis paz ou guerra?
A bela França não pertence a vós.
Deus destinou-a a Carlos, o Delfim,
que há de entrar em Paris vitorioso.”
– Vai, apressa-te, arauto! Brevemente,
verás meu estandarte em Orléans!

(Joana sai. Tudo se põe em movimento.)

SEGUNDO  ATO
CENA  ÚNICA
Um recanto cercado de rochedos.
Talbot e Lionel, chefes ingleses. Filipe de Borgonha. O cavaleiro Fastolf e Chatillon, acompanhados de soldados e bandeiras;a Rainha Isabel e um Pajem; sentinelas atrás da cena; Joana, Dunois, La Hire; cavaleiros, soldados.
TALBOT: – Vamos descansar um pouco. (aos soldados): – Vós aí! Ficai de guarda nos pontos mais altos!  (aos outros): –  Pelo menos a noite nos protege dos inimigos!  De qualquer modo, cautela. Estamos lidando com gente que não dorme, tanto que fomos vencidos!
(Fastolf se afasta com os soldados.)
LIONEL: – Vencidos! Ah, general, não repitas essa palavra! Como foi possível tantos dos nossos fugirem? Nós, expulsos por uma mulher!
DUQUE  DE  BORGONHA: – O consolo é pensar que fomos vencidos pelo diabo!
TALBOT: – Pelo diabo de nossa estupidez, duque. A superstição é péssima desculpa para a covardia. E, se não me engano, tua gente foi a primeira a debandar.
DUQUE  DE  BORGONHA: – Ninguém resistiu. A fuga foi geral.
TALBOT: – Não, senhor! Tu vieste gritando: “O inferno abriu suas portas, Satã combate pela França!” E assim começou a desordem nas fileiras. Teus homens foram os primeiros a fugir.
DUQUE  DE  BORGONHA: – Porque foram os primeiros a enfrentar o choque. Por acaso, estais pondo toda a culpa nos borgonheses?
LIONEL: – Bem! Se nós, ingleses, estivéssemos sozinhos, não teríamos perdido Orléans.
DUQUE  DE  BORGONHA: –  É que não seria possível perder o que não se tinha. Quem vos abriu o caminho para o coração deste reino? E vosso Henrique, quem o coroou em Paris? Despejais vossa cólera em mim, vosso aliado, porque perdestes Orléans. Talvez fosse melhor pensardes nas causas reais dessa perda. Orléans ia entregar-se a mim. Vosso ciúme o impediu! E pagamos bem caro por isso!
TALBOT: – Muito caro, mesmo. Hoje pagamos com nossa honra a aliança feita contigo!
DUQUE  DE  BORGONHA: – Paremos por aqui, senhores. Pensais que abandonei a bandeira de meu soberano e adquiri a fama de traidor para suportar ofensas de um estrangeiro? Para servir a ingratos, mais vale servir a meu Rei.
TALBOT: – Soubemos que estás em negociações com o Delfim; e ficaremos atentos para evitar tua traição.
DUQUE  DE  BORGONHA: – Então é assim que me tratais! (dirige-se a Chatillon): – Chatillon! Prepara a partida! Voltamos para casa!  (Chatillon sai.)
LIONEL: – Boa viagem! Jamais a glória do inglês brilhou tanto como nas ocasiões em que contou só com sua coragem. Nada de alianças!
ISABEL (entrando com um pajem): – Parai com isso, senhores! Justo no momento em que só a união pode salvar-nos, começais a brigar? Por favor, duque, e vós, Talbot e Lionel, fazei as pazes!
LIONEL: – Quando não se chega a um acordo, o melhor é romper.
ISABEL: – Então os sortilégios do inferno perturbam vossa razão? Esquecestes o auxílio deste digno aliado? Foi ele quem pôs vosso rei no trono e de lá  pode derrubá-lo.
TALBOT: – Honramos o amigo fiel. Contra o falso é preciso prudência.
ISABEL: – Duque, serias tão indigno a ponto de estenderes a mão ao assassino de teu pai? E estarias louco a ponto de acreditar numa aliança com o Delfim?
DUQUE  DE  BORGONHA: – Longe de mim fazer as pazes com o Delfim, mas jamais suportarei o desprezo dos ingleses!
ISABEL: – Vamos, vamos, abraçai-vos. Certas decepções geram palavras injustas.
TALBOT: – A Rainha foi sensata, duque. Que este abraço cure a ferida causada por mim.
(Os dois se abraçam.)
LIONEL (à parte, contemplando o grupo):  – A paz conseguida por uma fúria!…
ISABEL: – A perda de uma batalha não deve abater vossa coragem! O Delfim, desistindo de apelar para o céu, chamou Satã. Pouco importa. Se uma jovem conduz o exército inimigo, proponho-me a conduzir o vosso!
LIONEL: – Senhora, volta para Paris. É com armas e não com mulheres que pretendemos vencer.
TALBOT : – É, mesmo. Vai, senhora. Desde que estás neste campo, paira a maldição sobre nossas armas, e tudo dá errado.
DUQUE  DE  BORGONHA: – É verdade. E os soldados se sentem diminuídos em tua presença e perdem a coragem quando pensam que combatem por tua causa.
ISABEL: – Tu também compartilhas dessa ingratidão geral? Então restabeleci a paz e, de repente, estais todos contra mim? Vossa causa deixou de ser a minha?
TALBOT: – Tua causa nunca foi a nossa. Nosso combate é leal e honrado.
DUQUE  DE  BORGONHA: – Eu vingo a morte de meu pai, o que santifica minhas armas.
TALBOT: – Mas a conduta da Rainha em relação ao Delfim ofende a Deus e aos homens.
ISABEL: – Ele ousou ser juiz de meus costumes.
DUQUE  DE  BORGONHA: – Ele vingava um pai…
ISABEL: – Ousou mandar-me para o exílio! Tenho todo o direito de não querer vê-lo no trono. Mas, vós, é a ambição que vos impele! E esse duque que vende sua pátria ao estrangeiro! Hipócritas, todos! Eu, não! Mostro-me ao mundo como sou! Deveria renunciar aos prazeres porque me uni a um marido insensato? Ora, adeus! Não quero mais saber de borgonheses nem de ingleses. (Chama o pajem e sai.)
TALBOT: – Que mulher!
LIONEL: – Senhores, vamos  fugir ou voltar para vingar a derrota? Temos de recuperar o terreno perdido. Quanto a mim,  prometo capturar vivo esse espectro de donzela!
DUQUE  DE  BORGONHA: – Não prometas demais.
TALBOT: – Quero só ver quando eu pegá-la! Mas, vinde. O sono vai refazer nossas forças. E, ao raiar do dia, às armas!            (Saem todos.)
(Entra Joana, com o estandarte na mão, usando o elmo e a couraça sobre suas roupas femininas. Dunois. La Hire. Cavaleiros e soldados. Aparecem primeiro nos cumes dos rochedos, desfilam em silêncio e, de repente, invadem a cena.)
JOANA (aos cavaleiros à sua volta, enquanto o desfile continua):
– Já estamos no campo de batalha!
Gritai bem alto: “Deus e a Donzela!”
TODOS (ao som das armas):
– Deus e a Donzela! (tambores e fanfarras)
SENTINELAS (atrás da cena):
– O inimigo! – O inimigo!
JOANA:               – Agora as tochas!
Ateai fogo às tendas! Espantai-os!
DUNOIS (segurando-a):
– Joana, teu dever já foi cumprido.
Agora, fica fora do combate.
Cabe a nós, homens,enfrentar a luta.
O deus da guerra é cego e a ninguém poupa.
JOANA:
– Eu estarei onde o perigo está.
Não é hoje que devo sucumbir.
Na cabeça do Rei sei que vou ver
a coroa sendo recolocada.
É vontade de Deus. Será cumprida!  (Ela sai.)
LA  HIRE:
– Dunois, vamos com ela. Assim fazemos
uma barreira para protegê-la!            (Eles saem.)
(Passam soldados ingleses fugindo. Depois, Talbot.)
SOLDADO 1: – A donzela! Bem no meio do campo!
SOLDADO 2: – Impossível! Como teria vindo parar aqui?
SOLDADO 3: – Pelos ares! O diabo é seu ajudante!
SOLDADO 4: – Fujamos!
SOLDADO 5: – Fujamos! Estamos todos perdidos!   (Eles saem.)
TALBOT: – É impossível conter os soldados. O covarde e o valente fogem, dominados pelo mesmo horror. Quem será essa deusa do terror, que vira a sorte de um só golpe?
SOLDADO  6: – Foge, meu general! A donzela!
TALBOT (empurrando-o): – Foge tu, miserável covarde!   (Ele sai. Vêem-se chamas. Fuga e desespero.)
(Entra um cavaleiro com a viseira arriada. Joana surge em cena.)
RITTER:
– Tua hora chegou, mulher maldita!
Vou mandar-te de volta para o inferno!
JOANA:
– Quem és tu? Tens o aspecto de um príncipe.
E vejo, pelas cores da Borgonha,
que ao exército inglês tu não pertences.
RITTER:
– Miserável, devias cair morta
pelo machado infame do carrasco
e não por uma espada borgonhesa!
JOANA:
– Tu és o nobre duque de Borgonha?
CAVALEIRO (erguendo a viseira):
– Ele mesmo, infeliz. Perde a esperança.
As artes de Satã de nada servem,
a não ser para dominar covardes.
Diante de ti, agora, está um homem!
(Entram Dunois e La Hire.)
DUNOIS:
– Vira-te, borgonhês! Vem combater
com homens como tu, não com donzelas!
LA  HIRE:
– Terás de traspassar o nosso peito,
pois defendemos nossa profetisa.
DUQUE  DE  BORGONHA:
– Bastardo de Orléans, não tens vergonha
de lidar com as artes do demônio?
Podeis vir, que eu vos desafio a ambos!   ( Preparam-se para o combate.)
JOANA (lançando-se entre eles):
– Parai!
DUQUE  DE  BORGONHA: – Então tu amas o Bastardo?
Pois olha bem! (Investe contra Dunois)
JOANA:              – La Hire! Separa os dois!
E que o sangue francês não corra aqui.
São outros os desígnios do céu.
Afastai-vos e ouvi. A voz do Espírito
fala por mim.
DUNOIS:         – Por que deténs meu braço
que estava prestes a vingar a França?
JOANA (coloca-se entre eles e os mantém afastados; a Dunois):
– Passa para este lado! ( a La Hire): – Não te movas!
Devo falar com o duque. (ao duque): – Borgonhês,
que inimigo procuras entre nós?
Estes não são os teus compatriotas?
E eu também não sou filha da França?
Os que queres matar abrem os braços
para te receber, dobram os joelhos
para homenagear-te.
DUQUE  DE  BORGONHA: – Estás tentando
me enfeitiçar? Tua esperteza é inútil.
– Dunois! Vamos à luta com as espadas,
não com palavras!
DUNOIS:          – Elas te dão medo?
Serás covarde diante das palavras?
JOANA:
– Borgonhês, olha bem à tua volta:
o campo dos ingleses é só cinzas.
Ouve o clarim francês que já ressoa.
Vem para nosso lado, nobre duque.
Deus me enviou para estender-te a mão.
Nossa bandeira é branca porque é pura
como a Virgem que nela está estampada.
DUQUE  DE  BORGONHA:
– Parece que ouço a voz de uma criança…
Se é o Maligno que te dita tudo,
ele sabe imitar a inocência.
JOANA:
– Borgonhês, tu me acusas de ser cúmplice
do inferno. Será obra do demônio
pedir a paz, conciliar os ódios,
defender do estrangeiro a própria terra?
Eu não conheço a arte da palavra,
nem convivi com nobres. Entretanto,
como é preciso agora comover-te,
vem-me o conhecimento que não tenho
e trago em mim a força de um trovão.
DUQUE  DE  BORGONHA (comovido, olha para Joana):
– Que se passa comigo? O encantamento
vem do céu… Comovente criatura,
ela não mente. Deus a enviou!
JOANA:
– Não supliquei em vão. Ele me ouviu!
Deixai as armas, abraçai-vos todos!
A paz vence. Ele chora. Ele é dos nossos.
(A espada e o estandarte caem de suas mãos; ela se precipita para o duque e o abraça. La Hire e Dunois também largam as armas e abraçam o duque.
TERCEIRO  ATO
SZENE 1
O acampamento real em Châlons sobre o Marne
Dunois, La Hire; o rei Carlos, Agnes Sorel, Duchâtel, Chatillon; um escudeiro; o duque de Borgonha com dois cavaleiros; o Arcebispo olha por um balcão; Joana; um cavaleiro.
DUNOIS: – La Hire, não deixes de ser meu amigo só porque amamos a mesma mulher.
LA  HIRE: – Dunois, espera…
DUNOIS: – Sei que  pretendes pedir a mão dela ao Rei, e que ele a dará, de prêmio por teu valor. Mas precisas saber…
LA  HIRE: – Dunois, espera…
DUNOIS: – Não é simples atração o que sinto por ela. É amor profundo de um homem forte pela mulher forte, capaz de compreender-me.
LA  HIRE: – Achas que quero competir com um herói tão famoso? Mas, pensa bem. Será que um conde pode unir-se a uma pastora?
DUNOIS: – Ela é filha da santa Natureza, como eu, e bem mais elevada, em sua majestade angelical, que um simples conde. De resto, a decisão partirá dela.
LA  HIRE: – Não. A decisão virá do Rei. Olha, ele vem vindo.
(Entram Carlos, Agnes Sorel, Duchâtel e Chatillon.)
CARLOS (a Chatillon): – Então ele vem? E resolveu reconhecer-me como Rei?
CHATILLON: – Sim, meu senhor, o duque de Borgonha chega dentro de instantes.
SOREL: – Este dia vai trazer-nos a paz.
CHATILLON: – O duque pede que não se diga, neste primeiro encontro, nenhuma palavra  sobre antigas discórdias.
CARLOS: – Pois então, vamos esquecer o passado e pensar nos bons dias do futuro!
CHATILLON: – Todos os combatentes borgonheses estão incluídos nesta reconciliação.
CARLOS: – Meu reino, assim, já fica duplicado.
CHATILLON: – A paz também se estende à Rainha Isabel, se ela aceitar.
CARLOS: – Ela é quem marcha contra mim! Não eu! Ela querendo, fazemos as pazes.
CHATILLON: – E o arcebispo partirá a hóstia, dando metade a ti, metade ao duque,  como sinal de reconciliação.
CARLOS: – E o duque exige alguma garantia?
CHATILLON (olhando para Duchâtel): – Sim, há alguém aqui, cuja presença envenenaria esta entrevista.
CARLOS: – Vai, nobre Duchâtel, fica afastado, até que o duque consiga suportar-te. (Eles se abraçam) Meu amigo, sei o que querias fazer por mim…
(Duchâtel se afasta. Entra um escudeiro. Ouvem-se clarins.)
ESCUDEIRO: – O duque de Borgonha fez parar sua escolta. (Sai.)
DUNOIS (saindo com La Hire e Chatillon): – Vamos recebê-lo!
ARCEBISPO (do balcão): – O duque mal consegue se livrar da multidão que o aclama.
CARLOS: – Bom povo, tão ardente em sua cólera como nas demonstrações de afeto.
(Entra o duque de Borgonha, com dois cavaleiros de seu séqüito. O duque se detém na entrada. O Rei se move em sua direção e, no momento em que o duque já ia dobrando o joelho, o Rei o abraça. O duque abraça Agnes e a beija na testa.)
CARLOS (ao duque): – Tu nos surpreendeste. Íamos buscar-te, mas teus cavalos são velozes.
DUQUE  DE  BORGONHA: – Eles me conduziram ao meu dever. (Vê o arcebispo e o cumprimenta): – Dá-me tua bênção, venerável homem de Deus.
ARCEBISPO: – Deus já pode levar-me. Morro feliz só por ter visto este dia.
DUQUE  DE  BORGONHA (a Sorel): – É verdade que deste tuas jóias para ajudar nosso Rei a lutar contra mim? Pois aceita-as de volta. É tempo de paz.
(Apanha o estojo, com um dos homens do séquito, e o entrega, aberto, a Agnes, pondo em seus cabelos uma rosa de brilhantes. Agnes olha, confusa, para o Rei.)
CARLOS (abraçando-a): – Aceita, Agnes. É um presente de reconciliação.
DUQUE  DE  BORGONHA: – Ó meu Rei! Como fui capaz de te trair, de te renegar?
CARLOS: – Silêncio! Nem mais uma palavra a esse respeito.
DUQUE  DE  BORGONHA: – Cheguei a coroar aquele inglês, prestar-lhe homenagens e lhe jurar fidelidade. Conspirei para tua ruína.
CARLOS: – Não penses mais nisso. Está tudo perdoado.
DUQUE  DE  BORGONHA: – Hei de recuperar para ti todo o teu reino, sem faltar um povoado.
CARLOS: – Estamos unidos. Não vou mais temer inimigo algum.
ARCEBISPO: – A França, como uma fênix, renasce das próprias cinzas. As feridas do país se fecharão, os campos vão florescer de novo. É o Salvador que nos socorre.
DUQUE  DE  BORGONHA: – Oh, senhor, um anjo caminha a teu lado. Onde está ela, que não a vejo aqui?
CARLOS: – Sim, onde está Joana? E por que está ausente justo neste momento tão belo, que nos foi proporcionado por ela?
ARCEBISPO: – Senhor, a santa jovem não aprecia a ociosidade das cortes e, quando a França não precisa dela, prefere recolher-se. Deve estar conversando com o Espírito de Deus, pois todos os seus passos são abençoados!
(Entra Joana, sem o elmo e com uma guirlanda nos cabelos.)
CARLOS (a Joana):
– Tu pareces uma sacerdotisa.
Vens consagrar tua obra de aliança?
DUQUE  DE  BORGONHA:
– Tinha aspecto terrível no combate.
Mas neste instante a paz a ilumina.
(a Joana):
– Joana, eu não faltei ao prometido.
Estás contente?
JOANA (olhando ao redor): – Todos vós estais,
menos um, que encontrei em meu caminho,
obrigado a esconder sua tristeza,
enquanto aqui a alegria impera.
A reconciliação não está completa.
Basta uma gota de ódio. Ela envenena
toda uma taça de alegria. – Duque,
perdoa e deixa que ele se aproxime!
DUQUE  DE  BORGONHA:
– Agora compreendi. Eu o perdoo.
JOANA (chamando Duchâtel para dentro):
– Vem, Duchâtel! O duque fez as pazes
também contigo!
(Duchâtel dá alguns passos e procura ler nos olhos do duque.)
DUQUE  DE  BORGONHA:
– Joana, sabes bem o que me pedes?
JOANA:
– O céu e o sol envolvem toda a terra,
distribuem a todos os seus bens.
Só nas fendas estreitas moram trevas.
DUQUE  DE  BORGONHA (a todos):
– Meu coração está em suas mãos
como uma cera aos poucos derretida.
(a Duchâtel):
– Vem, Duchâtel, abraça-me, eu perdoo.
CARLOS (a Joana):
– Donzela, tu mudaste meu destino!
Meus amigos, tu reconciliaste.
Meus inimigos, reduziste a pó.
Tu, sozinha, fizeste tudo isso!
Joana, como vou recompensar-te?
JOANA:
– Basta que sejas sempre humano e justo,
e tua raça então florescerá.
Só o orgulho poderá perdê-la,
armando, no futuro, a tempestade
que há de cair sobre teus descendentes
perdidos pelo ódio e pelo orgulho.
SOREL:
– Santa jovem, se lês meu coração,
não dirás o que vês em meu futuro?
JOANA:
– Para mim, o Espírito revela
somente as previsões do grande mundo.
Teu destino está dentro de ti mesma.
DUNOIS:
– E o teu, qual será, nobre donzela?
Imagino a maior felicidade
que Deus há de te dar aqui na terra!
JOANA:
– Essa felicidade só existe
lá no alto, junto do eterno Pai.
CARLOS:
– Enquanto esperas, fica aos meus cuidados!
Quero tornar teu nome glorioso
em toda a França. Agora me permite
escolher para ti um nobre esposo.
DUNOIS (avançando):
– Eu te amei quando ainda eras humilde,
e as novas honras não modificaram
nem teus méritos, nem meu grande amor.
Eu te ofereço minha mão, se achares
que sou bastante digno de ti.
CARLOS:
– Jovem, domaste um coração altivo
que até hoje não conseguiu amar!
LA  HIRE (aproximando-se):
– Ela é digna do homem mais ilustre,
mas, se conheço bem sua modéstia,
não ousará unir-se a um homem nobre.
Basta-lhe um homem reto e dedicado,
e assim eu lhe ofereço minha mão.
CARLOS:
– Ah, são dois pretendentes de renome!
Só podes ser de um. Fala, Joana,
e que teu coração se pronuncie!
JOANA:
– Eu me sinto profundamente honrada
pela escolha dos bravos cavaleiros.
No entanto, não deixei minhas pastagens
em busca de grandezas passageiras,
e nem vesti em mim esta armadura
pensando na grinalda de noivado.
Minha missão é outra, e eu não devo
tornar-me esposa de ninguém na terra.
ARCEBISPO:
– Joana, já cumpriste esse desígnio
que te chamou ao campo de batalha.
Deixa agora essas armas e retorna
à condição de ser a companheira
de um homem de valor.
JOANA:           – Devo atender
somente às ordens que me dá o Espírito.
Por enquanto, ele ordena que eu prossiga.
Meu Rei não foi ainda coroado
e nem ungido pelo santo óleo.
Só depois disso é que ele será Rei!
CARLOS:
– Estamos de partida para Reims.
JOANA:
– Não devemos parar, pois o inimigo
espreita para bloquear teus passos,
mas eu me incumbirei de conduzir-te.
DUNOIS:
– E, quando tudo enfim for resolvido,
aceitarás, ó minha santa jovem…
CARLOS:
– Oh, sim, agora o coração se cala,
mas não há de calar-se para sempre!
JOANA:
– Vedes em mim uma mulher, apenas?
O céu vos revelou tantos prodígios,
e não compreendestes a Donzela
enviada por Deus?
CARLOS:            – Basta. É inútil.
JOANA:
– Pois ordena que soem os clarins.
O entusiasmo interior me impele.
O meu destino imperioso fala,
e eu obedeço!
(Entra um cavaleiro.)
CARLOS (ao cavaleiro):  – Quais são as notícias?
RITTER:
– O inimigo atravessou o Marne
já pronto para o ataque, junto a Reims.
JOANA (inspirada):
– Ao combate! Que os batalhões se formem!.
Armai-vos todos!            (Ela sai apressadamente.)
CARLOS:
– La Hire, vai atrás dela!
DUNOIS:              – O inimigo
sente a própria impotência e faz agora
a tentativa mais desesperada.
CARLOS:
– Borgonhês, vem chegando a ocasião
de demonstrares tua lealdade.
O  DUQUE  DE  BORGONHA:
– Quanto a isso, podes contar comigo!
CARLOS:
– É na frente de todos que eu irei,
a fim de conquistar minha coroa.
– Minha Agnes, adeus!
SOREL (abraçando-o): – Não tenho medo.
Meu coração me diz que lá em Reims
vou beijar meu senhor já coroado!
(Os clarins vibram, há rumores de batalha. A cena muda. Música de orquestra, acompanhada pelos instrumentos guerreiros, atrás da cena.)
CENA  2
A cena representa um campo limitado por árvores. Durante a música, vêem-se soldados fugindo, Talbot apoiado em Fastolf e em soldados, depois, Lionel; Carlos, o duque de Borgonha, Dunois, Duchâtel e soldados; La Hire.
TALBOT: – Deixa-me aqui e volta à batalha. Não preciso de ajuda para morrer.
FASTOLF (vendo chegar Lionel): – Chegas bem na hora, Lionel. O general está mortalmente ferido. Que desgraça!
LIONEL: – Deus não permitirá isso! Levanta-te, meu general, reage, comanda teu corpo, não te entregues à morte!
TALBOT: – É inútil. Minha hora chegou. E o trono que erguemos em solo francês já desmorona. Reims está perdida. Vieste para salvar Paris?
LIONEL: – Paris está nas mãos do Delfim. Acabamos de saber.
TALBOT (arrancando sua atadura): – Correi, rios de meu sangue! Estou farto!
LIONEL: – Fastolf, não posso ficar aqui. Transporta o general para um local seguro. O exército irresistível da Donzela avança sobre nós. Todos fogem.
TALBOT: – Tu triunfas e eu morro! Quem és, afinal, jovem iluminada pelo espírito divino? Se estás presa à cauda do corcel da superstição, vais rolar no abismo com os insensatos! Oh…. Ao Rei dos loucos pertence o mundo!
LIONEL: – Meu senhor, tens apenas alguns instantes de vida. Pensa em nosso Criador! O destino me chama ao campo de batalha. Adeus! Até um mundo melhor! (Ele sai.)
TALBOT: – Em breve… tudo estará terminado… e terei devolvido à terra, ao eterno sol, estes átomos… que se juntaram em mim para a alegria e a dor. Sinto um desdém profundo… por tudo o que me parecia grande e digno de inveja.  E que sobrará… do poderoso Talbot, que encheu o mundo… com sua fama de guerreiro?… Nada?
(Entram Carlos, o duque de Borgonha, Dunois, Duchâtel e soldados.)
DUQUE  DE  BORGONHA: – As fortificações foram tomadas.
DUNOIS: – Hoje é nosso dia.
CARLOS (reparando em Talbot): – Quem será aquele homem? Parece estar morrendo. Pela armadura, deve ser um cavaleiro. Vamos, soldados, cuidai dele, se ainda houver esperanças.
FASTOLF (vendo os soldados do Rei se aproximarem de Talbot): – Recuai!
DUQUE  DE  BORGONHA: – Mas é Talbot, afogado em sangue!
(O Duque se precipita em sua direção. Talbot o encara e morre.)
FASTOLF: – Traidor borgonhês, afasta-te. Poupa o último olhar de um herói.
CARLOS (depois de contemplar em silêncio o cadáver de Talbot): – Não fomos nós que o vencemos, mas Alguém mais poderoso. Que a paz esteja com sua alma; e aqui, no coração da França, será levantado no seu túmulo um monumento em sinal de nossa homenagem.
(Soldados erguem o corpo de Talbot e o levam.)
FASTOLF (entregando-lhe a espada): – Senhor, sou teu prisioneiro.
CARLOS (devolvendo-a): – Não! A guerra, por implacável que seja, permite que acompanhes em liberdade teu chefe à sepultura. (a Duchâtel): – Duchâtel, vai tranqüilizar minha Agnes, avisa que estamos vivos e leva-a para Reims.
(Saem Fastolf e Duchâtel. Entra La Hire.)
DUNOIS: – La Hire! Onde deixaste a donzela?
LA  HIRE: – Como? Isso sou eu que pergunto, pois deixei-a combatendo a teu lado!
DUNOIS: – Pois pensei que tu a protegias, quando corri para socorrer o Rei!
DUQUE  DE  BORGONHA: – Há poucos instantes, em plena luta, ainda vi tremular seu estandarte.
DUNOIS: – Isso é mau. Sua audácia pode levá-la longe demais.
CARLOS: – Pois corre e vai salvá-la, Dunois!
LA  HIRE: – Eu te acompanho. Vamos!
DUQUE  DE  BORGONHA: – Vamos todos!  (Saem todos apressadamente.)
CENA  3
Um local deserto no campo de batalha. Vêem-se ao longe as torres de Reims iluminadas pelo sol. Um cavaleiro, com uma armadura negra, com a viseira abaixada. Joana o persegue até o proscênio, onde ele pára e a espera. Lionel; Dunois e La Hire.
JOANA:
– Agora percebi tua esperteza!
Simulaste uma fuga e me arrastaste
para longe do campo de batalha.
Mas, cuidado! A desgraça te procura!
CAVALEIRO  NEGRO:
– E por que estás sempre atrás de mim
nessa fúria implacável? Meu destino
não é ser fulminado por teus golpes!
JOANA:
– És como a noite, cujas cores vestes.
Quem és? Se eu não tivesse visto Talbot
cair já quase morto, ah, eu diria
que eras ele. Levanta essa viseira!
CAVALEIRO  NEGRO:
– Falhou o teu espírito profético?
JOANA:
– No fundo da consciência é que ele fala,
e me diz que a desgraça está contigo.
CAVALEIRO  NEGRO:
– Chegaste a Reims nas asas da vitória,
Joana. Que esta glória a satisfaça.
Cuidado! A sorte é sempre traiçoeira.
JOANA:
– Então propões que eu abandone a obra,
que eu não cumpra meu voto?
CAVALEIRO  NEGRO:        – Até hoje,
ninguém te derrotou, grande guerreira.
Mas não confies mais na sorte agora.
Acredita no aviso que te dou.
Não coroes teu Rei. Eu te previno!
JOANA:
– Quem és tu para vires me tentar
com falsas profecias?  Morrerás!   (ela o ataca)
CAVALEIRO  NEGRO (toca-a com a mão e desaparece em meio a trovões):
– Mata o que é mortal!
JOANA (assusta-se e se recupera): – Era um espectro,
saído dos abismos infernais
para abalar minha coragem. Não!
Com a espada de Deus em minha mão,
hei de cumprir meu voto até o fim!
LIONEL (entrando e atacando):
– Miserável, defende-te de mim!
Os melhores dos nossos tu mataste!
Em meus braços caiu o nobre Talbot.
Vingarei esses bravos, ouve bem!
Sou Lionel, o último comandante
que ainda vive, e nunca fui vencido!
(Eles lutam. Joana o desarma, depois arranca-lhe o elmo e pára, imóvel.)
LIONEL:
– Sorte fatal! Que hesitação é essa?
Tira a vida de quem tiraste a honra!
Anda!… E nada de misericórdia!
A minha vida está em tuas mãos.
(Joana faz sinal para ele ir embora)
Queres que eu fuja? Que te deva a vida?
Jamais! Antes a morte!
JOANA :              – Se é verdade
que tua vida esteve em minhas mãos,
eu não quero saber. Vai, vai embora!
LIONEL:
– Por que queres poupar somente a mim?
Dizem que matas todos os ingleses
que a vitória te entrega!
JOANA:                 – Virgem Santa…
(a Lionel):
– Basta de mortes! Basta! Estão chegando!
O Bastardo e os outros. Vai-te embora!
Não quero mais matar. Foge! Depressa!       (Ele sai.)
LA  HIRE (entrando com Dunois):
– Ela está ali! Ela está viva! – Joana!
Teus amigos chegaram! Estás salva!
DUNOIS:
– Joana, nossa causa triunfou!
A cidade de Reims nos abre as portas!
LA  HIRE:
– Dunois! Ela está tonta! Empalidece!   (Ela desmaia nos braços de La Hire.
QUARTO  ATO
SZENE 1
Salão ornamentado para festa. Ouvem-se flautas e oboés atrás da cena.
Joana; Agnes Sorel; Dunois, Duchâtel e La Hire.
JOANA:
– As armas sossegaram. Ouço apenas
sons de danças e cantos pelas ruas.
Os franceses já prestam homenagem
ao filho de seu Rei. Mas, para mim,
que também fui autora desta glória,
tanta felicidade é tão estranha…
Meu coração se afasta dessas pompas.
E a donzela que o Espírito escolheu
sofre agora por tanto ter matado.
(A música atrás da cena se torna mais suave. Joana está melancólica.)
– Quem dera, santo cajado,
que eu, pela espada sangrenta,
não te tivesse trocado.
– Quisera Deus que, em teus ramos,
oh, meu carvalho sagrado,
a voz que se fez ouvir
não me tivesse falado…
– Minha Rainha do Céu,
por que vieste a meu lado?
Eu guardava as ovelhinhas
nos montes mais elevados.
Foi de lá que me arrancaste
para guiar os soldados.
E o coração da pastora
não estava preparado…
AGNES SOREL (entra, corre e beija Joana; depois se ajoelha a seus pés):
– Não! Assim, não! Mas a teus pés, no pó!
JOANA (tentando levantá-la):
– Que é isso? Esqueces tua posição?
E esqueces minha origem?
SOREL:                          – És o anjo
que conduziu a Reims o meu senhor.
Ninguém imaginava isso possível!
A coroação está-se preparando,
e estou repleta de felicidade.
Queria que tirasses a armadura…
Tu me assustas assim encouraçada.
JOANA:
– Não! Desarmar-me agora? Logo agora?
Eu queria uma tríplice armadura
para me proteger de vossas festas
e de mim mesma.
SOREL:             – Mas, por que, Joana?
Por que queres baixar tua cabeça?
Eu, sim, devia estar envergonhada,
pois penso apenas em meu bem-amado,
esse que o povo aclama e enche de flores.
JOANA:
– Que bom! Tu amas quando todos amam,
e podes demonstrar o teu amor.
SOREL (abraça-a com entusiasmo):
– Eu pensei que tu não me compreendesses,
mas estava enganada a teu respeito.
Sabes o que é o amor.
(Entram Dunois, Duchâtel e La Hire, trazendo a bandeira de Joana.)
DUNOIS:
– Tudo está pronto. O Rei nos enviou.
Quer que Joana leve à sua frente
o seu santo estandarte, pois a ela
é que cabem as honras deste dia.
LA  HIRE (estendendo o estandarte a Joana):
– Toma, nobre Donzela. O Rei te espera.
JOANA (humildemente):
– Eu? Levar o estandarte diante dele?     (Ouve-se a marcha da coroação)
Eu devo ir. Eu vou.
DUNOIS:           – Toma o estandarte!
O cortejo começa. Vamos logo!
(Dunois lhe entrega o estandarte; Joana o segue.)
CENA  2
Praça pública diante da catedral. Grupos de curiosos. Bertrand, Claude-Marie e Étienne; depois Margot e Louison. Ouve-se ao longe a marcha da coroação; Raymond e Thibaut d’Arc; Joana; Rei Carlos, Agnes Sorel; Arcebispo, o duque de Borgonha, Dunois, La Hire, Duchâtel, cortesãos, povo.
BERTRAND: – Já se ouve a música. Vamos tentar abrir caminho na multidão?
ÉTIENNE: – Isso é impossível. As ruas estão abarrotadas de gente.
CLAUDE-MARIE: – Parece que metade da França está reunida aqui. Nós mesmos não viemos de nossa longínqua Lorena?
BERTRAND: – Mas está certo. Quem não toma parte nesta festa não é um bom francês!
(Margot e Louison aproximam-se deles.)
MARGOT: – Vamos ver Joana, Louison. Apesar de tanta glória, é Joana, é nossa irmã!
LOUISON: – Meu coração está disparado. Será que é mesmo Joana, essa que chamam de Donzela, e que saiu de casa para nunca mais voltar?
MARGOT: – Ainda duvidas? Pois verás com teus próprios olhos!
BERTRAND: – Eles já vêm vindo!
(Tocadores de flauta e de oboé abrem a marcha. Atrás, dois arautos, depois um grupo de alabardeiros. Vêm, sem seguida, o duque de Borgonha, com a espada, Dunois, com o cetro, e outros grandes do reino com a coroa, o globo imperial e a vara da Justiça; depois os coroinhas agitando o turíbulo, dois bispos com a santa âmbula e o arcebispo com o crucifixo. Atrás dele, segue Joana, com seu estandarte. As irmãs demonstram espanto e alegria. Logo após Joana, vem o Rei sob um pálio sustentado por quatro barões. Cortesãos e soldados fecham a marcha. Assim que o cortejo entra na igreja, cessa a música.)
MARGOT (a Claude-Marie): – Viste Joana?
CLAUDE-MARIE: – Na frente do Rei, com armadura dourada e estandarte na mão?
MARGOT: – Era ela, sim! Era a nossa irmã!
ÉTIENNE: – E nem nos viu!
LOUISON: – Isso me deixou triste.
MARGOT: – Pois eu só vi seu brilho e sua glória. Quem viu Joana pastoreando ovelhas na montanha, como poderia imaginar que hoje estaria cercada dessa pompa?
LOUISON: – Ah, eu tenho medo… É a realização do sonho que nosso pai teve. Esta é a igreja que ele viu no sonho, e viu também coisas sombrias…
BERTRAND: – Vamos até a igreja, vamos! Assistir a cerimônia!
LOUISON: – Eu preferia voltar para casa, para nossa terra. Joana não é mais a mesma. Já não era, aliás, quando vivia entre nós.
MARGOT: – Nem vamos falar com ela? Por que? Será que ela vai envergonhar-se de nós e nos desprezar?
BERTRAND: – Não! Pois até o Rei saudou o povo humilde!
CLAUDE-MARIE (ouvindo o som de trombetas e tambores): – Entremos na igreja! Está na hora!
(Entram na igreja e saem de cena. Entra Raymond com Thibaut d’Arc.)
RAYMOND: – Pai Thibaut, eu te suplico, vamos embora. Esta festa faz mal à tua tristeza.
THIBAUT: – Viste minha pobre filha?
RAYMOND: – Sim. Queria que ela descesse dessas alturas e voltasse a nós…
(Joana, sem o estandarte, precipita-se para fora da igreja. A multidão a aclama e comprime, beijando sua roupa, de modo que ela fica um pouco no fundo da cena, sem conseguir varar o povo.)
THIBAUT: – É ela! É ela! Sua angústia a impele para fora do santuário. É o julgamento do céu que se manifesta!
RAYMOND: – Mas… para onde foi?
(Raymond sai. Thibaut se afasta para o lado oposto.)
JOANA (consegue varar o povo):
– Tive a impressão de ver minhas irmãs…
Mas devem estar longe, lá na aldeia…
MARGOT (aparecendo):
– É ela! É Joana!
LOUISON (correndo adiante dela): – É minha irmã!
JOANA (abraçando-as):
– Então não foi um sonho? Sois vós mesmas?
Ah, minha Louison, minha Margot!
Viestes de tão longe para ver-me?
E não me quereis mal por ter partido
sem nem dizer adeus?
LOUISON:               – Mas nós sabíamos
que a vontade de Deus te arrebatava.
JOANA (vivamente):
– E o pai? Não está convosco? Onde está ele?
MARGOT:
– Ele nem sabe que é aqui que estamos…
Mas quando lhe dissermos que estás bem,
há de recuperar seu bom humor.
JOANA (abraçando-as; Étienne, Bertrand e Claude-Marie surgem num canto):
– Estou bem porque ouço vossas vozes
e recordo os rebanhos nas montanhas.
Ah, era como estar no paraíso!
MARGOT (chamando):
– Vinde, Étienne, Bertrand, Claude-Marie!
Joana não mudou. Está tão meiga
como sempre!    (Eles se aproximam)
JOANA (olha-os, confusa): – Será que andei sonhando?
Terei mesmo deixado Domrémy?
Ou apenas dormi sob o carvalho
e agora despertei?
LOUISON:       – Tu não sonhaste.
Olha ao redor. Toca em tua couraça.
(Joana põe a mão no peito e estremece.)
BERTRAND:
– Recebeste de mim esse teu elmo!
JOANA (com vivacidade):
– Vamos! Fujamos para nossa aldeia!
Para junto do pai! Todos  aqui
me exaltam muito mais do que mereço,
mas vós sabeis que sou pequena e fraca.
LOUISON:
– Então, vem! Vem conosco!
MARGOT:                    – Mas, Joana,
estás disposta a largar este esplendor?
JOANA:
– Sim, sim, quero voltar a ser pastora
e me penitenciar de ter, um dia,
me colocado acima de vós todos.
(Ouvem-se as trombetas. Joana se vê obrigada a voltar para o cortejo. As irmãs e os noivos saem por outro lado. O Rei sai da igreja ostentando os ornamentos da sagração; Agnes Sorel, o arcebispo, o duque de Borgonha, Dunois, La Hire, Duchâtel, cavaleiros, cortesãos e povo.)
TODOS (gritam várias vezes à passagem do Rei):
– Viva o Rei!   Viva!   Viva Carlos  VII !    (Soam clarins.)
REI ( depois que os arautos erguem seus bastões, pedindo silêncio):
– Meu bom povo, agradeço vosso amor!
Esta coroa foi reconquistada
com o sangue da nação. Que agora a paz
permaneça conosco, pois a graça
de Deus se derramou em todos nós.
POVO:
– Viva Carlos o Bom! Viva o Rei Carlos!
REI (volta-se para Joana):
– Eis a enviada de Deus, eis a Donzela
que nos livrou do jugo do estrangeiro
e vos trouxe de volta o vosso Rei!
POVO:
– Viva a Donzela! Viva a salvadora!
KÖNIG:
– Joana! O que quiseres te darei! (Silêncio geral. Todos olham para a donzela.)
JOANA (grita de repente): – Oh, Deus! Meu pai!
(Thibaut sai do meio da multidão e pára diante de Joana, olhando-a face a face.)
POVO: – Seu pai!
THIBAUT (com voz terrível): – Sou seu pai, sim, que Deus mandou aqui para julgar a própria filha!
(ao Rei): – Então acreditas que deves tua salvação ao poder de Deus? Príncipe enganado, povo iludido! (Todos recuam com horror.)
DUNOIS: – Este homem está louco!
THIBAUT: – Tu perdeste a razão, isso sim, e todos os que acreditam que Deus se manifesta por meio de uma pobre jovem. Vejamos se diante de seu pai ela sustenta essa farsa. Em nome da Trindade, responde: és digna de figurar entre os santos, os puros?
(Silêncio geral. Joana permanece imóvel.)
AGNES SOREL: – Meu Deus, ela não responde!
THIBAUT: – É porque não foi enviada por Deus, mas sim Por maus espíritos. Ela mesma quis ganhar toda esta fama!
DUQUE  DE  BORGONHA: – É terrível, mas como não acreditar num pai que testemunha contra a própria filha?
DUNOIS: – Não acredites! É um insensato que desonra a filha!
AGNES SOREL (a Joana): – Fala, Joana, uma palavra basta, e acreditamos em ti.
(Joana fica imóvel. Agnes Sorel se afasta horrorizada.)
LA  HIRE: – Ela está assustada, é por isso que não responde. Joana, volta a ti, fala conosco!
(Joana continua imóvel. La Hire se afasta. O povo se agita mais.)
DUNOIS: – Para que tanta agitação? Ela é inocente. Empenho nisso minha honra!
(Troveja. Todos ficam apavorados.)
THIBAUT: – Anda, responde em nome de Deus!
(Troveja de novo. O povo foge.)
DUQUE  DE  BORGONHA: – Que sinais terríveis! Deus nos socorra!
DUCHÂTEL (ao Rei): – Vem, meu Rei, afastemo-nos daqui.
ARCEBISPO (a Joana): – Em nome de Deus, eu te interrogo. É a inocência ou a culpa que causa esse teu silêncio?
(Novos trovões. Todos saem, menos Dunois e Joana.)
DUNOIS: – Eu te amo. Acredito mais em ti do que nesses trovões rugindo. Não te peço uma palavra. Mas confia em mim e em tua nobre causa.
DUCHÂTEL (voltando): – Joana d’Arc! O Rei permite que deixes a cidade sem seres molestada. A palavra do Rei te salvaguarda. (a Dunois): – Segue-me, conde Dunois! Não convém ficares aí por mais tempo.
(Duchâtel se afasta. Dunois lança um último olhar a Joana e sai. Joana fica um instante sozinha. Surge Raymond, com expressão de pena e toma sua mão.)
RAYMOND: – Vamos aproveitar que as ruas estão desertas. Vem. Vou levar-te para casa.
(Joana, ao vê-lo, parece voltar a si; toma-lhe a mão e sai com ele.)
QUINTO  ATO
SZENE 1
Um recanto agreste e arborizado. Ao fundo, uma choupana de carvoeiros. Noite sombria. Trovões e relâmpagos.
O carvoeiro e sua mulher; Raymond e Joana; o filho do carvoeiro; rainha Isabel com soldados.
CARVOEIRO: – Vem por aí uma tempestade pavorosa. E, através do zumbido do vento, dá para se ouvir o estouro das balas. Só esta mata separa os dois exércitos.
CARVOEIRA: – Que Deus nos guarde! Por que os inimigos nos inquietam de novo, se já estavam vencidos?
CARVOEIRO: – Porque não têm mais medo do Rei. Desde que a Donzela foi considerada feiticeira, tudo sai errado.
CARVOEIRA: – Escuta! Quem vem lá?
RAYMOND (entra com Joana): – Estou vendo uma cabana. Vamos nos abrigar da tempestade. Estás exausta, depois desta caminhada de três dias, comendo raízes do mato… São carvoeiros honestos. Vamos.
CARVOEIRO (o céu clareia e se acalma): – Parece que precisais de descanso. Entrai. Estamos ao vosso dispor.
CARVOEIRA (ao carvoreiro): – Que estranha vestimenta para uma moça… uma couraça. São tempos difíceis. Dizem que até a Rainha Isabel anda armada da cabeça aos pés e que uma pastora combateu por nosso Rei.
CARVOEIRO (à carvoeira): – Chega de conversa. Traz alguma coisa para a moça beber.  (A mulher entra na cabana.)
RAYMOND (a Joana): – Vês como nem todos os homens são bárbaros? No mato pode viver gente de bom coração.
CARVOEIRO: – Assim armados, imagino que quereis juntar-vos ao exército do Rei. Cuidado! Os ingleses estão por perto!
RAYMOND: – Isso, para nós, é péssimo.
CARVOEIRO: – Esperai meu filho voltar da cidade. Ele vos levará por atalhos secretos. – Ei! Quem vem lá?
CARVOEIRA (dá uma caneca a Joana): – Bebe, moça, e que Deus te abençoe! Ah, vem chegando nosso filho!
FILHO (reconhece Joana e lhe arranca a caneca da boca.): – Mãe! Pai! Que estais fazendo? Ela é a feiticeira de Orléans!
CARVOEIROS (fazem o sinal da cruz, falam e depois fogem): – Que Deus nos acuda!
JOANA (com calma e doçura):
– Tu vês a maldição que me persegue?
Todos fogem de mim. Meu bom Raymond,
quero que vás embora, que me deixes.
RAYMOND:
– Deixar-te? Agora? E quem te guiará?
JOANA:
– Meu destino me guia. Não te aflijas.
RAYMOND:
– De um lado, estão ingleses inimigos.
Do outro, franceses que te rejeitaram…
JOANA:
– Somente o que tiver de ser será.
RAYMOND:
– E quem vai procurar teu alimento?
JOANA:
– Com o rebanho, aprendi a não comer
da erva venenosa. Não te aflijas.
Também sei me guiar pelas estrelas.
RAYMOND:
– Joana, tu agora és renegada
só por que não quiseste responder
a teu pai…
JOANA:  – O que vinha de meu pai
era uma provação vinda de Deus.
RAYMOND:
– E, inocente, aceitaste a acusação?
JOANA:
– Fui banida e sou uma fugitiva.
Porém a solidão foi minha mestra.
Passei por uma luta em meus sentidos
quando o brilho da glória me envolvia.
Agora estou curada. Estou em paz.
Haja o que houver, passou minha fraqueza!
RAYMOND:
– Pois vamos proclamar tua inocência
ao mundo inteiro!
JOANA:        – Calma, Deus não deixa
que caia um fio do cabelo do homem
sem seu consentimento, meu amigo!
(A Rainha Isabel vem de trás da cena com uma escolta de soldados.)
ISABEL (ainda atrás da cena):
– Para onde é o acampamento inglês?
RAYMOND:
– Que infelicidade! Os inimigos!
SOLDADOS (vendo Joana, recuam com horror):
– Deus nos guarde!
ISABEL:      – Vistes algum fantasma?
(Vendo a donzela, pára, depois vai ao seu encontro):
– Rende-te já! És minha prisioneira!
JOANA:
– Eu me submeto.
(Raymond faz gestos de desespero e é empurrado para fora da cena.)
ISABEL (aos soldados):  – Vós, acorrentai-a!
(Os soldados se aproximam. Joana estende os braços. É acorrentada.)
ISABEL:
– Então é esta a guerreira poderosa?
Por que deixaste o exército francês?
E onde está Dunois, teu protetor?
JOANA:
– Fui banida.
ISABEL:    – Por quem, pelo Delfim?
Por tê-lo coroado Rei em Reims?
Reconheço meu filho.
JOANA:                    – Não perguntes.
Decide meu destino.
ISABEL:               – Nunca foste
nenhuma feiticeira, e sim a louca
que se sacrificou pelo seu Rei
e recebeu a régia recompensa.
(aos soldados, enquanto Joana resiste):
– Levai-a para a torre! Obedecei!
O CHEFE  DOS  SOLDADOS:
– Anda. Obedece as ordens da Rainha.
JOANA:
– Não se esgotou meu sofrimento ainda,
e Deus deixou de se manifestar.
Nenhum anjo aparece. O céu fechou-se.   (Acompanha os soldados.)
CENA  2
O acampamento francês.
Dunois, o arcebispo, Duchâtel; um cavaleiro, Raymond.
ARCEBISPO: – Domina teus ressentimentos, príncipe, e volta para o lado do Rei. Não abandones nossa causa, logo agora, que estamos em apuros.
DUNOIS: – E por que estamos em apuros? Porque todos vós banistes o anjo da salvação. Agora, tratai de vos salvar sozinhos!
DUCHÂTEL: – Reflete bem, príncipe. Não nos deixes assim.
DUNOIS: – Basta, Duchâtel. Foste o primeiro a duvidar dela.
ARCEBISPO: – E quem não duvidou naquele dia infeliz? Depois que refletimos é que vimos como fomos injustos. O Rei está arrependido, La Hire está inconsolável.
DUNOIS: – Pensar que ela seja feiticeira, ela, a própria Verdade, a própria Pureza!
ARCEBISPO: – Não podemos desvendar esse mistério. Ou lutamos com as armas do inferno ou banimos uma santa. Mas acabamos atraindo o castigo para nosso país.
CAVALEIRO (entra e diz a Dunois): – Há um pastor aí querendo falar contigo. Diz que vem da parte da Donzela.
DUNOIS: – Vai buscá-lo! (Assim que Raymond entra, Dunois se precipita para ele): – Onde está ela? Onde está a Donzela?
RAYMOND: – Eu te saúdo, senhor, e mais este outro senhor, e mais o generoso arcebispo.
DUNOIS: – Onde está ela, responde!
RAYMOND: – Senhor, ela não é nenhuma feiticeira. Juro por Deus e por todos os santos. Vós expulsastes a inocência, a enviada de Deus.
DUNOIS: – Nem o sol é tão puro! Mas, onde está ela? Fala!
RAYMOND: – Apressai-vos, pois ela está prisioneira dos ingleses.
DUNOIS: – Prisioneira? Que dizes, meu Deus! Às armas, todos! Soai o alarme! Que a França inteira empunhe a espada!     (Saem todos.)
CENA  3
Campo de batalha. Uma torre de um lado. Joana. Fastolf, Isabel; um capitão; soldados; La Hire; Agnes Sorel, o rei Carlos, o duque de Borgonha.
ISABEL:
– Já estão pondo escadas e começam
a escalar a torre!
FASTOLF (entrando):
– Não é possível mais conter o povo.
Pedem, furiosos, que a Donzela morra.
Mata-a logo e joga sua cabeça
das ameias mais altas!
JOANA:
– És o inimigo, a quem meu povo odeia.
Dá a paz a meu povo e a teu povo!
Liberta os prisioneiros e conduz
teus soldados de volta à Inglaterra!
ISABEL:
– Pretendes ditar leis, acorrentada?
JOANA:
– A França não se dobrará jamais
ao jugo da Inglaterra.
ISABEL:                – E tu toleras
que esta insensata desafie a todos?
UM  CAPITÃO (entrando, apressado):
– General, apressai o vosso exército!
Os franceses estão se aproximando!
JOANA (com entusiasmo):
– Ao combate! A França e a Inglaterra
vão cruzar as espadas novamente!
FASTOLF:
– Insensata, modera esse fervor,
pois não chegarás viva ao fim do dia!
JOANA:
– Vou morrer, mas meu povo vencerá,
sem precisar de mim, os corajosos!
ISABEL:
– Nós os vencemos em vinte batalhas,
antes que esta heroína aparecesse.
Vai, Fastolf. Para a luta!
Eu ficarei na torre com a Donzela,
até que seu destino se decida.
FASTOLF:
– Queres que eu marche contra o inimigo
deixando para trás esta mulher?
JOANA:
– Tens medo de mulher acorrentada?
FASTOLF:
– Joana, jura que não vais fugir!
JOANA:
– Ficar livre é meu único desejo.
ISABEL:
– Reforçai as correntes! Eu prometo
que ela não fugirá!   (São reforçadas as correntes.)
FASTOLF:
– Partamos, capitão, partamos logo!
(a Isabel):
– Senhora, se nós formos derrotados,
sabes o que fazer…
ISABEL (empunhando o punhal): – Fica tranqüilo.
Ela não viverá para assistir
a nossa queda.
(Fastolf e o capitão saem.)
JOANA:
– Ninguém pode impedir que eu invoque
a vitória da França. – Meus heróis!
De pé! Vossa Donzela está convosco.
Já não posso levar o estandarte,
presa em correntes, mas a minha alma
voa livre ao ouvir as vossas vozes!
ISABEL (a um dos soldados):
– Tu! Sobe à plataforma e vai contando
como está o combate!     (Ele sobe.)  – Então, que vês?
SOLDADO:
– Os dois lados se encontram. Um valente,
que está montado num corcel malhado,
lança-se à frente dos soldados todos.
JOANA:
– É o conde Dunois! Coragem! Vamos!
SOLDADO:
– O duque de Borgonha ataca a ponte!
ISABEL:
– Esse traidor! Que morra no combate!
SOLDADO:
– Lorde Fastolf resiste. Os dois desmontam,
e seus grupos combatem corpo a corpo.
ISABEL:
– Vês o Delfim?
SOLDADO:  – Com toda essa poeira?
JOANA:
– Se fosse eu, enxergaria tudo.
Posso contar os pássaros que voam
e sei reconhecer falcões de longe.
SOLDADO:
– Desgraça! Nosso chefe está cercado!
ISABEL (erguendo o punhal para Joana):
– Então, morre, Joana!
SOLDADO (animado): – Ele livrou-se!   (Isabel reembainha o punhal)
– É a vitória! Os franceses debandaram!
JOANA:
– Meu Deus!
SOLDADO:  – Um oficial muito ferido
está sendo trazido. É um nobre!
ISABEL:
– É inglês ou francês?
O  SOLDADO:  – Tiram seu elmo…
É o conde Dunois!
JOANA (sacode as correntes): – E eu aqui presa!
SOLDADO:
– Eu vejo um manto azul bordado de ouro.
JOANA (sacode as correntes):
– É o Rei!
SOLDADO: – Já foi cercado pelos nossos!
JOANA (sacode as correntes, desesperada):
– Senhor, onde estarão os vossos anjos?
ISABEL (com ironia e sarcasmo):
– Anda, protege-o, grande protetora!
JOANA (cai de joelhos):
– Meu Deus do céu eu te suplico e invoco!
Uma teia de aranha Tu consegues
tornar tão forte quanto um cabo grosso.
E podes transformar elos de ferro
numa teia de aranha. Estas correntes
hão de cair, hão de se abrir os muros!
SOLDADO:
– Vitória! O Rei foi feito prisioneiro!
JOANA (erguendo-se):
– O grande Deus virá em meu socorro!
(Com essas palavras, pega as correntes e as arrebenta. Em seguida, arranca a espada de um soldado e corre para fora. Todos ficam imóveis de espanto.)
ISABEL (assombrada): – Não pode ser! Como se livrou destas correntes fortíssimas?
SOLDADO (na plataforma): – Será que ela tem asas? Ou foi levada pelo turbilhão de poeira?
ISABEL: – Ora essa, responde! Que estás vendo?
SOLDADO: – Ela corre mais depressa que meus olhos e está em vinte lugares ao mesmo tempo. Os franceses voltam à luta. Desgraça! Nossas bandeiras mergulham na poeira, e nossa gente depõe as armas!
ISABEL: – Como? Depois de uma vitória já certa?
SOLDADO: – Ela alcança seu Rei e o liberta. Lorde Fastolf cai e é feito prisioneiro.
ISABEL: – Basta! Basta! Desce daí.
SOLDADO (saindo): – Foge, Rainha! Serás apanhada!
ISABEL (sacando a espada): – Pois luta, covarde, luta!
(La Hire entra, seguido de soldados. Os soldados da Rainha depõem as armas.)
LA  HIRE (à Rainha, respeitosamente): – Rende-te, senhora. Teus cavaleiros já se renderam. Aceita meus préstimos. Aonde queres que te acompanhem?
ISABEL: – Vou para qualquer lugar, contanto que não encontre o Delfim.
(Isabel entrega a espada e acompanha La Hire e os soldados. No campo de batalha há soldados com estandartes ao fundo. O Rei e o duque de Borgonha amparam Joana, mortalmente ferida, sem dar sinal de vida. Chegam lentamente ao proscênio. Agnes chega precipitadamente.
AGNES (atira-se nos braços do Rei):
– Estás livre! Estás vivo! Ainda és meu!
REI (mostrando Joana):
– Sim, estou livre, mas a este preço.
AGNES:
– Meu Deus! Joana! Ela está morrendo…
DUQUE  DE  BORGONHA:
– É assim como ver morrer um anjo…
A paz do céu reflete-se em seu rosto.
KÖNIG:
– Ela não pode mais ver nossa dor,
nem o arrependimento que sentimos…
AGNES:
– Está abrindo os olhos! Ainda vive!
DUQUE  DE  BORGONHA (surpreendido):
– E está se levantando! Está de pé!
JOANA (olha ao redor):
– Onde estou eu?
DUQUE  DE  BORGONHA: – No meio de teu povo.
KÖNIG:
– Nos braços de um amigo, de teu Rei.
JOANA:
– Eu não sou feiticeira, eu vos afirmo.
KÖNIG:
– Sim. Nossos olhos é que estavam cegos.
JOANA (olha sorrindo à sua volta):
– Estou mesmo entre os meus? Não me desprezam?
Não sou proscrita, nem me amaldiçoam?
Ah, sim, agora eu vejo. Este é meu Rei.
E as bandeiras da França. Onde está a minha?
Eu não posso marchar sem o estandarte.
REI (virando o rosto):
– Dai-lhe o estandarte!
JOANA (de pé com o estandarte):  –  Vês o arco-íris?
É o céu, abrindo suas portas de ouro!
E eu vejo a Senhora em meio aos anjos.
Traz em seu colo seu sagrado Filho.
Com um sorriso, já me estende os braços.
Sinto agora que nuvens me levantam…
Minha armadura se transforma em asas!
A terra vai fugindo atrás de mim.
      Para o alto! Para o alto!
É breve a dor e eterna a alegria!
(O estandarte lhe escorrega da mão; ela cai morta. Todos os presentes estão à sua volta, numa emoção muda. O Rei faz um sinal; trazem os estandartes e, com eles, cobrem suavemente o corpo de Joana.)
ENDE

 

Sobre a escolha da peça

Para escolher uma peça com objetivo pedagógico, estude bem que tipo de vivência seria mais importante para fortalecer o amadurecimento de seus alunos. Será um drama ou uma comédia, por exemplo. No caso de um musical, é importante que a classe seja musical, que a maioria dos alunos toquem instrumentos e/ou cantem. Analise também o número de personagens da peça para ver se é adequado ao número de alunos.

Enviamos o texto completo em PDF de uma peça gratuitamente, para escolas Waldorf e escolas públicas, assim como as respectivas partituras musicais, se houver. Acima disso, cobramos uma colaboração de R$ 50,00 por peça. Para outras instituições condições a combinar.

A escola deve solicitar pelo email [email protected], informando o nome da instituição, endereço completo, dados para contato e nome do responsável pelo trabalho.

 

 

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